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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


País

Antropóloga: reconhecimento é o rumo para tolerância religiosa

Andressa Pessanha - aplicativo - Do Portal

19/09/2014

 Divulgação

O Brasil tem garantida na Constituição de 1988 a liberdade de consciência e crença religiosa, mas episódios de rejeição à diversidade de cultos torna o Rio a segunda cidade com maior número de casos de intolerância religiosa no país, aponta a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Casos de intransigência verificaram-se frequentes também nos levantamentos feitos ao longo de 20 meses para o livro Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro (Ed. PUC-Rio e Pallas), de Denise Pini Rosalem da Fonseca e Sonia Maria Giacomini, lançado em maio. Dos relatos de discriminação contra religiões afro-brasileiras reunidos na pesquisa, 430 foram encaminhados à polícia e só 58, formalizados. Os descasos resultam  “da não percepção a respeito dessas práticas religiosas”, avalia a antropóloga Sonia Giacomini, coordenadora do Núcleo Interdisciplina de Reflexão e Memória Afrodescendente (Nirema). Em entrevista ao Portal, a professora alerta que a falta de reconhecimento pode desencadear consequências como a exclusão social.

De acordo com o recém-lançado Atlas das condições de vida na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, (Ed. PUC-Rio), dos pesquisadores Cesar Romero Jacob, Dora Hees e Phillipe Waniez, os 40 anos de crescente "trânsito religioso" (mudança de crença) cessou, mas trouxe um aumento de mais de dois pontos percentuais na quantidade de devotos dos cultos afro-brasileiras (9,8% da população fluminense). Ainda assim, a visibilidade dessas religiões, como o candomblé e a umbanda, continua turva, pondera Sonia. Para torná-las mais reconhecidas e, portanto, estimular a melhor convivência inter-religiosa, adeptos de variados credos se reúnem anualmente, desde 2008, na Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. Organizada pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Brasil (CCIR), a próxima esta marcada para o domingo (21), às 11h, na orla de Copacabana (Posto 6). Uma iniciativa emblemática em busca da tolência no meio religioso, frisa a professora do departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.

Portal PUC-Rio Digital: Por que casos de discriminação religiosa ainda são relativamente frequentes num país laico como o Brasil?

Sonia: A primeira coisa é entender que estamos num país onde a própria legislação leva em conta a existência de uma diversidade cultural e religiosa como um direito básico. A outra questão diz respeito à intolerância religiosa pela não percepção de práticas não tão reconhecidas. Por exemplo, quando nos deparamos com tigelas de barro em pés de árvores, isto é visto como uma simples prática cultural, como qualquer outra. Não entendem que é uma prática religiosa, implica valores na fé, na crença de outras pessoas. A verdadeira ideia de cumprimento de uma obrigação religiosa não é levada em conta. Logo, a não extensão da ideia de religião para essas práticas culturais está na base dessa discriminação.

Portal: Na mapeamento dos terreiros do Rio, vocês constataram 430 relatos de discriminação religiosa encaminhados à polícia, dos quais só cerca de 40% (58) foram formalizados. Como as vítimas devem lidar com a intolerância?

Sonia: A primeira coisa é registrar os episódios dos quais elas foram vítimas. Mas deve-se reconhecer que existe uma grande dificuldade de fazer os registros justamente porque as autoridades também partilham esses mesmos valores. Não entendem a coibição de um culto afro-brasileiro como restrição à liberdade de crença à qual as pessoas têm direito. Não percebem a gravidade dessa discriminação. Assim, as pessoas que querem registrar uma queixa não conseguem registrá-la como intolerância religiosa. Normalmente, os cassos são considerados brigas de vizinho, brigas de rua, entre outros, descaracterizando o ato discriminatório.

Portal: Algum órgão do poder público já trata especificamente desses casos?

Sonia: A Superdir (Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos), da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), tem esse trabalho especifico, junto às autoridades. Tem sempre manifestações entre os membros dos terreiros para que eles se capacitem a conseguir caracterizar o conflito como fundamento religioso.

Portal: Como o mapeamento contribui para o melhor reconhecimento das práticas religiosas afro-brasileiras e, portanto, para a tolerância entre os diversos cultos?

Sonia: O nosso trabalho de mapeamento vem responder uma demanda desses religiosos, porque eles têm consciência de que precisam de visibilidade. As religiões de matrizes africanas já se iniciaram no Brasil em contextos de subalternidade. Portanto, só sobreviveram durante todos esses anos porque se esconderam. Até hoje, quando você vai na porta de um terreiro, muitas vezes não tem como reconhecê-lo. Tem um objeto ou outro na fachada, mas não é como um templo ou mesquita, de identificação arquitetural evidente. As religiões afro-brasileiras têm essas especificidades, e agora o projeto delas é de visibilidade social, reconhecimento.

Portal: Quando se fala em intolerância religiosa, muitos pensam nos evangélicos como principais agressores devido à lógica de conversão do pentecostalismo. Este generalismo não se revela equivocado e, assim, dificulta a caminhada para a tolerância?

Sonia: Realmente não são só os evangélicos, mas falamos deles e também dos vizinhos de terreiros ou casas espíritas porque, de acordo com os relatos recolhidos para o livro, eles são vistos como os mais recorrentes agressores. Mas há discriminação religiosa de professores, diretores de escola, funcionários públicos, funcionários de banco, atendentes de posto de saúde. Uma gama de profissionais.

Portal: Casos de intolerância por parte de praticantes da umbanda, candomblé e outros cultos derivados mostram-se menos comuns. Por quê?

Sonia: Essas religiões não têm proselitismo algum. Nunca foi uma preocupação dessas religiões conquistar adeptos. É completamente diferente da lógica do neopentecostal, por exemplo, na qual faz parte do objetivo a conversão do outro como uma missão. Nesse universo não vai ter nada similar, são éticas completamente diferentes.

Portal: Quais são as consequências sociais da intolerância religiosa?

Sonia: Isso pode levar à exclusão social. Nos casos analisados para o livro, houve criança que deixou a escola, pessoas que foram ao posto de saúde, médico ou dentista e não foram atendidas, ou não tiveram acolhimento adequado em atendimento público, entre outros.

Portal: Outros gêneros de intolerância, como o apedrejamento da casa da torcedora gremista acusada de racismo, têm sido observados talvez com mais frequência. Na sua percepção, estamos mesmo menos tolerantes?

Sonia: Sem dúvida, esses são episódios de intolerância. O apedrejamento da casa de Patrícia Moreira é a famosa punição de justiça com as próprias mãos, e isso é muito perigoso. Isso acontece porque, ao mesmo tempo em que a ideia de igualitarismo ganha mais espaço – estimulando as práticas democráticas –, o mundo é cheio de competições, conflitos e tensões. E as pessoas, no entanto, são sempre o alvo prioritário das outras nessas disputas. As diferenças são acionadas em momentos de tensão, e não quando está tudo parado, tranquilo.

Portal: No próximo domingo, devotos de diversas religiões vão caminhar juntos, na orla de Copacabana, pela tolerância. Na sua opinião, qual a importância desse tipo de iniciativa e que outras ações se revelam estratégicas para combater a discriminação religiosa? 

Sonia: Essa passeata é muito importante nesse sentido, porque eexpressa uma posição do tipo: “Estamos aqui, somos parte dessa sociedade e queremos reconhecimento na cultura brasileira, com igualdade”. Esse é um caminho bom. A divulgação das religiões menos conhecidas em veículos de informação são ótimos caminhos também para a diminuição desses casos.