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Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2024


Cultura

Nelson Sargento, 90: "Samba ainda agoniza, mas não morre"

Felippe Rocha* - aplicativo - Da sala de aula

23/07/2014

 Felippe Rocha

– Quer água, meu filho? – pergunta dona Evonete, a companheira.
– Água demais mata a planta – recusa Nelson Sargento, bem-humorado, saudável (acabara de chegar da hidroginástica) e lúcido, às vésperas de completar 90 anos.

A celebração é neste dia 25 de julho, e o sambista, compositor do clássico Agoniza, mas não morre, acredita que seu gênero musical, de certa forma, ainda sucumbe.

– De um modo geral, sim – afirma, sereno, citando a queda na vendagem dos discos de nomes que fazem sucesso comercial até os dias de hoje. E não hesita em apontar de quem é a culpa por este retrocesso:

– Zeca Pagodinho já vendeu 1 milhão de discos. Martinho também vendeu, mas as gravadoras deram uma trava. Zeca não vende mais de 300, 250 mil. Beth Carvalho sempre vendeu 800 mil, mas está reduzida a 180 mil porque as gravadoras deixaram de investir no samba. Quantos sambistas gravam comercialmente? Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e mais alguns... mas ninguém chega a 500, 400 mil cópias. Vai ser independente? Mete debaixo do braço e vamos à luta!

Por outro lado, fazendo uma breve linha do tempo dessas quase nove décadas, ele afirma que foi depois que as gravadoras começaram a gravar sambas que muitos nomes surgiram para o grande público. E, desde então, há a batalha por espaço, numa competição, principalmente, com o mercado musical externo:

– Os compositores não profissionais sofriam muito com relação à cobrança (de remuneração), mas, quando o samba evoluiu, quando as gravadoras passaram a gravar samba, todo mundo apareceu. Cartola, Gerado Pereira, Ismael Silva... Agora, a partir dos anos 1960 mais ou menos, houve a invasão da música estrangeira. Já havia o tango e o bolero, e as gravadoras começaram a investir em rock e no iê-iê-iê. Então Martinho veio com Casa de bamba e Luiz Gonzaga com o baião, fazendo frente – comenta, sobre a revalorização da música nacional.

Autor de elogiadas composições, Nelson concluiu apenas o ensino primário, equivalente ao 5º ano do Ensino Fundamental. Porém, vê o ensino básico da primeira metade do século passado mais eficiente que o atual, e credita também as falhas na educação das crianças à falta de conhecimento sobre artistas brasileiros, lembrando o rigor de Ary Barroso com seus “calouros”:

– Se eu pergunto a um aluno do primário quem foi Fagundes Varela, não sabe, nunca ouviu falar. Foi poeta. E, se eu disser uma coisa, você fica chateado? Nosso povo brasileiro não tem educação musical – lamenta Sargento, que no programa Eles têm história para contar, que apresenta ao lado de Agenor de Oliveira na Rádio Roquette Pinto, nas tardes de quarta-feira, faz questão de apresentar a ficha técnica dos discos tocados.

– Isto acontece muito: “Ah, o samba da Alcione”. Não, samba de alguém, e este alguém precisa ser citado. Senão, passa ao ouvinte a falsa ideia de que o samba é de quem está cantando. Chico Buarque gravou Sem compromisso, de Geraldo Pereira. Vão dizer: “Ah, do Chico!”. Não é, mas passa para o ouvinte que é. O Ary Barroso, que fez o melhor programa de calouros do Brasil, perguntava ao calouro que chegava:

Felippe Rocha  – O que você vai cantar?

– Um sambinha... – respondia o calouro.

– Sambinha? Não, não vai – o Ary já dispensava.

– Ah, vou cantar Vida de bailarina – dizia outro calouro.

– De quem? – indagava o apresentador.

– Não sei.

– Então não canta!

A 25ª edição do Prêmio da Música Popular Brasileira, realizada em São Paulo, no último mês de maio, homenageou o gênero que consagrou Nelson Sargento. Ele é grato, mas não de todo satisfeito:

– No 25º, é samba. Estava perto, mas não fizeram um negócio que marca. Mesmo tendo sambistas e lembrando compositores e intérpretes, como Beth Carvalho, Gilberto Gil e Emílio Santiago...

Criado no Morro da Mangueira, Sargento lembra que o carnaval das escolas de samba do Rio passou por reformas que estimularam a competição. Mais que isso, a festa teve na entrada do capital um fator importante para o crescimento das agremiações. Afirma que a grandeza do espetáculo faz com que muitos sambas sejam perdidos no tempo. Por outro lado, a quantidade de músicas compostas comprova o tamanho e a importância do gênero.

– O carnaval das escolas de samba é uma indústria, mas tem quatro grupos defendendo seus sambas. E incentivando também, porque quem faz carnaval para o grupo C tem que fazer carnaval para disputar o B. Quem faz para o B tem que fazer para estar no A. E quem está no A quer subir para o Grupo Especial. E, quando sobe, tem que fazer um desfile magnífico para ficar. Tudo isso faz bem. Mas, se considerar que são quatro grupos, são 40 sambas, mais ou menos, para onde vão? E quantos vão entrar na competição? Alguns não entram e são bons.

O grande e o novo disco

Pinturas e livros também fazem parte do repertório do multiartista Nelson Sargento. Entretanto, os últimos meses foram de shows e preparação de um novo álbum, nos moldes que deseja, para comemorar seu aniversário:

Felippe Rocha  – Estou tentando fazer um disco diferente. Tem discos que são iguais da (faixa) 1 a 12. Em matéria de andamento, igual. Sempre tentei fugir disso. Se for reparar, Versátil, meu último disco, não é igual de 1 a 14. Tem samba, marcha, choro, fox… músicas de minha autoria e mais uns parceiros – acentua, citando artistas e discos que considera ricos em qualidade e variados no andamento: – Os discos do Emílio (Santiago) realmente são variados. Mas vou lhe mostrar uma coisa aqui (se levanta, procura e exibe o disco: – Carinhoso. As mais belas canções românticas brasileiras. Os músicos: Altamiro Carrilho, Chiquinho, Afonso Machado, Batista, Jorginho, Valmar e Dino se reuniram e encontraram o melhor intérprete no Jair Rodrigues (morto um mês antes desta entrevista). Em 1983, quando este disco saiu, já falavam que faltava musica de qualidade. Precisavam de um cantor para executar o que eles estavam tocando. Você se lembra de ver o Jair Rodrigues cantar samba romântico? Então vai ouvir (ele põe o disco para tocar em sua vitrola). É um disco marcante. Jair não é só Disparada, ele cantava. Esse disco foi cantado – exalta, antes de explicar o que faz um álbum ter um bom andamento:

– Não é só a gravação. São os arranjos feitos, a ficha técnica! Quem fez os arranjos, o que cada um tocava... Tem gente que grava samba e não se preocupa com isso, mas o samba depende muito de arranjo. Por isso é que, quando fazemos o programa na rádio, exige-se ficha técnica: é para o ouvinte e para quem gravou a música.

Foi ainda na sua segunda década de vida que o então Nelson Mattos conheceu grandes nomes do samba, que viriam a ser inspiradores e parceiros de composições. E o respeito a certas figuras na Mangueira era tão grande que ele brinca com o medo de ficar velho.

– Cartola, Geraldo Pereira, Carlos Cachaça, Silas de Oliveira... fui aglutinando devagar. Comecei a compor por causa do Alfredo Português, meu pai adotivo. Alfredo tinha o respeito do Cartola, do Nelson Cavaquinho. Fez sambas com eles. Eu vi tudo isso e, lá no Morro da Mangueira, os compositores eram respeitados. Chamados de “Seu Carlos”, “Seu Geraldo”, “Seu Cartola”. Eu vou fazer samba para ser chamado de senhor?

E o maior intérprete do país, quem foi? Para o aniversariante, Orlando Silva:

– Eu acho. Ele chegou num grupo que tinha grandes como Francisco Alves, Silvio Caldas e Carlos Galhardo. Esbarraram em Nelson Gonçalves e Gilberto Alves. O Orlando, realmente, foi muito prestigiado. E ele se projetou numa época em que só tinha rádio, a imprensa era ainda muito reduzida. E ele se projetou.

 

Pagode não é samba

Indignado, Sargento comenta o fato de, no embalo da Copa do Mundo no Brasil, a Fifa ter registrado a palavra “pagode” no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Em tese, o termo é apenas o nome da fonte tipográfica da marca do recém-encerrado campeonato. Porém, na prática, a entidade máxima do futebol pode recorrer à Justiça se considerar inadequado qualquer uso da palavra pagode até o fim do ano. Ele lê, revoltado, a reportagem:

– Até 31 de dezembro a palavra pagode pertence à Fifa! A Fifa faz um negócio desses e o Ministério da Educação vira as costas? O que eles querem?

Sargento lembra o tantas vezes equivocado uso da palavra:

– Eles pensam que pagode é samba, que é MPB. Só que pagode não é um ritmo de samba; é um termo muito antigo, relativo a festa. Se eu disser: “Vai domingo lá em casa porque eu vou dar um pagode”, subentende-se que vai ter música. Tango, samba, rock, tanto faz, vai ter música, não necessariamente samba. A Copa do Mundo, mesmo, é um grande pagode, uma festa internacional. Mas, de qualquer forma, é um desrespeito ao samba.

Outro engano relativo ao termo pagode se deu nos anos 1990, quando brotaram pelo país os “grupos de pagode”. Com mais ou menos qualidade, existe também diferença entre o que foi feito naquele tempo para o que tem surgido mais recentemente. De todo modo, a riqueza do conteúdo de certos personagens é que precisa ser descoberta, diz Sargento:

– São grupos de samba que se batizaram como “grupos de pagode”. Os intérpretes tinham até uma voz mais preparada para isso, casos do Raça Negra, do Soweto… mas agora se criou uma coisa chamada pagode de mesa, sem pretensão a comércio. Mas tem pagode de mesa da melhor qualidade, até porque nas esquinas deste país tem Pelé, tem Zeca Pagodinho, tem Araci, Cartola, Jobim, Vinicius, tudo nas esquinas deste imenso país. Achá-los é que é difícil.