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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


Economia

Argentina: sorte no futebol e revés na economia

Brenda Baez, Juliana Reigosa e Lucas Augusto - aplicativo - Do Portal

15/07/2014

 Arte: Lucas Sereda

Além da derrota no gramado, nossos “hermanos não andam bem das pernas na economia. O impasse da dívida argentina segue num ambiente de incertezas pela indeterminação das medidas que o governo de Cristina Kirchner tomará em relação às negociações com os credores. A indefinição também continua quanto aos possíveis efeitos da crise nas relações comerciais com o Brasil. A análise de especialistas sobre os respingos da crise da dívida na economia brasileira mostra que, caso o cenário adverso delineado pela sentença da Suprema Corte Americana se concretize, as relações comerciais com o país vizinho podem sofrer impactos, tais como a queda das exportações brasileiras para a Argentina e a retração no setor automotivo, que representa 49% das relações bilaterais.

Segundo o vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), Mauro Laviola, se a crise não for resolvida até o fim do ano, o calote argentino trará consequências, tirando o país do crédito internacional e agravando seus problemas de financiamento externo. Além disso, Mauro diz que a Argentina há tempos toma uma série de medidas restritivas nas importações, não só no Mercosul como no mundo em geral. Essas restrições administrativas visam, sobretudo, proteger suas reservas e seu mercado interno.

Renato Flôres Galvão, doutor em Economia e coordenador do Núcleo de Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca a importância do comércio brasileiro com os argentinos, considerando-o importante e intenso, porém atribulado:

– É uma relação difícil. A Argentina tem uma política comercial muito volátil dentro do Mercosul, criando, em alguns momentos, barreiras para as nossas exportações que não deveriam ocorrer. Não que o Brasil seja o “bonzinho” da história, mas é uma relação difícil. É importante, ainda lucrativa para o país, mas atribulada.

Flôres destaca que um impacto considerável na economia argentina pode ter desdobramentos no Brasil com relação ao movimento de capital e à própria estrutura econômica, como a fuga de capital argentino e a compra, por empresários brasileiros, de mercadorias que possam estar mais baratas no país vizinho.

– A retração econômica pode levar a pedirem ao Brasil, por exemplo, que continue fornecendo produtos, porém a créditos mais largos e com facilidades de pagamento maiores – analisa.

Segundo o economista, todos os setores em que temos relações comerciais com a Argentina podem ser afetados:

– Hoje em dia temos com eles um portfólio de vendas bastante amplo. Uma retração nas compras ou pedidos de facilidade extraordinários na aquisição de produtos afeta vários setores de manufaturados nossos – diz.

Em contrapartida, a economista Lia Valls, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) e professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj, destaca que, apesar de o canal de transmissão da crise na nossa economia ser via comércio exterior, a participação das exportações para a Argentina no PIB do Brasil é de cerca de 1%. Logo, o efeito seria pequeno e não impactaria sobre o crescimento econômico do país.

Balança comercial brasileira no negativo

O Brasil enfrenta um ano de pouco dinamismo na economia. Com base em dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, na segunda semana de julho de 2014, a balança comercial registrou déficit de US$ 240 milhões, apresentando no somatório anual saldo negativo de US$ 1,442 bilhão. Em comparação com o mesmo mês do ano passado, as exportações registraram queda de 12,8% nas vendas de manufaturados (com plataforma de produção de petróleo e gás, automóveis de passageiros, autopeças, óleos combustíveis, motores para veículos, máquinas para terraplanagem, aviões e medicamentos).

 Arte Isabela Sued De acordo com o Rio Exporta, boletim de comércio exterior do Rio de Janeiro, no mês de junho verificou-se que o setor automotivo sofreu recuo nas encomendas de carros, caminhões e ônibus, inclusive carrocerias (51%), principalmente oriundas da Argentina, o que determinou a retração nas importações da indústria de Material de Transporte (US$ 248 milhões e queda de 26%).

A Política Automotiva Comum entre os países foi prorrogada por mais um ano, até junho de 2015. Lia Valls acredita que o acordo automotivo entre Brasil e Argentina permitiu criar um comércio intraindustrial importante nesse setor. No entanto, ela demonstra preocupação com a renovação da política, lembrando que o acordo seria temporário até o estabelecimento do livre comércio entre os países, como esperado numa união aduaneira.

– A tarifa externa comum e o comércio intrarregional estão cheios de exceções, e o acordo automotivo acabou sendo sistematicamente renovado. Agora, com a competição chinesa, há sinais de que o tratado não propiciou ganhos de competitividade suficientes para enfrentar o novo concorrente – destaca.

Flôres complementa que, caso o cenário adverso se concretize, toda essa política automotiva será prejudicada: “Acertos que tenham sido feitos há muito tempo ou recentemente para contornar queixas brasileiras ou argentinas têm seus impactos conjunturais”.

Caso os argentinos consigam sanar seus problemas financeiros com os credores, continua Flores, “tudo continua como dantes; a princípio, isso não melhora nem piora nossas relações”. Na perspectiva do vice-presidente da AEB, conforme a dívida externa seja solucionada e a economia retome uma normalidade interna, a tendência é o recrudescimento do comércio, porque “há uma complementaridade importante entre diversos setores”.

– Enquanto isso não ocorre, o comércio sofrerá alguns percalços entre os dois lados. Se vendermos mais para a Argentina, podemos comprar mais deles. Vendendo menos, a tendência é comprar menos, logo, o comércio diminui. Isso vai depender de uma solução satisfatória sobre a pendência financeira com seus credores – conclui Laviola.

Os possíveis impactos no Brasil dependerão da forma como o governo vizinho mediará suas negociações com os “fundos abutres” (leia mais abaixo), a fim de que as decisões tornem-se favoráveis para a Casa Rosada.

Entenda a crise na Argentina

No ano de 2001, diante de uma crise econômica e política, a Argentina declarou moratória, dando um calote em sua dívida pública (avaliada em cerca de US$ 100 bilhões). Devido ao empréstimo de dinheiro ao governo, pessoas físicas, empresas e fundos com títulos da dívida deixaram de receber os rendimentos e foram impedidos de fazer resgates.

Quatro anos depois, no governo de Néstor Kirchner, o país tentou recuperar a credibilidade com um plano de renegociações desses débitos, oferecendo aos prejudicados pagamentos com descontos acima de 70% e parcelados em 30 anos. Ao todo, 92,4% dos credores aceitaram as condições e têm recebido os pagamentos em parcelas – é a chamada dívida reestruturada. No entanto, parte dos credores (7,6% do total) recusou os valores com desconto e parcelados.

Fundos especulativos dos Estados Unidos compraram, a preços baixos, os títulos desses credores. Esses fundos são chamados de “abutres” pelo governo argentino, já que, assim como os pássaros, se alimentam de coisas podres. Após comprarem os papéis no mercado secundário por um preço muito abaixo do real valor, eles entram na Justiça contra o emissor, buscando receber um montante superior ao que pagaram pelos bônus.

 Arte: Maria Christina Corrêa Em 2010, houve uma renegociação da dívida externa argentina, e os credores que aceitaram trocaram os títulos não pagos por novos bônus. Em 2012, a Justiça dos EUA deu ganho a um dos fundos “abutres”, determinando o pagamento de US$ 1,33 bilhão.

No último dia 26 de junho, a Argentina pagou a parcela que pertence à chamada renegociação da dívida de US$ 100 bilhões, definida em 2005. No entanto, no dia seguinte, o pagamento de US$ 1 bilhão, incluindo juros, foi considerado “ilegal” pelo juiz Thomas Griesa, dos Estados Unidos. Com isso, os recursos do depósito foram bloqueados. Para a Justiça, os argentinos só podem pagar as parcelas quando honrarem o pagamento dos que exigem receber o valor sem descontos ou parcelas. A Argentina publicou anúncios nos jornais britânicos Financial Times e Times, no espanhol El País e no alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, criticando a decisão jurídica e os fundos envolvidos.

Para o vice-presidente da AEB, Mauro Laviola, a renegociação da dívida é extremamente complexa, pois qualquer acordo com um grupo tem de ser estender aos outros, gerando uma pendência.

– O pagamento inicial foi bloqueado, pois pela cláusula Rufo, os credores têm direito de receber seus créditos de forma equânime. Se há favorecimento para um lado, tem de ser dado ao outro – analisa Mauro.

Para o economista Renato Flôres, a sentença americana é grave, pois, além de criar dois grupos, pode fazer com que um se transfira para o outro, tomando uma nova posição.

– O juiz, no mínimo, atrapalhou uma negociação que estava sendo aceita, criando um problema para o grupo que renegociou a dívida. Se a Argentina ao mesmo tempo for obrigada a cumprir o que determina a sentença, não terá condições de seguir pagando – afirma Flôres, que complementa: – Esse cenário vai colocar o país numa situação muito delicada financeiramente, além de provocar desdobramentos políticos na estrutura econômica e no relacionamento da Argentina com todos os seus parceiros internacionais.

 Arquivo A nova crise da dívida argentina vem num momento em que o país tem pouco dinheiro em caixa (US$ 28 bilhões em reservas). Tratando-se de dívida externa, esses recursos só podem ser pagos com as reservas internacionais, que encolheram 30% no ano passado, para o menor nível em oito anos, e devem recuar ainda mais no segundo semestre deste ano, devido à baixa nas exportações.

Na primeira reunião, no dia 7 de julho, em Nova York, com o mediador nomeado por Thomas Griesa para tentar solucionar o impasse, o governo argentino continuou exigindo que a Justiça americana suspenda a decisão que obriga o país a tratar da mesma maneira credores que renegociaram a dívida e os “fundos abutres”. O ministro da Economia argentino, Axel Kiciloff, que participou do encontro, reafirmou que o país não tem condições de pagar a todos os credores de uma só vez.

Na última sexta-feira (11), houve uma nova reunião com o mediador Daniel Pollack. Depois de se reunir separadamente com os detentores de títulos e os representantes do governo da Argentina, Daniel disse que ainda não há solução para o impasse, mas que tem esperança de que haja um diálogo no futuro.

Segundo a economista Lia Valls, no curto prazo é preciso negociar a dívida argentina. Ela indica uma possível solução pontual:

– É importante que sejam criados mecanismos institucionais que protejam as negociações de reestruturação das dívidas, para que não seja criado um cenário de incertezas que acabe inibindo essas negociações.

A Argentina tem até 30 de julho para resolver a situação. Caso contrário, a parcela com os credores que renegociaram a dívida vencerá e o país estará novamente diante de um calote.