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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


Cidade

Lembranças daquela primeira final, ora suavizada pelos 7 a 1

Júlia Cople* - aplicativo - Do Portal

07/07/2014

 Arte: Lucas Sereda

Desta vez o Maracanã já sabe que a taça não será nossa. Expulso da festa pelos inacreditáveis 7 a 1 da terça-feira fatídica, a pior derrota do futebol verde-amarelo, resta ao Brasil o mérito de acolher uma decisão superlativa. Alemanha e Argentina, cinco títulos mundiais reunidos, as duas melhores equipes do torneio, prenúncio jogão no nosso principal estádio, que, por uma dessas barbeiragens incríveis, não viu a própria seleção nesta segunda Copa em casa. Como um aquecimento para as emoções do próximo domingo, três bambas do jornalismo – Claudio Bojunga, Teixeira Heizer e Léo Batista – recordam, a convite do Portal, traços marcantes daquele 16 de julho de 1950, cujo desfecho traumático, ora suavizado diante da incomparável humilhação imposta pelos alemães, também produziu perplexidade e decepção históricas.

Ao contrário do Brasil opaco e apático de Felipão, o Brasil de Zizinho e Ademir Menezes, artilheiro do Mundial, vendia talento e colecionava goleadas. Em comum, talvez só a autossuficiência – compreensível em 1950, inexplivável na nova versão da família Scolari. Aquele Brasil caminhava para se consagrar campeão mundial pela primeira vez, diante dos 200 mil na arquibancada. Até as pilastras do Maracanã estavam certas do título para o qual bastaria o empate. "Vós, que sereis campeões do mundo...", decretou prefeito Mendes de Morais, dirigindo-se ao escrete canarinho pouco antes da partida. A Jules Rimet erguida pelo capitão Augusto insinuava-se mera formalidade. Políticos adicionavam o iminente êxito à plataforma das eleições presidenciais. Na véspera, jornais estampavam na primeira página fotos do campeonato que já estava no bolso. Depois de aproveitar a manhã de sol na Copacabana dourada, cariocas combinavam a badalação da vitória nas boates e bares da Cinelândia. O champanhe já aguardava no gelo.

Desdobramento natural dos 6 a 1 sobre os espanhóis – que fez ecoar as Touradas de Madri, de Braguinha, pelos anéis do ex-maior do mundo  –, o triunfo serviria para coroar também o Estado-nação e a esperança de o Rio consolidar o prestígio internacional. No meio do caminho haveria, contudo, o chute de Alcides Ghiggia, 33 minutos do segundo tempo. Se, para Nelson Rodrigues, a virada impensável dos uruguaios inaugurou o complexo de vira-lata brasileiro, para Teixeira Heizer, trouxe humildade ao time e à torcida. Ajudou a preparação dos jogadores para as Copas seguintes. O entusiasmo, lembra Léo Batista, ignorou os amistosos contra o Uruguai, que sinalizavam uma equipe difícil de ser batida. Para Claudio Bojunga, a perdal não se eternizou como cicatriz do brasileiro. "Não somos marcados pela derrota. O Brasil é pentacampeão", argumentou o jornalista, antes do vexame da semifinal. "Existe este medo até hoje. Não do Uruguai, mas de 1950. Ficou para nós como a Batalha de Waterloo para Napoleão Bonaparte: uma derrota que não podia ter acontecido." Agora, a comparação de Bojunga talvez mude de endereço: os 7 a 1 viraram nossa Waterloo... Que marcas legará o Maracanã no domingo que vem?

Teixeira Heizer, jornalista

"O dia 16 de julho é dramático para todos os brasileiros. A perspectiva era de que o Brasil se consagrasse campeão mundial pela primeira vez, sob os olhos dos 200 mil torcedores preparados nas arquibancadas para um grande momento da história brasileira. O Rio era uma cidade dos cariocas. Não havia ainda a invasão de nordestinos, mineiros e outros quadrantes do país. Livre, acolhedora e gostosa de se viver. Mesmo eu, vindo do interior, sentia uma liberdade extraordinária pelas ruas daquela que cultivava a esperança de se tornar uma metrópole capaz de se igualar às grandes do mundo. A Cinelândia ebulia cultura nos famosos cinemas, como o Paramount. O ponto de referência carioca eram as boates e bares do Centro, para onde convergiam os olhares de quem chegasse à cidade. Eram a Zona Sul de hoje.

Existia muita coisa que empurrava o time para frente. As músicas, a torcida com aquele otimismo exagerado. Mas havia também o que prejudicasse a trajetória da equipe. A seleção brasileira, em 1950, deixou a concentração da Pedra Bonita, lá na Barra da Tijuca, para alojar-se em São Januário, onde o acesso era fácil para políticos fazerem campanha. Em ano de eleição presidencial, o candidato ao posto Cristiano Machado e o então governador de São Paulo, Ademar de Barros, que propagava seu apoio a Getúlio Vargas, foram almoçar com os jogadores na véspera e até no dia do jogo final. Atrasaram o horário da refeição com os discursos políticos, o que perturbou a rotina da equipe, segundo me relatou o atacante Zizinho mais tarde.

Todos que foram ao Maracanã, inclusive eu, na época com 18 anos, acreditavam que a seleção era infinitamente superior a todos os antagonistas. Até porque havia vencido seus adversários com larga margem de gols: 4 a 0 no México, 2 a 0 na Iugoslávia, 7 a 1 na Suécia, 6 a 1 na Espanha — ao som da extraordinária Touradas de Madri. Jornais, como o A noite, publicaram a foto dos jogadores com o título, com a indicação precipitada de que o Brasil já era campeão do mundo. O time estava mesmo credenciado para a partida contra o Uruguai. Mas aí veio a tragédia. A seleção não jogou de acordo com a expectativa, e a equipe adversária a superou dentro de campo. Dali por diante, os brasileiros passaram a ter humildade em suas perspectivas futuras. A história do “já ganhou”, por antecipação, deixou de existir. Tanto que o Brasil, nas competições seguintes, teve uma preparação mais cuidadosa e o público, em geral, não cultivaria mais o otimismo exagerado da Copa de 1950. Não se imagina mais uma equipe invencível.

Claudio Bojunga, jornalista e professor da PUC-Rio

Estava um sol fantástico. Era a certeza de que o Brasil ia ganhar. Prestes a fazer 10 anos, assisti àquela final das cadeiras cativas do Maracanã, com meu avô e minha mãe. Não havia torcida organizada ou ola, mas a canção de Braguinha, Touradas de Madri, ecoava no estádio desde a esmagadora vitória dos brasileiros por 6 a 1 sobre os espanhóis. O prefeito Mendes de Morais, que reivindicava a autoria da obra, e todos os políticos estavam lá. Martha Rocha, a mulher mais bonita do mundo, estava lá. O Brasil era carente e precisava dessas vitórias, bem como a Europa combalida pelo recente fim da Segunda Guerra Mundial.  O carioca, que se divertia noite afora na Boate Vogue e tarde adentro no teatro Recreio, de Walter Pinto, estava lá. A cidade aos poucos se virava para o mar: era o momento áureo de Copacabana, da onde eu vinha. Estacionei num terreno baldio distante do estádio. Eu lembro de muita gente chegando a pé. A quantidade de gente, todos exultantes. O champagne separado para comemoração. Já era Brasil campeão. Nunca esqueci do Zizinho, o Pelé da época, que criava e driblava. O Ademir Queixada, um centroavante típico.

Bastava um empate. Quando Friaça fez 1 a 0 era a prova: o estádio veio abaixo. Na hora estávamos embriagados, mas depois foi constrangedor. O Uruguai empatou e veio o silêncio pavoroso. Aquela explosão toda se transformou num silêncio. Isso assustou as pessoas, porque silenciaram como se fosse já uma decepção. Os jogadores entraram em pânico. Com Barbosa à minha direita, vi Ghiggia passar pela lateral. Foi como perder uma guerra. Como se o Paraguai tivesse ganho a Guerra do Paraguai. Brasil era pobre, não tinha força de reposição. Era o tal complexo de vira-lata que Nelson Rodrigues expõe depois daquela final, de um país condenado à derrota. Foi o reverso da cultura: de cantar vitória antes da hora à transformação dos jogadores em vilões. O capitão deles, Varela, que havia mandado os uruguaios esquecerem a arquibancada, disse que saiu para comemorar e não encontrou ninguém nos bares.

Existe este medo até hoje. Não do Uruguai, mas de 1950. Ficou para nós como a Batalha de Waterloo para Napoleão Bonaparte: uma derrota que não podia ter acontecido. Mas a vitória, quando se acumula, traz confiança. Nosso problema era a sensação de inferioridade, de país grande, mas frágil e pobre. Quando o Brasil perde em 1966, Carlos Drummond de Andrade escreve uma crônica dizendo que já havíamos provado a força do Brasil. Não somos marcados por aquela derrota. O Brasil é pentacampeão.

Léo Batista, jornalista

Na final da Copa de 1950, entre Brasil e Uruguai, eu era locutor esportivo da Rádio Difusora de Piracicaba. Vim para o Rio cerca de uma semana antes, para me preparar, e vi o entusiasmo daqueles três milhões de habitantes que atravessavam a Avenida Rio Branco sem olhar. Passava um carro a cada 15 minutos, mas os camelôs, como hoje, agitavam as calçadas. Em suas bancas, faixas de um Brasil campeão mundial que estampavam o peito dos confiantes torcedores e bandeiras nacionais que enfeitavam os carros. Havia quem gritasse dos bares e quem respondesse de dentro das lotações. Era o oba-oba, era a certeza, era a comemoração antecipada. Mesmo com metade da população atual, a animação era muito maior. Além dos discursos políticos na concentração, que impediam o sossego dos jogadores para promover campanhas para a eleição presidencial daquele ano. Não havia polícia nem quem contivesse os visitantes ao centro de preparação no Alto da Boa Vista.

Na época, a comunicação era um horror. Sem satélite ou telefone celular, a transmissão do rádio exigia a compra de uma linha com antecedência. Só que, aquele dia, se levou ao Maracanã uma multidão de espectadores, levou também um mundaréu de emissoras. Eram locutores e comentaristas do mundo inteiro e, naquela confusão de procurar os cartões identificadores, perdi a minha linha. Perguntei, chorei, implorei e nada, assim como aconteceu com outros colegas, que não achavam seus cartões. Não deram muita atenção ao meu desespero, porque priorizavam a procura do fio da BBC de Londres, da Rai da Itália, e me menosprezaram por ser um garoto do interior. Então a minha estação decidiu sair em rede pendurada em uma grande rádio de São Paulo.

O Brasil havia enfrentado bons adversários. O Uruguai, nem tanto. A seleção nacional trazia a base do time do Vasco, na época o melhor do país. Mas esqueceram que, antes da Copa, os uruguaios haviam jogado dois amistosos contra a seleção. Ganharam um e perderam, por pouco, o outro, o que já mostrava a força daquela equipe. No segundo tempo, o Ghiggia me dá aquele chute, que eu pensei ser um cruzamento. O Barbosa também. O goleiro deixou uma brecha no gol preparado para interceptar o cruzamento. Cruzou nada. Entrou no pé da trave esquerda. Ele poderia repetir mil vezes aquele chute que não entraria de novo. Aí foi aquela tristeza. Primeiro, veio o silêncio no estádio, assim que o Uruguai fez o gol. Um silêncio esquisito, o Maracanã parado. Todo mundo em êxtase, sem entender o que estava acontecendo. Quando o juiz apitou o fim do jogo, foi aquela choradeira geral. Gente se abraçando, gente se descabelando. No meu caso, chorei mais de raiva. Uma frustração que, para mim, aos 18 anos, se misturava à de não ter transmitido aquela final histórica.

*Colaborou Viviane Vieira.