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12/06/2014Dia 13 de julho a Cidade Maravilhosa abriga a decisão do maior campeonato de futebol do planeta, 64 anos depois da festa adiada pelo triunfo uruguaio sobre os brasileiros. Em 1950, os ventos da redemocratização, com o fim do Estado Novo, e da industrialização traziam efervescências às metrópoles. Pela primeira vez, a população urbana superava a rural. Ascendiam as lutas de classes e as reivindicações por serviços públicos de qualidade, pautas hoje oxigenadas pelas greves às vésperas do torneio e pelas manifestações iniciadas há um ano. O debate sobre a capacidade e a prioridade de sediar uma competição desse porte era inaugurado nos Fla-Flus retóricos entre o jornalista Mário Filho e o vereador radialista Carlos Lacerda — o Maracanã como metonímia da divergência. Símbolo de coesão social, o ex-Maior do Mundo vê-se sob o espectro da elitização, observa o cientista político Cesar Romero Jacob, diretor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. O estádio, cuja reforma para o Mundial custou R$ 1,3 bilhão aos cofres públicos, pode até ter perdido o tônus popular e o charme original, mas conserva a majestade que o fez emblema do "Brasil realizador" conveniente ao Estado-nação, cujo discurso propalava um país em emergência na política, na economia, nas artes, e cuja capital ebulia nos bares da Cinelândia e nas areias de Copacabana.
De lá para cá, os 1,2 mil quilômetros quadrados da cidade ganharam muito mais gente, carros, bairros, túneis. A população quase triplicou — de 2,3 milhões para 6,4 milhões — e sobrecarregou o transporte, a saúde, o saneamento, a moradia. A (i)mobilidade tornou-se uma pedra no sapato do carioca, que passa horas crescentes no trânsito e ao celular. Se o salário-mínimo praticamente dobrou (do equivalente a R$ 390 para R$ 724) e o ingresso mais caro da Copa saltou do equivalente a R$ 154 para R$ 1.980, segue, por exemplo, a luta contra a inflação (em 1950, somava 12,4%; hoje, 5,91%) e as matrizes energéticas continuam no centro da agenda governamental. Conserva-se também a ambição de projetar para o mundo a imagem de nação moderna, "realizadora", estruturalmente estável.
Se antes a cidade se concentrava nela mesma, em 2014 os seis milhões de habitantes recebem 700 mil que vêm e vão todos os dias da Baixada Fluminense. Para o economista e ambientalista Sérgio Besserman, presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável e especialista em sustentabilidade, o Brasil e o Rio ainda carecem de planejamento e governança para melhor tomar decisões coletivas e implementá-las:
— Tanto naquela época quanto hoje, o movimento populacional mais caótico de toda história da humanidade é a urbanização brasileira. Ela se dá com muito pouco planejamento e sem política habitacional — avalia.
No campo da cultura e da badalação noturna, o Rio aproveita o legado (sem a conotação pejorativa recentement incorporada) de ex-capital. Ao agito do Centro, somou-se a glamourização da Zona Sul; e as mulheres trocaram os cabelos arrumadinhos com laquê pelos fios vibrantes ondulados pela globalização. No fluxo entre os bairros, o início do fim dos bondes era ditado pela inserção da tecnologia dos ônibus, hoje consagrados na expansão do BRT. Já naquela época, a mobilidade urbana priorizava a rodovia: a Via Dutra pretendia facilitar a integração, como hoje pretende a Transcarioca.
O Brasil de Carmen Miranda, símbolo da desejada guinada brasileira rumo à maior visibilidade no mundo, suspirava pelas radionovelas e ensaiava, sob a tutela de Assis Chateaubriand, o triunfo da televisão como meio comunicador de massa. Enquanto a pequena tela ainda não integrava o cotidiano, sessões no Cineac Trianon exibiam os melhores momentos e os gols das partidas. O samba, um dos marcos da carioquice, abria alas para a criação das Escolas de Samba e se unia ao compasso do jazz americano para revolucionar a música brasileira com o que o país chamaria de Bossa Nova. Se a Marcha do Scratch Brasileiro embalava os sonhos pelo título inédito, Lamartine Babo e Silvio Caldas dão lugar ao batuque globalizado de We Are One, de Pitbull, Jennifer Lopez e Claudia Leitte. Os hits regionais de Luiz Gonzaga hoje encontram eco no sertanejo universitário e no funk das comunidades. A estética de Le Corbusier, criador da escola carioca de arquitetura, dá o tom da arte de Oscar Niemeyer, ora consonante às estruturas modernistas que se conjugam aos prédios históricos da paisagem urbana. Entre semelhanças e contrastes, o Cristo Redentor se abre aos 600 mil turistas dispostos em ver se o futebol brasileiro continua o mesmo que o levou ao pentacampeonato.
Embora a capacidade de planejamento tenha melhorado ao longo dos mais de 50 anos que dividem as duas Copas sediadas no país, as dificuldades em planejar um Mundial e os atrasos na entrega dos estádios parecem congeladas no tempo. Assim constata a jornalista Beatriz Farrugia, autor do recente “1950: O preço de uma Copa”. Ela pondera que o torneio não tinha a proporção gigante: eram apenas seis cidades-sede (metade das atuais e quase 1/3 das pretendidas pelo governo brasileiro em 2007). Devido à proximidade com o fim da Segunda Guerra, nem todas as seleções vieram para a Copa, nem o país atraiu algo perto dos 600 mil turistas esperados para o Mundial que começa na próxima quinta-feira. Por este motivo, explica, não houve uma grande obra de infraestrutura nas cidades-sede:
— Não foi construída nenhuma rua, nenhum terminal, nada. A preocupação era somente com os estádios. Como a região do Maracanã sofria com enchentes, foi necessário promover algumas obras de aterro, alargamento de vias ao entorno e construir linhas de bondes para atender a região.
Para Besserman, o saneamento básico continua o principal "vexame brasileiro" em termos de obras estruturais, um símbolo da desigualdade crônica do país. Apesar de reconhecer um avanço na área, ele considera as metas atuais “muito pouco ambiciosas”.
— O Brasil continua sendo uma sociedade muito desigual — ressalta o ambientalista — A vida nas comunidades e nos lugares mais pobres era muito pior. Além da falta de recursos básicos, a expectativa de vida era mais baixa e a violência doméstica, maior — pondera.
“Política hoje é estável e quer se projetar para o mundo, mas padecemos ainda com inflação e energia”
A promoção de uma Copa do Mundo tem propósito internacional. Se em 1950 sediar a competição representava a projeção de um país em crescente face às potências mundiais, em 2014, ser anfitrião pretende propagar a imagem de um Brasil moderno, democrático, de economia estável e desigualdade social reduzida. Enquanto o contexto, há sessenta e quatro anos, era de redemocratização com o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas, de industrialização e de urbanização, hoje a mensagem é de Estado emergente, integrante dos Brics, com maior peso geopolítico e econômico.
A organização do Mundial e os gastos com as obras opunham Mário Filho e Carlos Lacerda, cujos argumentos revivem hoje nos discursos opostos de Eduardo Paes e Marcelo Freixo. (Leia mais no fim da matéria.) Com a Copa em ano de eleição, o então presidente Enrico Gaspar Dutra padecia frente à inflação em alta e à crise energética, como hoje Dilma Rousseff orquestra campanha sob críticas em relação à alta dos preços e às especulações de racionamento de energia. Para o professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Ricardo Ismael, com o avanço da indústria e da migração para os centros urbanos, coloca-se a luta de classes e a atenção aos serviços públicos nos debates políticos, da mesma forma que as greves sindicais e as manifestações de Junho inserem hoje reivindicações na agenda governamental.
Ismael recorda a instabilidade presente na estrutura política de 1950. Na época, os eleitos não tinham garantia que assumiriam, tampouco que cumpririam seus mandatos até o fim, inconstância que culminaria no golpe de 1964. Para o professor, essa é a mudança qualitativa do sistema, embora o cenário atual exponha o distanciamento da população e da política. Sem a iminência de um golpe, o Brasil pode avançar na erradicação da fome e da pobreza, mas ainda com temas comuns a 1950, como o crescimento do país.
No Rio entre duas Copas, a geração do rádio dá luz aos nativos da televisão e das redes sociais. Enquanto os políticos precisavam se empenhar em transmissões radiofônicas e comícios de rua, os homens públicos de hoje somam a estas plataformas os meios digitais, transmidiáticos, nos quais os discursos passaram a ser pensados por marqueteiros e guiados por pesquisas. Segundo Ismael, a repercussão aumenta com o alcance: a tônica política do século XXI.
Desde 1950, luta contra inflação, aumento do custo de vida e inserção da mulher no mercado
A economia brasileira sofreu grandes transformações em relação ao período dosanos 1950. A conjuntura econômica atual é muito mais complexa, mas, apesar disso, é possível identificar muitas semelhanças entre os dois períodos. Naquela época, a indústria brasileira apresentava dois aspectos relevantes: de um lado, empreendimentos focados na produção de bens perecíveis e semiduráveis, destacando-se particularmente as indústrias têxtil, alimentar, gráfica, editorial, de vestuário, fumo, couro e peles; de outro, empresas inteiramente nacionais, normalmente gerenciadas pelo núcleo familiar proprietário. O salário mínimo praticamente dobrou (de R$ 390 para R$ 724), o ingresso mais caro da Copa saltou de R$ 154 para R$ 1 980 e a luta contra a inflação (em 1950, somava 12,4%; hoje, 5,91%) e as matrizes energéticas continuam no centro da agenda governamental. Segundo o professor Luiz Eduardo Pestana, do Instituto de Economia da UFRJ, a vida era muito mais simples:
- Você tinha muito mais simplicidade e vivia com muito menos, hoje temos mais facilidade e diversificação de produtos feitos pelo mercado. Hoje existe uma série de dificuldades inerentes à vida moderna. Pela vida ser mais complexa, é muito mais cara.
Por causa de marca, patente, concorrência, propaganda, é tudo mais rígido. A economia brasileira em 1950 cresceu 6,8% e chegou a um PIB de R$ 234,7 bilhões – em valores corrigidos para preços de 2012. A agricultura, que respondia por 25% da economia do país, hoje responde por apenas 5,24%. Em 2014, ele diz, o panorama é muito diferente: há uma economia consolidada e a presença de uma indústria moderna, autônoma. Segundo Pestana, alguns erros cometidos na Copa de 1950 se repetiram em 2014. Havia também alguns problemas econômicos semelhantes, como a presença da inflação.
- Naquela ocasião, o próprio Maracanã não ficou pronto para a Copa e agora estamos como estamos. Existe uma propensão quase fatal para errar que a economia brasileira não assimilou. O Brasil não olha para trás e vê sua história de forma objetiva de tal forma que tentasse corrigir esses erros.
Uma característica atual que difere fortemente dos anos 1950 foi a introdução gradual da mulher no mercado de trabalho. De acordo com o professor, hoje a mão de obra feminina tem uma presença importantíssima na economia, inclusive uma posição de destaque.
“Ênfase na malha rodoviária dos anos 1950 se reflete hoje em mobilidade deficiente”
Filas intermináveis dos coletivos, caos no trânsito, impaciência dos passageiros dos ônibus que ligam a Zona Norte ao Centro do Rio de Janeiro. Se na década de 1950 o grande problema enfrentado pelos 1,6 milhão de passageiros (trens, bondes e lotações) era a pouca opção de destinos, hoje o trânsito é o maior dos percalços de quem utiliza o transporte público. Em consequência, os tempos em que os bondes eram os meios de transporte mais utilizados estavam chegando ao fim, pois apresentavam constantes problemas técnicos e incapacidade de suportar maior número de viagens para atender a sua nova demanda.
A lotação era uma espécie de micro-ônibus com capacidade de até 20 passageiros sentados. Com o crescimento da demanda, ampliaram a filiação com algumas frotas de ônibus. Ainda que com a expansão de meios de transportes no Grande Rio, os moradores das áreas mais afastadas da urbe sofriam. Hoje aposentado, Waldir Ferreira Leite lembra o “perrengue” para pegar três conduções para chegar ao trabalho, no centro da cidade. Seu dia começava cedo para não perder o horário do trem que o levava até Cascadura para depois pegar o bonde a caminho do local det trabalho. Waldir relembra que podia contar com as lotações, porém eram poucas que circulavam ao seu alcance.
O empenho das autoridades brasileiras em construir a Via Dutra (atualmente conhecida como Rodovia Presidente Dutra) ligando São Paulo ao Rio de Janeiro – duas principais economias urbanas do país – fortaleceu o objetivo de priorizar o desenvolvimento dos transportes rodoviários para mudar a mobilização, deixando os ferroviários como segunda opção. Ricardo Esteves, professor da PUC-Rio, aponta o motivo inicial do atual excesso de automóveis na cidade.
– O grande impacto da Via Dutra foi abrir mais um canal e mais um espaço e mais uma manifestação política de incentivo aos automóveis, e isso não foi muito positivo, pois era um investimento para ligar as duas principais rodovias do país através de um modelo rodoviário. Rio e São Paulo eram ligadas por ferrovia, mas, em vez de reformar a malha ferroviária a partir de uma estrutura existente, reforçaram as instancias rodoviárias – relatou o professor de Arquitetura e Urbanismo.
Apesar de começar a ser feito testes operacionais em metrôs (1997) e uma reforma na malha ferroviária (1998) em função de adicioná-los à sociedade como transporte de massa, atualmente o transporte público mais utilizado é o ônibus, responsável por 78% dos passageiros da cidade. A implantação do BRT (Bus Rapid Transit) para eventos como Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016 é um reflexo da prioridade a transportes rodoviários na cidade, que, de acordo com Esteves, poderiam ser de melhor proveito se os passageiros tivessem fácil acesso a outras opções.
– O grande legado da Copa seria um investimento mais pesado em sistemas urbanos de alta capacidade, como as linhas de metrô. E talvez a quebra do paradigma anterior, ou seja, se em 1950 nós tivemos uma ênfase muito grande nas soluções rodoviárias, agora poderíamos reverter esse quadro em 2014, investindo em soluções ferroviárias.
De acordo com Alfredo Britto, arquiteto e urbanista (FAU-UFRJ - 1961), a qualidade de vida na década de 1950 era melhor se comparada a hoje. Com uma pequena população o espaço da cidade era mais bem distribuído, as pessoas eram mais organizadas e havia menos problemas agudos do que se tem hoje. Além disso, a vida da população tinha uma velocidade bem menor, e, portanto, mais fácil de ser administrada. Essa década também ficou conhecida pela formação das favelas. Com a construção da Via Dutra em 1951, considerada a rodovia mais importante do país, uma parte da população teve suas casas desapropriadas para as obras.
– Mas o fator principal foi a incapacidade da cidade absorver e dar condição de moradia a população que triplicou – conclui Alfredo Britto.
A cidade seguia a lógica da segregação espacial, com a localização residencial em função dos empregos e dos serviços urbanos. O levantamento é da Aglomeração Paulistana, divulgado em 1944, e feito pela equipe do padre Lebret, criador do Centro de Pesquisa e Ação Econômica Economia e Humanismo. Assim, as classes altas e médias altas moravam perto do centro onde estavam seus empregos e seus serviços; os operários ficaram próximos das fábricas; e os excluídos ficavam longe de tudo.
“Desalojamentos para urbanismo geraram favelas, mas relação com o asfalto era mais harmoniosa”
Na década de 1950, a cidade do Rio de Janeiro passava por diversas transformações em sua paisagem. Na arquitetura, surgiu a Escola Carioca – estilo influenciado por Le Corbusier e desenvolvido por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira e Ernani Vasconcellos. O Edifício Gustavo Capanema é o principal marco dessa Escola e nele estão reunidas as principais características do estilo. O modernismo tinha uma estética que fugia da ornamentação e buscava uma clareza de linhas e formas.
– O auge da manifestação dessa cidade modernista pode ser encontrado na Avenida Presidente Antônio Carlos e em algumas regiões que foram objeto de intervenção – relata o Professor de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio Ricardo Esteves.
Transformações podiam ser percebidas também no tipo de habitação da família carioca nos anos 1950. No bairro da Tijuca é possível observar os edifícios surgidos na época. Tinham em média quatro pavimentos, sem elevador e sem garagem. Posteriormente, surgiram prédios com garagem, devido ao incentivo à compra e utilização de automóveis. A implantação do modelo rodoviário gerou a necessidade de intervenções na cidade para que rodovias como a Via Dutra e Avenida Brasil pudessem ser construídas. Dessa forma, assim como na preparação para a Copa de 2014, pessoas tiveram de ser desalojadas.
Esse processo podia ser ainda pior em 1950, na opinião de Esteves, uma vez que não existiam as convenções que existem hoje, como o impedimento de realocar da população para longe de sua área de trabalho. Esses deslocamentos iniciaram a favelização dos morros cariocas, mas a relação entre morro e asfalto era mais harmoniosa, quase romanceada, diz o professor. Ainda que já existisse, o jogo do bicho não era atrelado ao tráfico, exemplifica. Ele pondera que a estética da favela nunca foi muito apreciada e já havia intervenções para garantir "a beleza do cenário".
O Maracanã foi construído para a Copa de 1950 e sua arquitetura era voltada para a estrutura: os pilares e os arcos vistos na fachada. Segundo o professor de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio Alder Catunda, nesta época, o Brasil era de ponta em estruturas de concreto armado. O estádio tinha uma laje plana que permitia a leitura da pureza da forma, exatamente o que a estética modernista representava, explica. O especialista afirma que, com o chamado “Padrão FIFA”, a preocupação é maior no sentido de mudar a ambiência do estádio, transformando-o num espaço de entretenimento além do futebol. A reforma descaracterizou o Maracanã totalmente, é outro estádio, sintetiza.
Regionalização da música: Baião e Bossa Nova abrem alas para sertanejo e funk
Assistir aos jogos da Copa do Mundo pela televisão é tradição para famílias e ponto de encontro dos amigos nos bares da cidade. No entanto, em 1950, a única forma de ver ou rever as goleadas era no cinema Cineac Trianon – cinema da época que exibia somente documentários, cinejornais e desenhos animados –, na Cinelândia, ficavam completamente lotadas. Mas, o responsável pelas transmissões das partidas era o rádio, que vivia nesse momento seus anos dourados. Ele era o principal meio de comunicação da época. Os cariocas vibraram as vitórias e as derrotas com as orelhas grudadas nos radinhos de pilha. O jornalista Léo Batista começou sua carreira como locutor. Ele relembra o dia da Final entre Brasil e Uruguai, quando veio ao Rio transmitir o jogo, com 18 anos na época. A falta de recursos impediu a transmissão do jogo que entrou para a história do país do futebol:
– Eu era locutor esportivo da Rádio Difusora de Piracicaba. Quando cheguei ao Maracanã para transmitir o jogo, encontrei uma multidão de espectadores e jornalistas de vários países do mundo. Naquela época, fazíamos as transmissões por linhas e como havia muitas emissoras, muitos cabos se perderam e um deles foi o meu. Quando o juiz apitou o fim do jogo, primeiro veio o silêncio. Depois foi um choro absurdo. Eu chorei de frustração por não conseguir transmitir.
O momento era fértil para a música brasileira. Novos gêneros surgiam e músicas regionais, como o baião de Luiz Gonzaga, tornavam-se nacionalmente conhecido. No samba e na MPB, nomes como Ary Barroso, Orlando Silva, Dolores Duran e Silvio Caldas eram os grandes músicos da época. O rouxinol brasileiro, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins trocavam alfinetadas através de músicas que foram sucesso nos rádios. Hoje, a regionalidade musical também marca as paradas de sucesso dos rádios. O sertanejo universitário e o funk das comunidades tomam conta das programações do dia carioca. A música também marcou a Copa de 50. Segundo o professor de Comunicação da PUC-Rio e jornalista Claudio Roquette Bojunga, "não havia torcida organizada gritando 'ola', mas sim 200 mil pessoas cantando As Touradas de Madri, do Braguinha". Um baile, ele recorda. Em 2014, o hit criado para a Copa é a música We Are One, nas vozes da cantora brasileira Claudia Leitte e os americanos Jennifer Lopez e Pitbull.
Os anos dourados do rádio viviam seus momentos de glória com as radionovelas e programas de auditório. Um dos programas mais famosos era apresentado por Cesar de Alencar e tinha a participação de diversos artistas, como Emilinha Borba. A programação cultural do Rio em 1950 também era intensa. Abrangia desde o Festival de Bach, no Teatro Municipal, até a polêmica e extravagante comédia Cutuca por Baixo, estrelada por Dercy Gonçalves. Em meados do século passado, também começavam os tradicionais desfiles das escolas de samba nas ruas. O ator, escritor e sambista Haroldo Costa relembra que as escolas de samba eram menores, um grande bloco, sem a proporção de hoje. No cinema, a cantora Carmem Miranda estava no auge da sua carreira internacional, projetando o Brasil para o mundo. A famosa vida boêmia do Centro do Rio e da Lapa também era a principal referência da cidade. O jornalista Teixeira Heizer afirma que a cidade não era a Zona sul, mas sim o Centro do Rio. Os cinemas e as boates da Cinelândia agitavam a noite da época. Hoje, a vida noturna do Centro do Rio ainda é ponto de encontro dos cariocas.
Vestidos rodados, rádio, centro versus jeans, redes sociais e Zona Sul
Sessenta e quatro anos após a Copa do Mundo de 1950, o maior evento esportivo do mundo está de volta ao Brasil e encontra um Rio de Janeiro muito diferente. A população da cidade triplicou e a quantidade de automóveis nas ruas é assustadoramente maior. Os 57,5 mil veículos da época – todos importados – parecem piada perto dos atuais 2,5 milhões. Os charmosos bondes, que rasgavam a cidade e eram o principal meio de transporte, só existem na memória. Esse é o caso do famoso Bonde São Januário – popularmente conhecido como o 53 – que foi tema de uma canção de Ataulfo Alves. Nos dias de hoje, não há sequer um bonde em circulação, apesar de haver um projeto de revitalização dos bondes de Santa Teresa, os quais deveriam ser inaugurados antes do início da Copa. O sistema BRT, os trens e o metrô tornaram-se as principais opções de transporte no Rio.
Nos anos 50, bairros como Lagoa e Leblon não possuíam o status que têm atualmente. Ipanema era considerada emergente e a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes eram apenas imensos e desabitados areais. Por outro lado, Copacabana era o bairro mais valorizado da cidade e uma caminhada pela então arborizada Av. Rio Branco era uma experiência agradável. E, como se não bastasse, da Praça Paris, na Glória, era possível ver o mar.
O paletó esporte, em casimira inglesa e manga forrada em seda e três botões, foi parar no armário. Entre as mulheres, vestidos rodados com cintos modelando a cintura e permanente no cabelo eram comuns na época. Hoje, estão apenas na lembrança. A calça jeans e a camiseta tornaram-se as peças de roupa mais comuns entre os cariocas.
Atualmente, a tecnologia possibilita que todos acompanhem os jogos de qualquer lugar, a qualquer hora. Contudo, em 1950, as coisas eram diferentes. Sem TV (o aparelho só chegou em setembro, dois meses após o fim da Copa), os gols eram vistos no cinema e as partidas acompanhadas pelo rádio. Dois ou três dias após cada partida, os melhores momentos eram disponibilizados e exibidos para uma ávida multidão. As sessões do Cineac Trianon – cinema da época que exibia somente documentários, cinejornais e desenhos animados –, na Cinelândia, ficavam completamente lotadas.
Em 1950, dois jogadores eram considerados os craques da seleção brasileira: Zizinho e Ademir Menezes. O primeiro, ídolo do Flamengo e considerado ídolo por Pelé, maravilhou os torcedores na Copa de 50 com seu estilo de jogo. Mesmo com a derrota para o Uruguai na final, foi considerado o melhor jogador daquela Copa. Já Ademir, popularmente conhecido por Queixada, foi o artilheiro da Copa de 1950 no Brasil. Na Copa de 2014, os brasileiros depositam a sua esperança nos pés de Neymar.
Fla-Flu sobre a realização da Copa encontra eco em 1950 “Pobre de um país que se parece com o Maracanã: explorado, mal acabado e prestes a ruir. Os estádios não ficarão prontos. Os gastos com a Copa do Mundo são absurdos e deveriam estar alocados na educação e na saúde.” As farpas contra a Copa soa familiar, atual, mas remonta à organização do Mundial de 1950. Foram disparadas pelo radialista e vereador Carlos Lacerda, em 1947, num Fla-Flu que travava com um dos principais entusiastas da emblemática construção, o jornalista Mário Filho, dono do Jornal dos Sports, que daria nome ao estádio. Para Mário Filho e os getulistas, o Maracanã não se insinuava só o maior templo do futebol mundial, mas, principalmente, o cartão de visitas capaz de mostrar ao mundo a emergência de um país baseado na miscigenação positiva propagada por Gilberto Freyre – e da qual o "futebol-arte" se tornava um emblema. A polarização entre Lacerda e Mário Filho se renova, observa Cesar Romero Jacob, com os movimentos contra a Copa lubrificados pelas redes sociais. A diferença, explica o cientista político, estão na agenda de reivindicações e na dimensão do torneio: – Hoje a mobilidade urbana se incorpora à pauta de reivindicação, além da saúde e da educação. Outra diferença é que, naquela época, se discutiu se o Brasil receberia ou não a competição. Não houve isso há sete anos, quando o país foi escolhdo para sediar o Mundial de 2014. Todas as forças políticas aplaudiram a decisão. Não dá para comparar a dimensão da Copa, hoje com 32 seleções, e nem o PIB do Brasil (soma das riquezas nacionais). Claro que se gastou muito mais nesta Copa. O Maracanã era – e é – a metonímia da divergência. Por exemplo, quando Lacerda, representante das vozes contra os gastos, questionou a segurança da engenharia do projeto, Mário Filho contra-atacou com uma imagem que seria imortalizada: a foto do jornalista, de terno branco e charuto, a la Churchill, na arquibancada viria com a legenda “O Maracanã não cai”. Romero Jacob reconhece o papel do estádio para a integração social e a quebra da estratificação de classes. Ele lamenta que tenha ficado “inacessível ao povão", mas ressalva: "isso possa mudar”. À batalha retórica, protagonizada por Mário Filho e Lacerda, soma-se outro ponto em comum entre os contextos pré-Copas de 1950 e de 2014: as eleições para presidente e governador. Futebol e política tornam a tabelar. – As forças políticas que estão fora do quadro federal ou estadual, sobretudo no Rio e em São Paulo, não querem que os governos de situação se beneficiem com a Copa. Dilma Rousseff, Luiz Fernando Pezão e Geraldo Alckmin, por exemplo, são candidatos a um novo mandato. Querem atrapalhar um possível sucesso. Prova disto é que o movimento se concentra nas 12 cidades-sede. Nos outros 15 estados não existe problema na educação e na saúde? – pondera o cientista político. (Júlia Cople) |
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