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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


Crítica de Cinema

Ancoragem nos tempos atuais é um dos méritos de "Getúlio"

*Miguel Pereira - aplicativo

01/06/2014

 Divulgação

Ao optar por não fazer uma biografia de Getúlio Vargas, o cineasta João Jardim fez a escolha certa. Concentrou sua narrativa nos últimos dias de vida do presidente. Com isso, evitou as lacunas naturais de uma existência complexa e contraditória dessa importantíssima figura pública brasileira. Por outro lado, a virtude tornou-se um desafio não apenas para o roteiro, mas, principalmente, para a direção. 

A concentração das ações dramáticas deveria oferecer ao espectador um ponto de vista dos fatos em coerência ao relato. O espaço cênico do palácio do Catete ambientou, adequadamente, o drama vivido pelo personagem. Interiorizou o drama pontuado pelo seu principal antagonista, o deputado Carlos Lacerda. Assim, essa dimensão tornou-se vital para compreendermos os conflitos do personagem. 

A câmera inquieta de Walter Carvalho ajudou muito na montagem desse clima. Também a concentração temporal exigia um foco mais preciso no conteúdo do filme. Nele, os últimos dias de Getúlio no poder foram de revelações pessoais muito decepcionantes: traições, inclusive de membros de sua própria família, escândalos, corrupção, atentados, enfim, tudo teria acontecido sem que ele tivesse conhecimento. Essa escolha dramática parece um pouco ingênua e superficial, até porque as pesquisas científicas estão longe de esclarecer o episódio. Ninguém deixa a vida com uma carta-testamento como a de Getúlio sem uma avaliação profunda da própria trajetória. Claro que essa abordagem é uma legítima liberdade poética do cineasta João Jardim.

O que importa mesmo em Getúlio é o seu significado atual. A reflexão sobre os últimos dias de um presidente é aplicável a situações semelhantes que se observam pelo mundo afora. No nosso caso, esse período constitucional da presença de Getúlio no poder da República foi marcado por iniciativas nacionalistas evidentes. Contrariou interesses internos e externos. O filme não aprofunda esse lado. Fica mais na decepção pessoal. De uma forma ou de outra, essas questões estão lá como pano de fundo. 

A maneira como os protagonistas dessa história são vistos pelo olhar de João Jardim é sempre indagadora. Não há vencedores nem vencidos. A tragédia é brasileira e se arrasta há muitos anos. Aqui está a mais importante contribuição do filme ao debate nacional. Não é por outro motivo que continua em cartaz e bem aceito pelo público.

Boas interpretações, com destaque para Tony Ramos, uma fotografia exemplar de Walter Carvalho, uma visão livre sobre os fatos históricos e uma ancoragem nos tempos atuais são presenças importantes neste Getúlio de João Jardim.

* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.