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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Mundo

"Superficialidade da mídia naturaliza a barbárie"

Jana Sampaio e Júlia Cople - aplicativo - Do Portal

14/05/2014

 Fotos Públicas / Flávio Sandoval

Embora haja “foco muito grande” na cobertura jornalística da violência no Brasil, a representação ainda é feita de modo superficial. Assim avalia a professora da Queen’s University de Belfast Andrea Mayr, cujos estudos serão debatidos nos seminários sobre Mídia e Representação, entre 13 e 15 de maio, na PUC-Rio (sala K102), das 14h às 17h. Para a especialista, reportagens reproduzem um estereótipo associado à criminalização do morador de favela. Revelam, portanto, racismo no tratamento desses temas e "perdem a oportunidade de aprofundar as causas e consequências" dos fatos noticiados. "A mídia restringe o debate, só fala dos sintomas", resume. Desta forma, argumenta Andrea, naturaliza-se a barbárie e contribui-se para uma sensação de medo crescente e para o recrudescimento de discursos e práticas radicais, desde a execução de (supostos) bandidos até sugestões referentes à volta da ditadura.  

Em entrevista ao Portal, a norte-irlandesa avalia que não raramente o sensacionalismo contamina o noticiário brasileiro, com a exposição de “imagens fortes que jamais seriam vistas nos diários britânicos”. Ela alerta também para o avanço do "infotenimento", simbiose entre informação e entretenimento, que se reflete nna transmissão de “atitudes drásticas”,  sem a “reflexão quanto àss raízes de comportamentos extremnistas”. Reflexão que, ainda de acordo com a especialista, tem ficado a cargo das mídias independentes e de redes sociais. Pois a evolução tecnológica, lembra, favoreceu a lógica do "jornalismo cidadão", apesar da “data de validade” das informações. Atenta às táticas de segurança escaladas para o Mundial, Andrea reforça com eloquência o coro dos que sugerem mais investimentos em educação: "Com a Copa, o investimento tem sido instalar câmeras nas favelas, aumentar o número de policiais nas ruas, mas nada disso resolve. O investimento deveria ser para tentar resolver outras questões, como a educação".

Portal PUC-Rio Digital: A cobertura jornalística brasileira sobre a violência se intensificou? O que mudou?

Andrea Mayr: Ainda não pesquisei o assunto com profundidade. Mas tenho percebido um foco muito grande em temas ligados à violência. Os jornais cariocas têm uma seção dedicada ao assunto, desde segurança pública até polícia. O assunto ganhou ainda mais atenção após a explosão do tráfico de drogas. Claro que as cidades se tornam mais violentas com o decorrer do tempo, mas não acho que esse foco excessivo nos crimes cometidos contra pessoas simples seja bom para a sociedade. Na minha opinião, essa questão tem ligação direta com o racismo, porque os crimes noticiados são violentos e o esteriótipo do criminoso é de um rapaz negro que usa determinado tipo de roupas.

Portal: Quais aspectos a senhora destaca na cobertura jornalística brasileira nessa área?

Andrea: Acho que a cobertura sobre violência ainda é superficial. Como eu disse, o foco é muito voltado ao indivíduo que mora na favela, na criminalização de certas pessoas. Nesse ponto, a cobertura brasileira se assemelha à britânica. Se você vê um jovem negro usando bermudas e boné, imediatamente associa sua imagem à de um criminoso. O foco nessas pessoas e a discussão sobre a estruturação da violência não são suficientes para resolver o problema. Acredito que, quanto mais se fala sobre violência, mais violentas e nervosas as pessoas ficam. Quando a mídia mobiliza a população sobre a pacificação, as UPPs, por exemplo, isso aumenta a sensação de medo. Quanto mais se fala sobre o assunto, mais preocupada a sociedade fica. Todas as pessoas com quem eu converso sobre o tema apontam o investimento em educação como a primeira medida a ser tomada para superar a violência. Com a Copa, no entanto, o investimento tem sido instalar câmeras nas favelas, aumentar o número de policiais nas ruas, mas nada disso resolve. O investimento deveria tentar resolver outras questões, como a educação.

Portal: Na sua opinião, quais são as principais diferenças entre a imprensa brasileira e a britânica?

Andrea: No jornalismo inglês, vemos muitos tablóides, enquanto aqui no Rio o único que vi foi o Meia Hora, que tenho lido todos os dias. A impressão é de que, no Brasil, a importancia dada à qualidade jornalística é maior. Não sei como funciona a lei de privacidade aqui, mas, no Reino Unido, os jornalistas têm liberdade para falar sobre quaisquer assuntos, porque lá não temos “privacidade”. Quanto aos tablóides, a maior diferença em relação ao jornalismo sério é que podem publicar uma reportagem sem ouvir as instituições envolvidas, como a polícia. O que pude notar aqui é que existe uma grande discussão sobre os moradores das favelas serem invisíveis para a mídia e a sociedade. Mas acredito que não se trata de uma questão restrita ao “favelado” e sim à parcela mais pobre da sociedade como um todo. Aqui, eles são ouvidos quando acontece alguma coisa pontual. Não necessariamente os meios de comunicação publicam a versão correta, mas eles têm voz. Isso faz parte de um problema mundial, uma crise do jornalismo.

Portal: Como podemos contornar essa suposta crise do jornalismo na representação da violência?

Andrea: Vários jornais brasileiros fazem uma cobertura mais focada nas notícias locais, de forma a deixar de lado a perspectiva nacional. Acredito que seria de grande importância se os temas fossem expandidos. Assim, poderíamos compreender melhor algumas coisas.

Portal: Cobertura aprofundada exige, entre outros fatores, mão de obra e recursos qualificados, ao passo que se observa, nos últimos anos, um enxugamento das redações. Como resolver este conflito? 

Andrea: Claro que uma cobertura mais ampla demanda mais pessoal, espaço e tempo, porque é um trabalho de 24 horas por dia. Normalmente, os jornalistas vão às favelas, principalmente para falar com as pessoas de lá, o que é muito perigoso. Não sei qual seria a melhor solução, mas é preciso reconhecer que a cobertura de violência é rasa. Por exemplo, há duas semanas, quando uma mulher teve seu colar roubado durante uma entrevista para a TV sobre o aumento de roubos na região, a notícia dela sendo roubada foi repetidas várias vezes. Acredito que isso é um recurso das agências de notícia que buscam sempre a novidade, o sensacionalismo.

 Júlia Cople Portal: Diante da superficialidade que a senhora observa na cobertura sobre violência, há espaço para grandes reflexões ou uma cobertura mais crítica na imprensa tradicional brasileira?

Andrea: Acredito que, cada vez mais, esse papel de reflexão está sendo das mídias independentes, muito presentes nas redes sociais. Algumas delas fazem uma cobertura com o ponto de vista de quem está naquela situação. Assim como a Mídia Ninja, por exemplo. Não diria que os jornais são superficiais, mas acredito que muitos informam o que é de interesse do governo.

Portal: Há uma histórica divergência sobre o teor da cobertura jornalística de violência. Enquanto algumas empresas de comunicação evitam chocar o espectador ou o leitor, outros abrem espaço para cenas fortes, até como meio de angariar público. Como a senhora avalia tais correntes?

Andrea: Estou impressionada com as imagens que podemos ver na mídia brasileira. A foto do corpo do dançarino DG, por exemplo, nunca seria visto no Reino Unido. Aqui, a gente pode ver o corpo ensanguentado ainda estirado no chão, na mídia e nas redes sociais. Já vi outras imagens de pessoas carregando um corpo ensanguentado pelas vielas de uma favela. Então, novamente, é possível ver esse tipo de imagem em detalhes. Não acredito que isso seja bom. Pelo contrário, só contribui para que haja mais violência. Talvez ainda acreditem que isso pode ajudar, porque seria uma forma de chocar as pessoas, num primeiro momento, com a barbaridade cometida. Mas não sei até que ponto as pessoas continuam chocadas. Isso só naturaliza a violência e aumenta a sensação de medo na população. E isso é evidenciado quando lemos os comentários que pedem a volta da ditadura e dizem que "bandido bom é bandido morto". 

Portal: Um conceito contemporâneo do mundo da comunicação é o infotenimento, no qual o entretenimento seria somado à informação na cobertura jornalística. A senhora percebe esta tendência no Brasil?

Andrea: Existe um sensacionalismo muito grande nas coberturas sobre violência. É quase histérico o tom de certas reportagens. De certa forma, a mídia restringe o debate e só fala dos sintomas. Quando uma mulher é atingida com uma bala perdida disparada por policiais na zona norte do Rio de Janeiro e a comunidade ateia fogo num ônibus, tudo o que é retratado é o ônibus em chamas. Você vê o fogo, a destruição, mas não há discussão sobre o que levou essas pessoas a tomarem uma atitude drástica como esta.

Portal: Como a tecnologia mudou a cobertura jornalística da violência?

Andrea: Tudo mudou. Com o avanço teconológico, as pessoas podem gravar e tirar fotos de qualquer coisa, a qualquer momento. Uma mudança ótima, que foi intensificada com os smartphones. Podemos ver imagens da ocupação da favela da Telerj, como de um policial carregando um rapaz. Só ficamos sabendo disso porque uma mulher sacou o celular e filmou a cena. Então é uma coisa boa, mas tem um ônus: agora policias podem ficar mais violentos se perceberem essa movimentação. A tecnologia também obriga as agências de notícia a serem mais rapidas, porque as pessoas estão fotografando e registrando fatos em locais onde os jornalistas ainda nem chegaram. Por outro lado, percebemos que essas noticias têm uma espécie de data de validade. Após um tempo curto, simplesmente morrem. Como as Jornadas de Junho, no ano passado. Ninguém mais fala sobre isso.