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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


País

Historiadores: lição do golpe deve gerar avanço democrático

Jana Sampaio e Júlia Cople - aplicativo - Do Portal

28/04/2014

 Arte: Lucas Sereda

Com a ameaça comunista superestimada e o contexto internacional especialmente tenso da Guerra Fria, na qual reverberavam a Revolução Cubana e o erguimento do Muro de Berlim, o Brasil viu crescer as bases socioeconômicas e políticas para o golpe que sofreria três anos depois. A avaliação é do professor do Departamento de História da PUC-Rio Maurício Parada, para o qual os esforços voltados ao esclarecimento devem assumir a estatura não de uma lavagem de roupa suja ou de bravatas midiáticas, e sim de compromisso com o avanço democrático. Convidado para uma entrevista especial alusiva aos 50 anos do golpe militar brasileiro, ele tratou de chamar para uma mesa-redonda o colega Rômulo Mattos, especialista no assunto. Em duas horas de conversa sobre os bastidores e as implicações desse período ainda habitado por zonas cinzentas, eles desmistificaram como o apoio dos Estados Unidos às nossas Forças Armadas: importante psicológica e financeiramente, tal suporte não pode, ponderam os professores, ser confundido com a articulação interna que consolidou a tomada de poder naquele 1º de abril.

Diante dos debates recentes sobre o apoio da sociedade à deposição do presidente João Goulart, Parada e Mattos frisam a importância de se evitar uma generalização da anuência civil, sob pena de se perder a dimensão “de quem deu e de quem sofreu o golpe”. Preferem o termo “ditadura empresarial-militar”, numa referência ao aval de empresários preocupados com as reformas de Jango e interessados, como contrapartida, na adoção de um modelo econômico "mais favorável". Milagre econômico, na visão de Parada, é crescer, por exemplo, 2% em ambientes democráticos, não 7% em regime ditatorial, quando "é facil cortar custos com arrocho salarial, concentrar renda e aumentar lucro".

Embora descartem o risco de um novo golpe, por “não haver base social” para consolidá-lo", Parada e Mattos alertam para a “tolerância excessiva” com a violência que o regime “impregnou na sociedade” — inclusive na "perpetuação de práticas de tortura"; para a valorização do politicamente incorreto na mídia e para retóricas em torno dos "lados positivos do regime", baseadas em argumentos insuetntpaveis, na avaliação deles, como o crescimento da economia e a mão menos pesada da ditadura verde-amarela, uma “ditabranda”, em comparação com as da Argentina e do Chile. Sem dicção revanchista, os professores lembram: “A violação dos direitos humanos não pode ser naturalizada. O número de desaparecidos e torturados são maquiados e, como lição, deveríamos nos engajar em políticas de não repetição da barbárie”, afirma Mattos. Igualmente importante, acrescenta Parada, é a abertura dos documentos ainda em controle do sistema militar, que complementem o trabalho da Comissão Verdade, cujo legado será, projetam os especialistas, proporcional à capacidade de superar disputas políticas.  

Portal PUC-Rio: Na opinião dos senhores, que traços do contexto socioeconômico e político nacional precipitaram o golpe?

Rômulo Mattos: A ideia de uma ameaça comunista mostrou-se preponderante, e foi superestimada pelos agentes golpistas. O Partido Comunista Brasileiro, por exemplo, hegemônico nessa época, não pegava em armas e pregava a conciliação de classes. Logicamente, o que estava por trás dessa "ameaça comunista" eram os interesses de modelo independente do empresariado industrial associado ao capital multinacional, ameaçado por algumas medidas do presidente João Goulart, como a nacionalização de empresas americanas e a lei anti-truste, mesmo já amenizada em relação à proposta do governo Jânio Quadros. É sempre bom lembrar também que o próprio Jango era latifundiário.

Maurício Parada: O contexto internacional também influiu no contexto de preparação do golpe. Era um momento muito sensível da Guerra Fria, na metade dos anos 1960. Era recente a Revolução Cubana, em 1961, e, no ano seguinte, a Crise dos Mísseis quase levou o mundo a uma guerra séria. Há ainda a situação da Alemanha, que se aproxima da separação mais conflituosa com o erguimento do Muro de Berlim. Temos um cenário internacional perturbador, que não contribuiu em nada para a estabilidade desse período, quando as dicotomias e as polarizações estavam intensas e, assim, não ajudaram a manter os regimes democráticos.

Portal: Ainda em relação às circunstâncias em torno do golpe consumado em 1º de abril de 1964, o apoio dos empresários mostrou-se decisivo? Como era a relação deles com os militares e qual foi a suposta “contrapartida” ao apoio?

Mattos: A aliança dos empresários com os militares determina a práxis golpista, a partir de duas instâncias fundamentais: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática. O Ipes tinha função mais ideológica, de promover cartilhas, material para justificar o golpe e fazer propaganda anticomunista. E o Ibad tinha o papel de colocar a mão na massa, financiar campanhas de políticos de direita, soltar notinhas de contrainformação na imprensa para desarticular alguma campanha. Eram financiados pelos Estados Unidos. As campanhas para cooptar elementos da esquerda para a direita eram feitas com dinheiro americano. Este elo foi importante não só no golpe, como na ditadura. A Operação Bandeirantes (centro de informações e investigações montado pelo Exército, em 1969, para combater organizações armadas de esquerda) e toda a articulação de caça à luta armada foram feitas com essa aliança.

Parada: A contrapartida, em boa parte, caminhou pela definição do modelo econômico. Se essa relação foi promíscua, significou uma nova política econômica para o país. Uma contrapartida que se realizou inegavelmente num tipo de modelo com acumulação particular e concentração de renda, que sustentou uma política de desenvolvimento com foco nesses grupos associados ao regime. Tratava-se de uma contrapartida funcional: sustentar economicamente o novo modelo.

Portal: Quem é esse empresariado? Como foi colocada em prática essa “contrapartida”?

Mattos: O projeto econômico do Ipes era exatamente aquele colocado em prática depois do golpe, baseado no favorecimento da grande empresa e no aprofundamento do modelo de política econômica associado. No primeiro período da ditadura militar, a política de recessão econômica estrangula as pequenas empresas, que são compradas pelas grandes. Depois temos esses grandes monopólios atuando na economia brasileira. Muitas empresas nacionais se internacionalizam nesse período, como é o caso de construtoras e empreiteiras que atuam na América Latina e na África. Isso é feito em termos práticos, para garantir esse modelo, que também vai contra os trabalhadores. Os direitos dos trabalhadores são rompidos. O que financia a política do chamado Milagre Econômico é justamente o arrocho salarial. Existe o financiamento externo, mas o financiamento interno é baseado no arrocho salarial. O ponto mais baixo do valor do salário mínimo, por exemplo, é no auge do Milagre Econômico. Os sindicatos também são desarticulados.

Parada: Isso não é secundário, porque, na medida em que se realiza processo de deslocamento de renda, ao enxugar o custo pelo salário, amplia-se a margem de lucro na outra ponta. Dentro da mecânica da economia, esse projeto concentrou o sistema econômico e alargou a margem de lucro de forma significativa. Assim, é um modelo fácil de crescer, de se ter um milagre econômico. É relativamente óbvio: empresas crescendo, conseguindo financiamento com mais facilidade e lucro maior. Hoje é mais difícil crescer, numa sociedade com perfil democrático, em que há lutas por maiores direitos, o que gera encarecimento. Não dá para comparar, mas o processo de crescimento fica fácil com concentração e supressão de direitos. Li anúncio das expectativas dos avaliadores do desempenho econômico para crescimento de 2% como se isso fosse desastre. Crescer numa situação e conjuntura que a gente tem, sendo que nesse período ditatorial se crescia de 7% a 10%, parece que milagre é o que a gente está conseguindo crescer hoje, não naquele momento. Com regime autoritário, você consegue cortar custos e concentrar economia.

Mattos: Era, acima de tudo, uma política artificial de crescimento, que não se sustentou. E quando caiu, caiu de verdade. Acabou o milagre econômico, vieram a inflação e a recessão. É só ver como acaba o regime militar, com inflação no topo, muito maior que antes do golpe.

Portal: Alguns analistas, como o professor Daniel Aarão Reis, autor do recente Ditadura e democracia no Brasil (Zahar), destacam o caráter civil-militar do golpe, na medida em que teria contado com a anuência da maior parte da população. Os senhores concordam com esta visão, e também a consideram negligenciada pelas abordagens da imprensa e dos livros de História em geral?

Mattos: Não se trata de negar que houve participação civil nesse golpe, mas de tentar esclarecer qual parcela da sociedade civil participou. Quando você generaliza, você perde até a ideia de quem deu e de quem sofreu o golpe. O Renato Lemos, um historiador da Uerj, diz que a ideia de um golpe civil-militar é, na verdade, a reinvenção da roda historiográfica, porque todo mundo que viveu a época e qualquer estudioso sabe que o golpe não é só militar. Essa ideia vem sendo colocada como uma novidade, como se tivesse sido negligenciada, mas a novidade dessa utilização é a ampliação desse "civil" para tentar dizer que a sociedade apoiou o golpe. Mas tem uma pesquisa do Ibope, feita no ano do golpe, segundo a qual mais de 70% da população apoiava o governo Jango. E essa pesquisa não é mostrada por quem defende a ideia de um golpe civil-militar. Não foi publicada na época por motivos óbvios. Há historiadores que vão contra esse termo porque querem algo mais específico. Isso mostra que essa ideia de a maioria ter apoiado o golpe deve ser relativizada.

Portal: Em um contexto mais específico, quem deu o golpe?

Mattos: Aí a gente pode falar dos empresários. Há pessoas tentando retomar o termo ditadura empresarial-militar com o qual René Dreifuss, importante historiador e cientista político uruguaio, referiu-se à participação dos industriais no golpe. Acho que o essencial é recuperar a ideia de uma disputa. Havia uma disputa. Quando a gente fala que a sociedade apoiou o golpe, parece que não havia projetos em disputa. Parece que a sociedade é una, um bloco monolítico, como se não fosse separada em classes.

Parada: Por outro lado, também não significou que todo o Exército e todas as Forças Armadas concordavam com o golpe. Não acredito. evidentemente, que esse golpe tenha sido tramado de uma forma tão minuciosa, arrumada, perfeita. É um processo que ocorre precipitando várias insatisfações e problemas, mas que não conta com articulação tão mecânica, como se fosse artefato de relógio, com todas as engrenagens prontas e preparadas dentro de todo consenso das Forças Armadas. Existiram dissensos, problemas. Nesse sentido, não é só importante qualificar a sociedade civil como também os golpistas para perceber melhor qual o cenário dos que realizaram o golpe.

Portal: O governo americano divulgou recentemente uma série de documentos que reforçam o apoio deliberado do presidente John Kennedy à deposição de João Goulart. Que peso teve essa diretriz americana para os desdobramentos do regime militar? Nesse capítulo ainda controverso, sobre a participação americana, o que é mito e o que deve ser destacado sobre a interferência dos Estados Unidos?

Mattos: John Kennedy tinha um chamado “plano de contingência” voltado ao Brasil nesse momento em que a política brasileira estava se “esquerdizando”, ou “comunizando”, como diziam na época. Havia realmente esse medo dos Estados Unidos de que uma nova Cuba poderia surgir na América do Sul. Uma Cuba de dimensões continentais. Muito dinheiro foi colocado no Brasil. No Rio, por exemplo, o (ex-governador) Carlos Lacerda, nome fortíssimo da direita e da oposição ao governo Jango, removeu favelas e construiu conjuntos habitacionais com dinheiro americano. Rio, São Paulo e Minas, governos que apoiavam a política americana, recebiam muito dinheiro. Eram ilhas de sanidade administrativa, como falavam os americanos. E aqueles estados que não tinham governo à direita, aí não recebiam nada. Ou seja, não tem mito nenhum.

Parada: O mito talvez seja o contrário, de que existia uma enorme organização comunista no país. A ideia de que havia um contingente, um sindicato armado, de que havia dinheiro de Moscou (URSS). Ou seja, o mito estava numa resistência fabulosa ou num segundo golpe que antecede a ação militar. Parece que a mitologia existe pela fantasia daquilo que não existiu: a emergência de uma revolução sindical popular, já em curso no país desde as manifestações populares na Central. Esse é o mito, não a participação americana.

Mattos: Além disso, tem a famosa Operação Brother Sam, com envio de apoio material e logístico caso o golpe de 1964 sofresse resistência. Então, também não é mito que chegou a sair um navio porta-avião dos Estados Unidos com munição, alimento, homens, para ajudar o golpe. Ou seja, a ajuda psicológica a quem vai dar o golpe é fantástica, mesmo que não tenha sido colocada em prática a ajuda bélica, porque golpistas anunciaram que estava tudo bem. É inquestionável a importância dos EUA dentro do golpe, mas precisamos tomar cuidado para não achar que o golpe é uma organização dos Estados Unidos sobre o Brasil. Não foram eles que tramaram tudo. O golpe é articulado internamente.

Portal: Por que a resistência ao golpe foi relativamente fraca?

Mattos: A esquerda estava desarticulada, fragmentada e acreditou que era mais forte do que, de fato, era. O radicalismo verbal de certos nomes da esquerda não se traduziu em resistência efetiva. Depois, acreditou no dispositivo militar de setores legalistas do Exército, que eram bem menores do que pensavam. Acreditou na capacidade de resistência do Comando Geral dos Trabalhadores, cujo potencial não foi tão forte assim. Havia crença no campo armado por meio das ligas camponesas, mas também não foi eficiente. Tudo que esquerda acreditava que pudesse ser fundamental nesse momento não se mostrou tão forte. Até a greve geral no dia do golpe, rapidamente reprimida, ajudou a desarticular a própria resistência, porque não havia transporte. Algumas pessoas chegaram a ir para as ruas, na Cinelândia, mas ali mesmo do Clube Militar foram enviadas salvas de metralhadoras. Não se trata de culpar a esquerda pelo golpe. Não é isso. Mas é uma questão de organização.

Parada: Os núcleos de esquerda acreditaram demais na direta, na imagem feita pela oposição de si mesma. Isso de alguma forma parece ter fascinado um pouco. Não dá para imaginar que 1964 era repetição de 1961. Não foi. Portanto, não havia militares com essa disposição de enfrentar movimento e criar a possibilidade de uma guerra civil. Não havia como garantir que essa militância estivesse tão articulada, porque ela mesma vinha de um movimento bastante diferenciado. A própria posição do PCB, como disse o Mattos, estava ao centro de qualquer espectro em relação à questão ideológica. Era diversa. Dá para perceber que não tinha composição de frente única. Então, dividiu-se muito rapidamente e facilmente. Acreditaram mais no mito da direita que na própria força.

Portal: E em relação à resistência civil? E a reação de Jango ao golpe?

Parada: Existia um apoio popular à resistência em pesquisas de opinião, sem dúvida, mas não significa que as pessoas estavam dispostas a pegar em armas para solucionar uma crise política. Uma coisa é apoio político, intenção de voto, outra coisa é entrar numa situação de guerra civil. Nem a guerra civil, em 1932, na Revolução Constitucionalista, tirando uma parte da população paulista que se engajou, implicou o envolvimento da população. É outro problema imaginar que a população não resistiu, mas nem por isso ela é responsável pelo golpe. Tampouco há sindicato armado ou milícias armadas, uma possibilidade como a Alemanha nos anos 1920, com grupos operários militando contra sistemas e aparatos de apoio paramilitares. Não havia como sustentar essa resistência aqui de forma cabível.

Rômulo: Quanto ao Jango, que reclamam ter sido fraco, existe algo chamado correlação de forças. Ele é informado de que seu apoio nos quartéis não é mais o mesmo. Em exércitos dos quais que ele tinha bastante apoio, não havia mais. Coisas materiais estafvam em jogo, ou seja, você perdeu, sua vida está em risco. Nesse momento, ele sabia que não tinha como encarar essa resistência.

Portal: Qual a diferença da ditadura do Brasil para as demais instauradas na América Latina? Qual foi o papel da ditadura brasileira na experiência dessas outras ditaduras?

Parada: Em relação à ideia de o Brasil ser "modelo" de golpe militar, é bom lembrar que houve uma avalanche de golpes: Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Chile. Isso não acontece sem querer. Havia uma circulação de informações, políticas, práticas e ensinamentos bastante significativa. A comparação traz sempre a argumentação da diferença quanto à dimensão. Segundo essa perspectiva, na Argentina e no Chile observa-se uma reação mais forte ou uma perseguição mais violenta. Não é cabível pensar em graus de quem foi mais ou menos repressivo. O ato por si só já é condenável, já não é aceitável. Existem aproximações nos sistemas de repressão, e temos que negar que qualquer tipo de semelhança poderia absolver algumas delas. Mas o Brasil tem caso peculiar: como ditadura modelo, não há a figura do personagem ditador, uma espécie de Pinochet, e há manutenção de sistema aparentemente funcional, a Constituição, sistema de partido, manutenção do Parlamento, funcionamento de eleições indiretas. O modelo mantém o civilismo desse golpe, o que é muito curioso. Mas a ditadura do Brasil tem mais diferenças que semelhanças. A grande semelhança é a estupidez.

Portal: Essas peculiaridades escoram o discurso em torno de uma "ditabranda", uma ditadura menos truculenta, no Brasil?

Parada: Essa peculiaridade permite um olhar abrandado. A gente vai encontrar “bons ditadores”, uma ironia. É claro que não foram tão violentos quanto a figura nefasta do Pinochet. Mas isso não nos fez viver uma vida mais tranquila. Não era porque os militares estavam com roupas civis, propondo abertura longa ou controlada, que isso significou um abrandamento. Sair da farda é demonstrar tentativa de construir adesão, sinal de fragilidade do sistema, não de força. Não estavam conseguindo administrar o problema que eles mesmos criaram. Não é brandura, é derrota.

Mattos: Esse ponto remete à famosa reportagem da Folha de S. Paulo sobre a ditabranda no Brasil. Uma ideia de regime amenizado, que só teria começado depois do AI-5 e terminado em 1978, 1979. São todas formas de negar a brutalidade. Não se justifica uma ou 50 mil pessoas mortas a menos. É violência institucionalizada contra direitos humanos. O número oficial de desaparecidos no Brasil é que é amenizado, jamais pode corresponder ao que aconteceu. Há os índios que morreram na construção da Transamazônica e as pessoas no camping do Araguaia, onde muita gente nem tinha registro. O número de torturados no Brasil também talvez seja maior que em outros países.

Parada: É bom lembrar que já tivemos outra ditadura, a do Estado Novo de Getúlio Vargas, quando a prática de repressão foi igualmente violenta. Nem a tortura nem a maquiagem de números são novidade no sistema policial e militar nesse país.

Portal: Como se caracteriza a luta armada no período? Começou no AI-5?

Mattos: A luta armada não começa, mas é intensificada depois do AI-5. Há indícios de grupos armados da esquerda antes de 1964, que João Goulart tratou dentro da lei, como deve ser. Não é porque tem luta armada em um país que se justifica uma ditadura, até porque o poder de luta de estudantes contra Aeronáutica, Exército e Marinha é completamente desproporcional. Isso é um mito, de que, se existe uma luta armada de esquerda, existe um golpe. É uma realidade histórica da esquerda, desde pelo menos a Revolução Russa, e está colocada no tabuleiro do jogo político. O historiador Marcelo Ridente, observa: “ainda que muitos grupos armados dos anos 1960 e 1970 não pretendessem apenas uma volta ao regime democrático e pensassem na constituição de um Estado socialista, na prática, a atuação acabou valendo como uma luta pela democracia”. Diante da impossibilidade de vitória contra um Estado fortemente armado, o que aconteceu foi uma luta contra uma ditadura. Tanto que tiveram ampla simpatia da arte brasileira. Caetano Veloso e Gilberto Gil falam em Carlos Marighella, cantam a luta armada.

Parada: Existe também o debate se o campo político exclui necessariamente a ideia do uso da força em alguma situação. Se, no caso da esquerda, isso implicou o uso da força, e a política se desdobrou nessa ação, é bom lembrar que o Estado brasileiro sempre abrigou versões violentas, agressivas, muitas vezes intervencionistas, e passou por várias revoltas que não surgiram da esquerda. A ideia do uso da violência não é invenção nem monopólio da esquerda. Faz parte da história institucional de administrar crises do Brasil. Não habita agora a estrutura brasileira, porque estamos em outro momento, outro lugar. A história é mais complexa, para além de se discutir se a força é legítima ou não.

Mattos: Há de se pensar também na justificativa da esquerda, de que os mecanismos políticos e democráticos estavam fechados, ainda mais depois do AI-5. O único caminho possível seria a luta armada, no contexto de diálogo inexistente ou outra possibilidade de luta. E, de fato, o Estado estava fechado para qualquer negociação.

Portal: Desse caldo político, cultural e econômico, quais as principais lições que devem ser extraídas para os avanços democráticos? 

Parada: Avanço democrático é lição. Conseguimos contornar esse problema, esse processo de violência política. É um problema, porém, particularmente sensível para os historiados: como construir memória com uma avaliação que prestigie o grau de normalidade institucional, mas que não resvale numa idiossincrasia ideológica nem na amenização relativista e conciliatória que tire a responsabilidade sobre as pessoas. 

Mattos: A preocupação com políticas para não se repetir a barbárie. Por isso, há reivindicação de setores da esquerda de transformar o prédio do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, em museu da ditadura. É coisa de país civilizado transformar lugares de barbárie em espaços de memória da barbárie. Essa é a principal lição. Guardar a ideia de que crimes de violência contra direitos humanos e liberdades individuais praticados por agentes de Estado não podem passar em branco. Têm de ser investigados, divulgados, para que não se repita. É um ponto sensível ao Brasil até hoje. A opção pela repressão brutal nas Jornadas de Junho mostrou fragilidade da causa da democracia. Ao mesmo tempo em que não há risco de um novo golpe, porque não há base social para isso, a facilidade como a democracia é expulsa pela prática da violência estatal apareceu em junho.

Parada: Outro problema é permanência de aspectos nocivos, com a capilarização da violência que o regime militar permitiu. Não apenas a permanência de práticas de violência institucionalizada via polícia, mas também a presença de paramilitares não organizados, que podem facilmente sair da ordem legal, perpetrar crimes, executar pessoas. A ditadura permitiu a tolerância excessiva com sistema de violência. Voltamos à democracia formal, mas a sociedade é impregnada com a ideia de que existe solução na violência para situações de crise. Não conseguimos desmontar isso.

Portal: O que representam as leis remanescentes dos 21 anos de período ditatorial no Brasil? Que outras heranças da ditadura podemos ver latentes?

Mattos: Existem ainda, nas nossas leis, o que a gente chama de “entulhos autoritários”. Maior exemplo é lei antiterrorismo, contra manifestantes na Copa do Mundo ou Olimpíada. O discurso do controle da ordem pode se confundir com a repressão e ir contra a democracia. Transformar manifestação política em ato terrorista não tem cabimento depois de tantos anos de ditadura. A lógica do inimigo permanece. Numa Copa do Mundo, sendo mínimo ou pequeno o risco de um ataque, os movimentos sociais representam risco ao grande evento. Além disso, nosso aparato repressivo ainda utiliza técnicas de tortura aprendidas na ditadura, como você pode assistir no filme Tropa de Elite, de José Padilha. A política econômica é fortemente marcada, com a herança da dependência do capital estrangeiro. Empresas que compactuaram fortemente com a ditadura, financiaram repressão política, controlaram empregados, de acordo com normas da segurança nacional, continuam atuantes. Há também herança na indústria cultural, com a mídia fortemente dominada por grupos de comunicação que cresceram nessa época.

Portal: Qual a avaliação dos senhores sobre o trabalho das Comissões da Verdade? Que saldo podem gerar?

Parada: Nesse processo, a sociedade precisa encontrar caminho para resolver sua memória. Há casos que não são tão simples. O Chile está desmontando a Constituição do período Pinochet agora. Não é simples. É um processo no sentido do elemento legal. Há também uma situação peculiar do Brasil, de todos os ditadores terem morrido. Não temos a ponta de cima, a não ser que desmontemos os nomes das placas, das praças, das ruas, apagando essa memória para puni-los. 

Mattos: Nossa Comissão é uma instância em disputa. Pode ser conciliação, e há setores interessados nisso. A própria voz oficial da Comissão da Verdade, quando discursou nos 50 anos do golpe, disse que era um momento superado no Brasil. Mas há agentes e vertentes que tentam fazer com que ela não caia numa simples lavagem de roupa suja. O que vai acontecer a partir dessa investigação, desse esclarecimento à população sobre o que ocorreu na ditadura, é a luta política que vai determinar. Na Argentina, virou punição aos militares envolvidos. Acho que o papel da Comissão é fundamental de trazer à tona essa discussão que poderia estar adormecida. De repente, estamos discutindo isso, horrores foram mostrados, que contradizem a ideia de "ditabranda". Temos saldo bem crítico da descomemoração dos 50 anos de golpe, bastante fortalecido com a existência dessas comissões.

Parada: A instituição militar, num momento menos tenso, de recomposição, talvez até venha a público para dizer que tomou a decisão errada, o que não muda muito as coisas, mas é solução. Isso já aponta para algumas soluções paliativas e pontuais que podem ir ocorrendo, mas não sabemos onde vão chegar. 

Portal: O Brasil corre o risco de sofrer um novo golpe ou nossa democracia, apesar de recente, já está consolidada?

Mattos: Acho que não há base social para novo golpe nesse momento. Nas Jornadas de Junho, tivemos movimentos fascistas, que pregavam o golpe, mas foram só 40 cabeças. Nova Marcha da Família foi outro fracasso em termos de público. A própria direita, atualmente, não é golpista, está muito mais interessada em controlar espaços do Estado do que dar golpe. No meu ponto de vista, não há chance.

Parada: Também não acho que há chance. O Brasil precisa de partido de direita porque a sociedade brasileira já é de direita. É tão conservadora que consegue deixar os conservadores de fora, viraram grotescas figuras de exceção. Existe uma sociedade firmemente conservadora, a ponto de não precisar dar golpe em ninguém. O que espanta é como hoje se tornou tão midiático desmontar argumentos tradicionalmente importantes, de respeito aos direitos humanos, manifestações, discordância, dissensos; como hoje é estimulante para algumas pessoas falar o contrário. Parece preocupante, mas é lateral, não exatamente manifestação que possa ganhar base social significativa para gerar modificação das instituições. Não se desdobra em lugar algum: não vira partido, nem movimento, só é boa fala para consumo dos meios de comunicação.

Portal: Os senhores concordam com a Lei da Anistia? É impunidade ou apaziguamento?

Mattos: Juridicamente, é uma aberração. Na verdade, quem era de esquerda e lutou contra a ditadura foi julgado, silenciado, torturado e o outro lado, os agentes de Estado, nunca foram julgados. Quem são eles? Não sabemos os nomes. Não estão colocados na sociedade. É uma lei ilegal, digamos assim, de acordo com tribunais de direitos humanos, que deveria ser combatida. Crimes contra direitos humanos não prescrevem. O Brasil está na contramão de questões gerais associadas a acordos internacionais que o país mesmo assinou.

Parada: O problema é que existe dupla interpretação que permite a existência da lei. Se é lei nacional, se sobrepõe a tratados por conta da soberania. Mas agora há outro entendimento, mais contemporâneo: uma vez assinado o tratado, ele entra no sistema constitucional e passa a vigorar como legislação normal. Um impasse jurídico que parece sensível e importante para ser tratado no futuro.

Portal: O que ainda precisa ser historicamente esclarecido para compreender melhor os traços principais desse período e o seu legado?

Mattos: Já temos informações suficientes sobre o que foi a ditadura, o mal que ela causou ao Brasil tanto em termos de direitos humanos como em termos econômicos, ou mesmo para a democracia, aos meios de comunicação. Na minha opinião, importante seria o aprofundamento desse debate, que às vezes fica flutuando ou esquecido na sociedade. Datas redondas são períodos importantíssimos para discutirmos o que foi a ditadura. Um período de uma política que destruiu direitos dos trabalhadores, arrochou salários, coibiu a produção artística e a liberdade de expressão, no qual o modelo econômico favorecia empresários. Existe um debate um pouco nocivo sobre o que houve de positivo durante esse período, como o desenvolvimento econômico e a modernização do Brasil. Modernizou para quem? Quais foram os setores favorecidos? Discutir fortemente os setores favorecidos é tentar deixar claro o legado da ditadura para nossa sociedade. Deixar claro quem ganhou nessa história.

Parada: É preciso que haja desenvolvimento na democracia. Gostaria de ver também os documentos que ainda estão sob controle do sistema militar. Historicamente, seria interessante ter uma frente para abrir esses documentos.