Mariana Totino* - aplicativo - Do Portal
03/04/2014A crise no sistema de transporte do Rio faz parte de um cenário mais abrangente de desarticulação, apontado também na elaboração de planos para a cidade. Entre as 1.692 ideias enviadas ao projeto Rio+ para melhorar a cidade, a mobilidade é o tema mais citado como essencial para a cidade, que se prepara para celebrar seus 450 anos em 2015. Especialistas destacam ainda a necessidade de planejar melhor as intervenções no espaço urbano. As mudanças de última hora nos planos iniciais de adequação de infraestrutura para sediar as Olimpíadas de 2016 – como o recente anúncio de que a Zona Portuária não mais abrigará instalações olímpicas, transferidas para a Barra da Tijuca – revelariam a falta de visão ampla, assim como de transparência e de participação da população.
Para o arquiteto e urbanista Luiz Fernando Janot, conselheiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), em nenhum outro momento da história a cidade foi palco de tantas intervenções imediatistas, de mudanças de última hora nas ações que mexem com a infraestrutura urbana – o que o presidente do IAB, Sérgio Magalhães, chamou de “planejamento io-iô”:
– Todo o planejamento da cidade na gestão de Eduardo Paes se deslocou para as respectivas secretarias. Não há um órgão específico que se dedique integralmente a pensar a cidade dentro de uma visão macro. Isso foi desmontado. Talvez seja essa uma das razões para inúmeras propostas de intervenção urbana na cidade não darem certo. Quando estão prestes a ser feitas, são canceladas ou alteradas. As propostas são lançadas pelo olhar de apenas uma secretaria, do interesse micro e míope da cidade, e trazem problemas graves. A cidade tem que ser tratada como um todo – afirma Janot, citando como bons exemplos o Parque do Flamengo e túneis abertos nos anos 1960, quando o Rio deixou de ser capital federal: – Nestes casos, não se pensou apenas em uma gestão.
Janot acrescenta que mesmo intervenções pontuais em determinadas áreas da cidade só podem ser bem-sucedidas quando refletem positivamente em regiões vizinhas. Inicialmente contra a demolição do Elevado da Perimetral, pelo alto custo, o arquiteto defende que esta e outras operações só fazem sentido quando retornam para a população em forma de medidas que requalificam urbanisticamente o espaço, conferindo condições de uso e promovendo interação entre as várias camadas da população:
– Uma intervenção pontual não pode ser tomada sem que se tenha uma visão macro da cidade. Infelizmente, não é assim que tem sido feito. O que tem tido maior valor é a imagem, a publicidade, o aqui e agora. Minha grande crítica é a visão imediatista da realidade urbana da cidade, algo como “o futuro que se dane, é problema de outras gerações”.
O também arquiteto e urbanista Ricardo Esteves, professor da PUC-Rio, também aponta como ponto fraco da segunda gestão de Paes é a falta de planejamento:
– Não me parece que houve qualquer planejamento, e sim um plano, que não dá certo e não dará, porque não é articulado com os outros planos, e a cidade normalmente acaba abandonando os antigos projetos. Exemplo disso é a decisão de fazer a Linha 4 do Metrô, em vez de concluir primeiro a Linha 1.
Outra crítica de Esteves é em relação à comunicação. Para o especialista, falta transparência na governança de Paes. Ele defende que, desde a escolha do Rio como sede da Copa e das Olimpíadas, Prefeitura e Governo do Estado deveriam ter iniciado não apenas um planejamento de obras, mas a sua divulgação junto à população carioca:
– Quando eu morava em Londres, recebi um comunicado sobre uma obra que se iniciaria no bairro em uma data específica e com prazo de término. Fiquei impressionado com o que eles prometiam fazer e, no dia anunciado fui até o local. Não havia nada, nenhuma pessoa responsável, nenhum caminhão ou escavadeira. Pensei que, assim como no Brasil, seria uma dessas promessas na maioria das vezes esquecidas. Mas fui ler a circular novamente e me dei conta de que a obra só começaria um ano depois. Ou seja, eles estavam informando aos moradores sobre a obra com um ano de antecedência. Já no governo do Rio, tivemos seis anos para sermos avisados dos planos e da previsão de término. Mas o que aconteceu foi que a maioria dos moradores cariocas foram pegos desprevenidos. Isso é uma grande falta de desrespeito.
Janot ressalta que desconhece grande parte das ações implantadas no espaço urbano, apesar de fazer parte do órgão que representa a classe dos arquitetos no estado. Ele sugere que se ampliem as formas de participação da população, incentivando um canal para que mais sugestões e opiniões pudessem ser enviadas diretamente a uma ouvidoria, para que estas, depois de uma triagem, pudessem ser incorporadas às ações do governo.
Projetos como o Rio+, de acordo com o urbanista, são superficiais e levantam ideias genéricas, em vez de uma discussão mais consistente sobre os projetos propostos para a cidade.
– Se a população não participa da transformação, não sugere sequer aperfeiçoamentos, perde a ideia de pertencimento à cidade. Não há participação popular efetiva em projetos concretos, como o Morar Carioca, de urbanização de favelas; no desenho da linha do BRT; na nova orla marítima que vai da Praça XV até o Píer Mauá; na transferência da vila da mídia e dos juízes que seria na Zona Portuária; na discussão sobre a preferência por teleféricos do que por planos inclinados em comunidades.
Para que seja ampliada a participação pública nas decisões que transformam a cidade, Janot sugere que audiências públicas não se restrinjam somente a tarefas legais ou burocráticas e que sejam realizadas palestras para divulgar os projetos urbanos à sociedade.
Canteiro de obras para cidade melhor
Se problemas como as deficiências na mobilidade urbana e transtornos causados pelas obras na cidade causam irritação nas pessoas, o próprio prefeito Eduardo Paes declarou ao jornal americano The New York Times estar arrependido de ter assumido a realização de dois eventos de porte internacional, a Copa e as Olimpíadas, na mesma gestão. Para Luiz Fernando Janot, a preocupação é perfeitamente compreensível, especialmente por erros do passado – como os prédios construídos na Barra para os Jogos Pan-Americanos de 2007, muitos dos quais com rachaduras provocadas por afundamento no terreno, e o estádio Engenhão, hoje fechado por falhas estruturais.
Na opinião de Janot, as obras e os transtornos no trânsito não comprometem a fama mundial de cidade solar do Rio nem vão prejudicar o turismo de massa na Copa e nas Olimpíadas:
–O Rio é uma cidade privilegiadíssima pelas belezas naturais, pela relação próxima de mar e montanha, um clima maravilhoso, praias... Com todos os benefícios e malefícios como o da especulação imobiliária, o Rio continua sendo referência como cidade mundial. É o tipo de cidade em que rico e pobre se misturam. E este é o melhor tipo de cidade, onde a cultura extrapola. As pessoas poderiam andar mais pela cidade. Aqui, ao contrário de Paris, existem shoppings porque o espaço público é maltratado.
Para o arquiteto, por outro lado, os habitantes da cidade também precisam estar comprometidos com ela:
– As pessoas têm que ser mais solidárias. A cidade é construída pelas pessoas. Não tem como olhar a vida na cidade individualmente, jogar lixo no chão, fazer quebra-quebra nas manifestações. Quem anda no acostamento, por exemplo, só está pensando em si. Cidades não são guetos, são o conjunto de interações sociais e culturais que acontecem num determinado espaço.
Legado olímpico
Os especialistas discordam da preferência de investimentos na Barra da Tijuca, embora seja importante integrar o bairro ao resto da cidade, conversando com o BRT, e da tendência de a região crescer. Mas apontam que a prioridade deveria ser incrementar a rede para se chegar ao Centro, para onde converge a maior parte dos passageiros:
– Tanto a Transcarioca quanto a Transolímpica levam à Barra da Tijuca, quando nem metade das competições olímpicas vai acontecer lá. Foi preciso criar a Transolímpica, que vai ligar Deodoro à Barra, só porque o bairro da Zona Oeste, que tem estação de trem, vai abrigar parte do complexo olímpico. Mas a Transoeste liga a Barra ao nada, passando por Santa Cruz e Guaratiba, por terrenos vazios, com a desculpa de facilitar a ida à Barra.
O arquiteto conselheiro do IAB conheceu as instalações olímpicas de Londres, antes de o evento ser realizado em 2012, e lembra:
– Londres concentrou instalações olímpicas num bairro pobre, como se fosse Deodoro. Instalou um sistema de metrô. Um lugar pobre, de imigrantes foi valorizado, passou a ser ligado ao Centro e a diversas outras ramificações por meio de estações modais. Aqui, se privilegiou a Barra da Tijuca, por interesses do mercado imobiliário.
Segundo Janot, um dos principais legados das Olimpíadas poderia ser a urbanização das favelas localizadas nos corredores olímpicos:
– Hoje, o prefeito titubeia ainda em entender que esse talvez seja o principal legado que a cidade pode deixar para o futuro. Incorporar tecido urbano das favelas ao tecido formal da cidade, com condições de uso e saneamento básico, para que até 2020 todas as favelas estivessem urbanizadas.
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*Colaborou Isabella Rocha
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