Jana Sampaio* - aplicativo - Do Portal
25/03/2014Ânimos exaltados, intensas sessões de aplausos, pedidos de “volta presidente!”, assédio da imprensa. Assim o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso foi recebido pela plateia entusiasmada que lotou o auditório do RDC, nesta segunda-feira, para vê-lo desfiar a verve intelectual na Aula Magna organizada pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Com as pitadas de humor habituais da oratória envolvente, FH relembrou a carreira acadêmica, fez observações sobre o movimento estudantil de 1968 e comparou as Jornadas de Junho com um curto-circuito no qual “a insatisfação já existia, só faltava uma faísca para as coisas acontecerem”. O ex-presidente frustrou, no entanto, os que esperavam comentários associados ao ambiente político-eleitoral. Nem reiterou o apoio à candidatura de Aécio Neves (PSBD-MG) ao Planalto, muito menos tratou da especulação sobre sair de vice do senador mineiro. Tampouco pôs gasolina na possibilidade de uma CPI para investigar a Petrobras e na crise energética. No máximo, ao agradecer pela "volta ao convívio acadêmico", fez deferência ao decano Luiz Roberto, que "dirige o departamento que fez o Plano Real".
Sem o bate-bola entre o palestrante e o público, prevaleu o pensador Fernando Henrique, centrado no estudo sociológico feito nas universidades. Ele ressaltou, por exemplo, as mudanças "no foco de pesquisa" decorrentes da maior participação social nos movimentos políticos, em especial a partir da década de 1960. Para FH, a mobilização da sociedade brasileira no período da ditadura civil-militar, entre 1964 e 1979, representou uma ruptura do “olhar sobre a organização popular.” Numa retórica alinhada à plateia formada por estudantes, o ex-presidente destacou as novas formas de organização trazidas com a internet e reforçou a importância da academia para concretar os avanços sociais bradados pelos movimentos populares. "Quanta gente não se entusiasmou com a Primavera Árabe? Até hoje, seu resultado concreto, é muito pequeno. Existe ainda muito o que fazer. As questões estão muito abertas, e é num ambiente acadêmico que isso pode ser melhor estudado. É preciso que se aprenda a pensar”, disparou aos jovens. Abaixo, algumas das principais observações de Fernando Henrique Cardoso feitas na Aula Magna:
"Queria o socialismo e não a sociologia"
“Com o ensino dos teóricos, apesar da dificuldade de compreensão dos termos específicos, pude aprender do que se tratava a sociologia. O grande debate era sobre o fantasma funcionalista de Karl Marx. À época, nossa dificuldade tratava-se em compreender até onde aquela teoria toda nos levaria. Até que percebemos que não era necessário escolher uma vertente da sociologia, mas de estudá-la com paixão. Eu queria mudar o Brasil, transformar o mundo. Queria o socialismo e não a sociologia. Mas tínhamos Durkheim e Weber, que nos ensinavam como melhor entender os fatos sociais. Isso tudo foi resultado da minha formação variada na USP, que misturava diferentes formas de encarar. Nossa formação era muito eclética.”
Formação política
“Para as Ciências Sociais, era fundamental a pesquisa, especialmente para saber o que estava acontecendo. Com um porém: a ciência política era muito ausente. Nas análises dos sociólogos, partidos e o Estado quase não apareciam. Era como se a sociedade não tivesse uma vertente de poder. E isso não era à toa: estávamos em São Paulo, longe do foco de poder em Brasília, numa universidade criada como reação para criar uma nova camada dirigente após a derrota da Revolução de 1932.”
Largada nas Ciências Sociais: estudos sobre a escravidão
“Um dos meus primeiros trabalhos sociológicos foi sobre os negros, e minha preocupação era: aqui é um processo de transformação. Na época, Roger Bastide e Florestan Fernandes faziam trabalhos imensos sobre a questão racial no Brasil. Então, fui estudar os escravos no Rio Grande do Sul, onde havia poucos negros e os que existiam trabalhavam na cidade. Tudo isso para entender o que significava a produção escravista moderna. Como era de se esperar, concluí que a escravidão era incompatível com o processo de desenvolvimento do capitalismo. Tendo como ponto de partida os teóricos da época, que tratavam a consciência de classe, o operário, segundo os marxistas, pode se tornar a classe universal. Mas o escravo não pode ser classe universal, não se pode generalizar suas condições de vida. A partir de então, entendi que é preciso ser flexível quanto ao método de estudo, para não deformar a pesquisa. Diziam que o preconceito era de classe, não de raça. Mas sabíamos que era de classe e de raça. Até que fomos alertados de que a nossa análise era baseada na estrutura de classe formada na Europa, diferente do operariado no Brasil. Aqui as relações políticas com as classes são diferentes. Isso foi extremamente importante, porque nós não tínhamos noção da formação e importância da nação.”
“O capitalismo mudou”
“O marxismo é uma coisa mecânica e não permitia ser utilizada de forma instrumental para pesquisas. Não dá para entender a dinâmica do capitalismo como se fosse a dinâmica do século XIX. O capitalismo mudou. A periferia é subordinada, mas é uma forma diferente de subordinação. A miscelânea da minha formação se reflete no modo como passei a encarar os grandes processos de transformação brasileiros e internacionais.”
Prisão e exílio: "Não tinha ligação subversiva, mas a vida era subversiva"
“Nós, estudantes de São Paulo, fomos de certa maneira surpreendidos pelo movimento da sociedade brasileira. Depois dos anos 1960, o cenário político efervescente pedia a volta de Getúlio Vargas ao poder, fazia greves e movimentações. Então a USP não podia mais continuar como se pensasse que está no exterior fazendo grandes raciocínios teóricos ligados aos processos políticos. Sofremos isso na pele, quase que sem querer. Fui preso e exilado por ser professor. Não tinha ligação subversiva, mas a vida era subversiva. Aquilo foi uma ruptura no modo como nós encarávamos nossa função como cientistas sociais e no olhar que tínhamos sobre a sociedade brasileira. Em relação à minha época, as Ciências Sociais deram um salto no Brasil.”
Autoritarismo: mudança na temática de Brasil e América Latina a partir de 1970
“A gente, no fundo, tentava mudar o mundo. Mas, a partir da década de 1970, a temática do Brasil e da América Latina mudou em função da contexto. Já que vivíamos sob o autoritarismo, era preciso compreender melhor o Estado. Aí começa toda essa temática da sociedade civil, porque até então a gente só via as classes clássicas: operário e burguesia. Mas existia um movimento da sociedade, não apenas de um partido, mas a movimentação civil como um todo. Tivemos de buscar instrumentos teóricos que compreendessem esse momento. Nessa época a paixão era dupla: como combater o autoritarismo e como entender melhor a sociedade civil. No que diz respeito ao autoritarismo, o debate era apaixonante, especialmente ao estudar as formas de autoritarismo internacional. Começamos a ter uma visão mais ampla e dinâmica quanto aos processos políticos e sociais. A sociedade civil vem se transformando.”
Novos movimentos políticos: Primavera Árabe e Jornadas de Junho
“Com a movimentação estudantil em Londres e Paris, os jovens tomaram as ruas em 1968 e fizeram grandes passeatas. O que achei curioso foi o modo como a sociedade civil se organizava. Os estudantes se colocavam como operários, mas defendiam bandeiras como a liberação sexual, indiferentes à maioria dos trabalhadores. Não havia simbologia nem conceitos para expressar o tipo de transformação que era desejada: a existencial e não a estrutural. Ninguém queria mudar a estrutura, mas a cultura, o modo de relacionamento. As sociedades contemporâneas às vezes pegam fogo como fios desencapados, são um curto-circuito. Isso pode ser exemplificado a partir das movimentações como a Primavera Árabe e as Jornadas de Junho – a primeira tomou as ruas do Oriente Médio e destituiu ditadores e a segunda levou milhares de jovens às ruas para critucar, inicialmente, o aumento da passagem, mas que depois incluíram, em seu discurso, mazelas como a corrupção. Não há um objetivo especifico, mas é alguma coisa que não funciona bem. Só que as formas de organização são outras, por causa da internet. Nisso falta tudo: partido, organização, contato de pessoa a pessoa. Hoje existe uma forma diferente de sociabilidade. Quanta gente não se entusiasmou com a Primavera Árabe? Até hoje, seu resultado concreto, de mudanças concretas, é muito pequeno. Existe ainda muito o que fazer. As questões estão muito abertas e é num ambiente acadêmico que isso pode ser melhor estudado. É preciso que se aprenda a pensar”.
*Colaborou Brenda Baez
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