Júlia Cople* - aplicativo - Do Portal
16/04/2014Uma lei desnecessária que colocaria em risco a liberdade dos movimentos populares, cuja redação "redundante e subjetiva" poderia ser utilizada como salvo-conduto para um "Estado ainda mais repressor". Assim boa parte dos especialistas em Direito e em Ciências Sociais avalia o projeto de lei nº 499, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), em trâmite no Senado, que pretende determinar o tipo penal e as penas para o crime de terrorismo no Brasil. A intenção de dar uma resposta imediata a ações de violência que se apropriaram das manifestações, em especial depois da morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão quando cobria, para a TV Bandeirantes, protesto no Centro, da Bandeirantes, em fevereiro, traz à tona, ainda de acordo com analistas, "a sanha do Congresso de criar uma nova lei a cada crime que choque a sociedade" — o que “dificulta uma legislação penal unificada e proporcional nas punições”, alerta.
Em meio ao aniversário de 50 anos do golpe militar, emergiram comparações com a Lei de Segurança Nacional, instituída no período sob o argumento de coibir a subversão da lei e da ordem. Sobre a iniciativa, pendia a possibilidade do uso pragmático contra opositores do regime e protestos que reivindicassemk mudanças no sistema político e no panorama social. Um fantasma que torna a rondar as discussões sobre a legalidade e, sobretudo, sobre a necessidade da tipificação do terror alusiva à proposta parlamentar.
Na opinião do professor Luiz Fernando Almeida, do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, a analogia com a Lei de Segurança Nacional é “forçada”, face às diferenças dos momentos históricos e de organização da sociedade brasileira. O que vivemos, diz o especialista em segurança pública, é “uma seara de turbulências e disputas que não opõem esquerda e direita, pois há farto cardápio ideológico”. Ele reconhece, no entanto, que a nova lei correria o risco de se tornar autoritária, mas com "outra conotação", num ambiente mais difuso.
Para o professor da PUC-Rio André Perecmanis, que leciona Direito Penal, porém, a lógica das duas leis é a mesma, com traços ideológicos semelhantes. Na avaliação do também professor do Departamento de Ciências Sociais Paulo Jorge Ribeiro, a lei antiterrorista seria ainda mais radical e “muito mais proibitiva” do que as leis de 1964, se considerado o “sentido absoluto da iniciativa”:
— Naquele momento, se quis dar aspecto de normalidade ao período de exceção, enquanto hoje se quer produzir exceção em momento de normalidade. É uma proximidade, uma continuidade dessa exceção.
Continuidade que, explica ele, decorre também da “permanência intocada” das leis de exceção de 1964 e do Auto de Resistência (lesão corporal causada por intervenção policial) durante o período democrático:
— O Direito Constitucional passa, o Administrativo fica. Isso significa que não adianta você mudar o código que rege a Constituição, se os regulamentos normativos e sociais permanecerem. São eles que controlam o nosso cotidiano — argumenta.
Ribeiro lembra que a redação de uma lei antiterrorismo começou a ser debatida desde o início dos preparativos para a Copa do Mundo. Como o país não tem tradição em acolher ataques do gênero, a discussão, compeleta ele, ficou para segundo plano. Mas, com a eclosão dos protestos de junho passado, emergiu "um jogo de forças extremamente particular":
— Há medo do que possa acontecer na Copa. As instituições multinacionais, como a Fifa, e a mídia receiam perder esse grande negócio. A classe política, por sua vez, teme perder o controle, ser ultrajada e discutida publicamente. Há campo de pressão para que a lei antiterrorismo seja aprovada — reconhece o professor.
O cientista político Antônio Carlos Alckmin enxerga, além do viés de "grande negócio" a que se refere Ribeiro, uma “espetacularização dos episódios” por parte da mídia. Para o professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, há afobação no trato do tipo penal terrorista, até porque esse conceito, observa, parte do princípio de que já existiriam organizações articuladas com a inimização do Estado.
Já Almeida acredita que a proposta referente à tipificação do terror se aproveite de um momento de tensão social do país, ilustrado pela violência produzida nos protestos, que culminou na morte do cinegrafista Santiago Andrade e contabilizou 138 jornalistas agredidos desde junho do ano passado. Tal contexto, diz, levou à apresentação de iniciativas como a da lei antiterror, numa “tentativa apressada” de produzir resposta oficial às distorções violentas que passaram a contaminar manifestações legítimas.
O cenártio internacional também contribuiu para a efervescência do debate sobre mecanismoa contra o terror no país, acrescenta Ribeiro. Segundo ele, sob o pretexto de se melhorar a segurança, dispositivos de vigilância são são “cada vez mais usados com “extrema liberdade”, especialmente depois dos ataques ao World Trade Center, no fatídico 11 de setembro de 2001, e ao metrô de Madri, em 2004:
— Os mecanismos biométricos e os drones são a quintessência das estruturas de prevenção. Mas, com alguma criatividade, é possível burlar esse conceito e tornar a vida dos civis mais controlável. E as pessoas desejam isso, o que é interessante. O que deveria ser momento de exceção vira regra — pondera, em tom de alerta.
O tema terrorismo, na visão de Almeida, é complexo e exige cuidado, por "agasalhar variadas tendências e práticas". Assim ele considera a promulgação de uma lei “um passo largo demais” na contenção da violência dos protestos.
A complexidade se apresenta logo na conceituação dos termos: o professor de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito, da UFRJ, Eduardo Moreira explica que, em princípio, o crime de terrorismo tem mensagem ideológica contra um governo, uma autoridade, com tom intimidatório na população, enquanto o delito de violência é uma lesão corporal averiguada a partir de cada conduta individualizada, não de um ato em grupo. Para Perecmanis, a linha tênue entre os escopos desses crimes desaconselham a mudança na lei ou a criação de uma legislação específica:
– É algo difícil de distinguir. Vai ficar muito subjetivo, quando a técnica legislativa recomenda que as condutas recriminadas sejam claras e não deem margem a maiores interpretações. Quanto mais aberto for o tipo penal, quanto mais aberta for a previsão legal, maior a chance de influências políticas ou até ideológicas interferirem. É um risco para a segurança jurídica do país – opina.
Em meio aos esforços de coibir os excessos dos protestos, observa Moreira, "logo vem à tona o modo de operar do Congresso", em que, na avaliação do especialista, uma nova lei penal é elaborada a cada crime que choque a sociedade. Alckmin pondera que a violência não é exclusiva das manifestações brasileiras, mas nem por isso França, Espanha ou países árabes aplicaram uma lei naqueles moldes para contê-la. Uma lei que aqui seria, segundo Perecmanis, “totalmente desnecessária, casuística e extremamente perigosa”:
– Já existem no Código Penal vigente mecanismos legais contra a violência, a formação de quadrilha, a explosão, o vandalismo. Não há necessidade alguma de se fazer uma legislação específica, sobretudo ainda mais grave e para um período específico. Seria praticamente criar uma legislação de exceção.
Perspectiva compartilhada por Ribeiro, para quem o Código Penal brasileiro é "completo". Analistas reconhecem, todavia, a inexistência de uma legislação penal unificada e a desproporcionalidade dos crimes dentro de suas penas. No caso da lei antiterror, aponta Moreira, há também falta de critérios e definição aberta do tipo penal terrorista, o que poderia gerar condenações excessivas.
– O Brasil deveria adotar a reserva do Código Penal para previsão de todos os crimes no mesmo diploma, com maior visibilidade de um conjunto e unidade na proporção das penas e na definição dos crimes. As penas seriam mais uniformes, sem dilatações ou valorações pessoais. No caso do terrorismo, seria muito melhor seguir a orientação da resolução das Nações Unidas, em que esse ato é praticado com o fim intimidatório aos civis ou em tom de ameaça às autoridades locais — sugere Moreira.
Ribeiro alerta ainda que a dificuldade de qualificar esse tipo penal poderia produzir uma exceção calcada no preconceito:
– Quando se fala em terrorista nos Estados Unidos, se fala implicitamente de um árabe. E no Brasil, quem será compreendido como terrorista? – questiona.
Uma das maiores ressalvas ao projeto de lei é, inclusive, a possibilidade de criminalização dos movimentos populares e dos opositores do governo como um todo. Perecmanis não tem dúvida de que a nova lei “atrapalharia os protestos legítimos do povo”. Desta forma, ele acredita no veto da Suprema corte à aprovação do texto:
– As entidades de classe e os legitimados para o questionamento da constitucionalidade dessa lei vão arguir, eu imagino, a violação de garantias básicas do cidadão previstas no quinto artigo da Constituição, como o direito à livre manifestação, de reunião. Elementos fundamentais para o Estado Democrático de Direito.
À luz da segurança pública, Almeida alerta para o risco de criminalização e sentenciação de movimentos populares, de pobres ou de "alguém que não esteja satisfeito com o andamento dos processos políticos". Se amparadas por lei que tipificação do terror, "a tendência ao uso abusivo e desqualificado da força" aguçaria a violência, alerta o analista.
– Em termos de segurança pública, não me parece que essa lei ou pelo menos as ideias que têm regido essa discussão apresentam o sentido de aperfeiçoar a engenharia institucional. Por um lado, discute-se hoje o Projeto de Emenda Constitucional 51, da desmilitarização das polícias, um tema importante. Mas, por outro, há uma corrente que tenta tipificar o terrorismo, o que daria às instituições da ordem mais poder, com todos os seus problemas já existentes – completa.
Ainda em relação ao impacto dessa lei na atuação das polícias, Moreira chama a atenção para a possibilidade de abordagem prévia sustentada pelo que o direito chama de "potencial lesivo e abstrato". Prepararia-se o terreno, conforme Ribeiro, para a “criação de um poder discricionário”:
– A ideia de defender a sociedade é muito antiga, desde a legislação romana e os tribunais revolucionários da Revolução Francesa. Mas chegamos a um ponto em que esse poder soberano investido na polícia pode entender qualquer manifestação como terrorismo. Essa não é uma lei que produz liberdades, ela produz controle. Então, é assim: “você pode se manifestar, mas como eu quero”. Mas se eu quero me manifestar, não pode ser como o outro lado quer. É preciso lidar com essas contradições do tema.
Contradições cujo tratamento no projeto de lei é, de acordo com os analistas, ambíguo. O texto prevê que os movimentos sociais fariam parte de uma "excludente de ilicitude" (não seriam passíveis de punição, no linguajar jurídico) “desde que se utilizassem de meios adequados para protestar”. Para Moreira, "o problema desse parágrafo deixar a cargo do juiz a classificação do que é ato de violência e do que é manifestação". Ele admite a "tentativa de evitar punição de inocentes", porém ressalva: a deveria ser mais precisa. Já na opinião de Ribeiro, a redação é “bem objetiva”:
– Quando se fala de “meios adequados”, a questão é para quem se cria a construção da realidade do que seja adequado. Qual o sentido que vai se produzir dessa ideia de adequado? É uma forma de controle. Uma forma adequada é você simplesmente andar dentro de um lugar previamente determinado, não interferir no trânsito nem na ordem pública. Aí está a questão central.
Mesmo sem a criminalizaçao desses movimentos, analistas se dizem receosos em relação ao caráter intimidatório do direito penal. Apesar de reconhecer a possibilidade de as leis dissuadirem comportamentos, como é o caso da Lei Seca, Almeida duvida da eficiência da nova proposta: “sempre haverá o grupo que tentará driblar, escapar à lei”, argumenta.
Na visão do especialista em segurança pública, mesmo que não haja deslocamento de massa semelhantes aos de junho passado, as manifestações, com "suas disputas interpretativas", tiveram caráter pedagógico na busca por autonomia. De alguma maneira, diz ele, "há o aprendizado de que a mudança vem com participação, mobilização coletiva". Para Almeida, a lei não diminui "o caráter pedagógico de protestar".
*Colaborou Elsa Maffia.
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