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Rio de Janeiro, 24 de abril de 2024


Cultura

Baú da folia: bambas desfilam histórias movidas a batuque

Júlia Cople * - aplicativo - Do Portal

28/02/2014

 Arte: Viviane Vieira

Chegou a hora. Os quatro, cinco dias de festa dia já vêm raiando no embalo dos quase 500 blocos que vestirão o Rio neste carnaval. A cidade abre alas para 910 mil visitantes, segundo a Riotur, e 4 milhões de foliões só no Centro e da Zona Sul. O compasso econômico entra no ritmo: das ruas à passarela do samba, que faz 30 anos no domingo, a maratona movimenta R$ 2,2 bilhões, estima secretaria estadual de Desenvolvimento Econômico. Fartas também são as histórias regadas a confete e batucada. A convite do Portal, reconhecidos bambas lembram alguns desses casos que ajudam a entender por que Momo se sente tão em casa por aqui. 

Casos que remontam à infância, no caso de Nelson Sargento. O compositor, cantor, pesquisador, ator e (ufa!) escritor diz que sempre gostou de samba, mas ressalva: quando entrou nesse mundo, aos 10 anos, “não tinha noção de toda a cultura” reunida no gênero:

— Ficava embevecido com a escola Azul e Branco do Salgueiro, que se uniria à Depois Eu Digo para formar a vitoriosa Acadêmicos do Salgueiro. Mas aí eu já estava na Mangueira — conta Sargento, com uma naturalidade que suaviza o tom enciclopédico.

 Divulgação Querendo ou não, Nelson Sargento (foto) é uma das enciclopédias do nosso carnaval. Foi na Estação Primeira que ele tomou o caminho das letras e melodias. Entrosou-se com a ala dos compositores e viu “o samba surgir”. Ao lado do pai adotivo, Alfredo Português, e expoentes como Carlos Cachaça, Aluísio Dias e Cartola, amadurecia o compositor:

— Fiquei mais entendido de samba a partir dessa relação com bons letristas e instrumentistas. Cheguei até a terminar músicas de Cartola que apenas tinham a primeira parte, a pedido de Dona Zica (mulher de Cartola). Eles me ensinaram muita coisa, eu que não aprendi — brinca.

A relação com Cartola inspirou também a vida artística da cantora e compositora Beth Carvalho. Quando foi à casa do compositor e escolheu As Rosas Não Falam para gravar, muita gente achava que ele tinha morrido. Beth conta que perguntou se Cartola tinha músicas para mostrá-la e “só ouviu obras-primas”. Além da canção que sua voz eternizaria em 1975, conheceu Acontece e O mundo é um moinho, melodia que Cartola julgou “não servir para ela”:

— Ele me disse que O mundo é um moinho não serviria para mim, porque eu mataria a música.  Eu já tinha escolhido As Rosas Não Falam, mas fiquei injuriada. Por que eu mataria a música? Eu perguntei e ele continuou me mostrando seu repertório. Não me conformei e voltei ao assunto. Finalmente ele me respondeu que era lenta demais para mim — lembra, bem-humorada.

Três anos antes, Beth havia gravado Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho, cedida pelo próprio compositor junto ao instrumento que lhe empresta o apelido, com direito a dedicatória no tampo. Outro momento marcante, que se soma ao encontro dos dois no desfile da Mangueira em homenagem a Braguinha, em 1984:

— Consegui convencer o Nelson a desfilar. O abre-alas era só compositor, Carlos Cascata, Cartola. Uma coisa emocionante. Só fera, e o Nelson não queria ir porque nunca havia desfilado. Ele me ouvia muito. Fazia tudo o que eu queria. Você tem que desfilar, eu dizia para ele, vai estar todo mundo lá! Ele se animou, aí eu fiquei toda emocionada.

O desfile de Braguinha, palpita a memória de Beth, transcende a emoção do carro abre-alas. Ela recorda que a a Mangueira “foi e voltou” no Sambódromo, deu a volta na praça da Apoteose e sagrou-se Super-Campeã logo na inauguração da Passarela do Samba. Difícil imaginar melhor batismo. 

No mesmo ano, a Madrinha do Samba traz da lembrança outro desfile emocionante: da Unidos do Cabuçu, cujo enredo era justamente Beth: a enamorada do Brasil. A abertura das notas no dia da apuração confirmou o sucesso da homenagem: a Cabuçu foi consagrada primeira campeã do Sambódromo e voltaria à elite das escolas de samba pela primeira vez desde 1977.

Homenagens também balançam Nelson Sargento. Além do enredo Yes, Nós temos Braguinha e O mundo encantado de Monteiro Lobato, de 1967, ele destaca o desfile da Verde-e-Rosa de 1999: O Século do Samba, uma ode aos imortais do gênero:

— Carlinhos de Jesus fez uma Comissão de Frente histórica. Eram clones dos próprios Cartola e Nelson Cavaquinho, com Ismael Silva, Clementina de Jesus, Candeia, Clara Nunes. O Sambódromo pensou que eles estavam vivos. Foi sensacional aquele ano. Mas todos os carnavais são sensacionais para os mangueirenses. Eu só penso na vitória da minha Mangueira.

 Arte: Viviane Vieira Se a folia da Estação Primeira encanta essas referências da música popular brasileira, o ator, escritor, produtor e sambista Haroldo Costa (foto) ressalta a importância do desfile da Acadêmicos do Salgueiro de 1963. No ano em que a festa deixou a Avenida Rio Branco para tomar a Presidente Vargas, na Candelária, a Vermelho-e-Branco da Tijuca “fez história no carnaval carioca”:

— O enredo Xica da Silva, de Arlindo Rodrigues, um dos mais brilhantes do Salgueiro, mudou a minha perspectiva do carnaval. Ganharam título inédito. Passei a torcer pela escola. Mudou a própria cara da data festiva. Essa época, inclusive, deu uma nova estética à festa — justifica.

Como o carnaval vai muito além dos desfiles memoráveis e cada vez mais espetaculosos, desde 1984 no sambódromo da Marquês da Sapucaí, Nelson Sargento reserva um canto especial da memória às festanças de rua da infância. Colombinas, pierrôs e ciganas reuniam-se em vilas, ruas pequenas, e desfilavam pelos bairros do subúrbio. "Mas havia quem gostasse de brincar sozinho. É o bloco do eu-sozinho", ressalva. 

 Arte: Viviane Vieira Vá lá, alguns gostam de curtir sozinhos os dias serpentina, mas Beth (foto) jamais se esquecerá dos oito mil levados pelo Cacique de Ramos em 1977. Ela sentiu “emoção como poucas” ao ser o destaque do carro das princesas. Era o ano de Vou Festejar, música que, conta a cantora, levantou o bloco depois de uma fase menos prestigiada.

Quem também faz questão decultivar o espírito folião é o pianista, compositor e produtor cultural João Roberto Kelly (foto). Até hoje, aos 75 anos, considera irresistível o apelo do carnaval carioca:

— Sempre gostei muito de carnaval. Não só porque compunha marchinhas, mas também porque nunca fiquei parado. Se colocar uma banda tocando, eu já estou lá no meio, sem dúvida. Se sou assim agora, com 75 anos, imagina com 27.

Tal animação ajudou sua arte a imitar a vida. Esse ano, o bloco Céu da Terra, de Santa Teresa, com a qual Kelly diz ter “uma ligação especial”, homenageará o cinquentenário de uma das mais emblemáticas músicas da festa carioca. Kelly diz que, assim como as demais marchinhas, Cabeleira do Zezé foi criada a partir de uma sátira à influência dos Beatles nos jovens brasileiros.

Ao terminar o expediente na TV Excelsior, ele costumava ir ao Bar São Jorge, em Copacabana. “Tudo sempre nasce em um barzinho”, diverte-se. Em uma noite “como qualquer outra”, em meio à “boemia saudável dos anos 60”, Kelly se deparou com um garçom cuja cabeleira chamava a atenção. Um jovem extrovertido, que corria de um lado para o outro “dando alegria ao ambiente”, descreve. Uma figura representativa da "clara influência” da beatlemania nos jovens brasileiros da época, sobre o qual julgou render uma composição satírica:

— Achei aquele jovem engraçado. Hoje é normal ver um cabeludo, mas na época, não. Chamei o garçom e disse que, se eu fosse um caricaturista, eu a faria ali, porque ele era a própria caricatura. Mas como não sou, vou fazer o que sei: uma marchinha de carnaval. Fiz a primeira parte. Todos os frequentadores e garçons cantavam. Tenho muito orgulho, porque faz sucesso até hoje.

 Divulgação Kelly (foto) confessa que nem sempre os risos inspiram suas composições. Muitas músicas, lembra, nascem de histórias de amores fracassados. “Mas já que estamos no carnaval, é bom levar o papo na alegria”, propõe.

Alegria que era a tônica do programa que apresentou na TV Rio na década de 1970: Rio dá samba, ao estilo Chacrinha. Da relação com o Velho Guerreiro, uma das cinco "melhores pessoas" que ele diz ter conhecido na televisão, o compositor destaca as parcerias nos hits Maria Sapatão e Bota a camisinha, meu amor. No programa de Kelly, pagodeiros e partideiros cantavam enquanto mulatas requebravam. Uma sintonia que inspirou a Dança do Bole Bole, pois sentia falta de um “espaço para as mulheres mostrarem o que podiam fazer”:

— A origem da música é minha admiração por todas as passistas das escolas de samba e fora delas. A mulata dançando é um monumento em termos plásticos. Só a batucada não dava conta, não dava aquele ar sensual da mulher. Quis fazer uma música mais suingada para que pudessem criar uns passos.

* Colaborou Wendy Andrade.