Clara Freitas e Mariana Totino - aplicativo - Do Portal
24/01/2014A barbárie que ocorreu dentro e fora do complexo penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, trouxe novamente à tona o problema de superlotação das celas, má administração, violência, presença do crime organizado e corrupção nos presídios brasileiros. São questões recorrentes no país, que tem a quarta maior população carcerária do mundo, com cerca de 548 mil detentos e um déficit de 207 mil vagas. Em 20 anos, esta população cresceu 380%. Apesar de ser uma crise anunciada, desencadeou uma explosão de violência que chocou não só o país como chamou a atenção da sociedade para a situação degradante das cadeias, com as fotos e vídeos compartilhados no mundo inteiro. Em ação ordenada por presidiários, quatro ônibus foram queimados na capital maranhense, causando a morte da menina Ana Clara, de 6 anos, no dia 3 de janeiro, após a Tropa de Choque da Polícia Militar iniciar operação para conter uma onda de crimes na instituição – 62 presos foram mortos dentro de Pedrinhas desde o ano passado. Nesta quinta-feira, 16, uma tentativa de motim foi contida, e a situação dos presídios está longe de ser melhorada.
Em 2008, em entrevista ao Portal, a especialista em Criminologia, Direitos Humanos e Cidadania Elizabeth Sussekind, que estuda as prisões brasileiras desde 1972 e é professora de Direito Penal da PUC-Rio há mais de 30 anos, traçou um diagnóstico sombrio sobre o sistema penitenciário brasileiro. Seis anos depois, Elizabeth fala novamente com o Portal. Para a pesquisadora, o balanço é ainda pior:
Portal PUC-Rio Digital: O que aconteceu no presídio de Pedrinhas já era previsto? Poderia ter acontecido em outro lugar?
Elizabeth Sussekind: Poderia ter sido previsto. Mas, mesmo com os avisos dados durante os mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça, em 2010, nada foi feito. O Maranhão não esperava nada diferente daquilo, mas surpreendeu o fato ser divulgado desta maneira, não somente pela mídia, mas pelos próprios presos. A matança teve o propósito de horrorizar e chamar a atenção da sociedade. Há outros estabelecimentos em péssimo estado, candidatos a eventos trágicos semelhantes. A morte de presos vem ocorrendo cada vez mais, pouco a pouco. Só vão para os meios de comunicação em casos mais expressivos, e por razões políticas, também.
Portal: O Maranhão é um dos estados com menor IDH e com o maior percentual de miseráveis, ou seja, pessoas com renda mensal de até R$ 70. A situação de dentro do presídio reflete esse cenário?
Elizabeth: Sim, o Maranhão tem uma história de domínio e exploração, pelo poder quase ilimitado concedido a uma família. Mas há vários problemas em diversos estados, que apresentam índices melhores. Apesar disso, não há um investimento maior nesse setor. Os presídios continuam sem recursos, sem atenção e sem controle.
Portal: Em 2008, também em entrevista ao Portal, a senhora afirmou que o sistema penitenciário era um modelo falido, que havia saído do controle do Estado, e que não havia perspectiva de melhora. O que mudou nestes seis anos?
Elizabeth: O sistema prisional mudou para pior. O Estado adotou políticas de aceitação de que a prisão não recupera o preso. Sendo assim, não aceitou isso no sentido de tomar providências para transformar essa realidade, e, sim, para concordar com este fato. Uma vez que não recupera, também não melhora e fica do jeito que está. Os poucos esforços no sentido contrário foram sendo desmobilizados.
Portal: A população carcerária mudou desde 2008?
Elizabeth: A população presa continua muito jovem, e esse é o efeito das políticas relativas à repressão ao pequeno tráfico de drogas, mantido por eles, em comunidades carentes.
Portal: Além da violência, da corrupção policial e da superpopulação dos presídios, que outras questões deveriam ser discutidas?
Elizabeth: A corrupção policial não é a vilã neste caso. Trata-se de corrupção governamental, e de distribuição de recursos. Uma mistura de ideologia de pouco caso, nenhum cuidado com a população que comete crime, entendida como lixo; e, consequentemente, da não aplicação de recursos públicos na área. Com esse tipo de orientação, de ideologia, o melhor que poderia ocorrer seria uma fila de penitenciárias mantendo o espaço aliviado, menos tenso. Só isso. Maus tratos, alimentação, falta de estudo e trabalho e muito mais estariam ainda presentes.
O fato é que, após décadas de desprezo, despreparo, corrupção, abandono e tudo o mais que se vê no sistema prisional, sua população encerrou os diálogos que tentava manter com a administração, até meados da década de 1970. E tomou seu próprio caminho para suprir deficiências que podia suprir. Assumiu o domínio, ditando regras de ordenamento e de convívio. Vivendo mal, mas sem esperar eternamente pelo cumprimento de promessas e de deveres do Estado previstos em lei.
Portal: A senhora defende a privatização dos presídios? Por que esse modelo não deu certo no complexo de Pedrinhas? O que poderia ser feito, não só em Pedrinhas, mas em outros presídios, para esse modelo funcionar?
Elizabeth: Não, o que eu defendo são as parcerias na administração. Podem ser com grupos religiosos, ou de defesa de direitos humanos, ou, mesmo com empresas. O que se vê em Pedrinhas e em outros estabelecimentos com os serviços terceirizados que visitei é que o objetivo não é viabilizar o cumprimento dos direitos dos presos, facilitar a vida ali dentro, possibilitar trabalho e estudo para todos, e o acesso permanente a médicos, advogados, roupas, etc. O que constatei é apenas a terceirização da segurança interna, de forma a reduzir fugas, e de forma a que os parceiros e amigos do governo sejam os que prestam mais esse serviço. Pedrinhas é o exemplo do que estou falando, mas não o único. Nada têm a ver com estabelecimentos gerenciados pela iniciativa privada. Estão sob o controle completo do governo do estado, e com objetivos completamente distintos do que deveriam ter.
Portal: O sistema penitenciário brasileiro tem investido na reintegração dos presos à sociedade? Isso acontece em algum lugar no Brasil?
Elizabeth: De duas décadas para cá, o sistema penitenciário entende que sua função é manter os presos dentro da prisão. Projetos de reintegração são raros, esparsos, momentâneos, fragilizados, e estão na contramão do sistema. Eu não contaria com a capacidade deles de fazer diferença no grande estrago que o sistema prisional vem causando à segurança como um todo, à segurança de fora dos muros.
Portal: Como é monitorada a violência dentro dos presídios?
Elizabeth: Há estudos procurando contabilizar mortes e outras formas de violência ocorridas nas prisões. Mas os estados têm suas próprias formas de levar adiante o que fazem, que tem a ver com poder, eleições, permanência, emprego de recursos públicos, etc.
Portal: Uma parte da população alimenta essa falta de interesse com a situação degradante dos presídios. Há um descaso pelo simples fato de serem presos?
Elizabeth: Sim. Certamente. E, se, por acaso, em um exemplo como o do Maranhão, que pode ser em qualquer outra parte do Brasil, fossem empregados recursos, mão de obra especializada, debatidos caminhos e soluções, a sociedade reclamaria. Pois como, em um país sem estrutura sequer para garantir escola de qualidade para sua população, vão ser usados gastos, empregados tais recursos com presos, logo essa população que cometeu delitos, violou leis, prejudicou outros, apenas por interesse próprio?
Colaborou: Danilo Azevedo.
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