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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


Saúde

Ritalina: excesso de diagnósticos de transtorno de atenção

Mariana Totino* - aplicativo - Do Portal

17/12/2013

 Arte de Mariana Totino

Acompanhando o aumento do consumo de psicofármacos, conhecidos como “tarja preta”, o Brasil vive uma explosão de diagnósticos de transtornos comportamentais, como o de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), entre crianças e adultos. Na última década, o país se tornou o segundo maior mercado da ritalina, medicamento que aumenta o foco de atenção e inibe o excesso de movimentação, e por isso é o mais indicado em casos de TDAH. As vendas subiram de 75 mil caixas para cerca de 1,7 milhão por ano no Brasil, número que poderia indicar uma epidemia. Na verdade, especialistas alertam que o aumento expressivo no uso da droga está relacionado a diagnósticos inadequados e uso indiscriminado, que têm como base mudanças nas relações familiares e falhas no sistema de saúde. A popularização da medicação para outros fins, como melhorar o rendimento de estudantes em provas, pode significar um cenário de novas tendências sociais, em direção a uma “biologização da vida” ou uma “medicalização da subjetividade”.

Considerada benéfica para casos graves, a ritalina (cuja substância ativa é o cloridrato de metilfenidato) atua como uma droga, podendo causar efeitos colaterais diversos e dependência. Ao mesmo tempo, crianças muito agitadas, com baixo rendimento escolar, dificuldade de interação social, de concentração ou pouco interesse em atividades não necessariamente sofrem de TDAH. Para o pediatra Daniel Becker – que trata deste e de outros temas em seu site e na página Pediatria Integral do Facebook –, diagnósticos equivocados justificam grande parte do aumento dos registros.

 Há pressão sobre a família para buscar um diagnóstico. A escola pode culpar a criança e a família, fazendo queixas sobre mau comportamento, indicando um neuropsicólogo. Já atendi crianças com um relatório de vinte páginas de institutos dizendo que eram impulsivas, agressivas, inquietas, não sociáveis, quando não era nada disso. Crianças consideradas “desobedientes” ou “malcriadas” muitas vezes sofrem pressão para que se enquadrem em determinado padrão. Comportamentos diferentes podem ser normais para a idade, ou algo temporário.

Para atestar um transtorno psíquico, diz Becker, é preciso considerar o convívio da criança com a família, o desempenho na escola, além de hábitos cotidianos. A distância dos pais do dia a dia dos filhos ou a desatenção em relação a seus sentimentos podem contribuir para a validação de diagnósticos inadequados:

– Os pais devem procurar avaliações muito criteriosas. Um diagnóstico pode ser induzido. É preciso consultar um bom pediatra, um bom psicólogo, fazer a avaliação com diferentes profissionais, com fonoaudiólogo, psicopedagogo, e avaliar a própria escola, entendendo melhor o dia a dia do filho.

O psiquiatra Rossano Cabral Lima, do Instituto de Medicina Social da Uerj, reforça que os diagnósticos devem ser mais restritos e criteriosos, uma vez que pesquisas que monitoram o uso da ritalina são limitadas e o remédio ainda é mal distribuído (este ano ele passou meses fora das prateleiras). Presente em 3% a 5% da população mundial, o Déficit de Atenção aparece em 20% dos casos de transtornos psíquicos, e pode ser acompanhado de dislexia ou transtornos da linguagem em 50% dos pacientes, coexistência que pode ou não estar relacionada. O psiquiatra defende que a medicação seja empregada apenas em casos de moderado a grave do Déficit de Atenção e Hiperatividade.

– A medicalização é rápida, e é algo crítico. Os pais ficam confusos. É preciso pensar que na infância não temos margens de normalidades. Nem toda diferença é patologia, e há comportamentos que são temporários. Não se deve cobrar de uma criança de 2 ou 3 anos um foco de comportamento, criar tanta expectativa – afirma Cabral Lima.

Cabral Lima conta que a maioria de seus pacientes com o transtorno estão na época da alfabetização, entre 5 e 6 anos, e dois terços dos que apresentam TDAH na infância continuam manifestando os sintomas quando adultos. Na seção de depoimentos dos sites da Associação Brasileira de Déficit de Atenção e do TDAH.net, são comuns os relatos de pessoas que descobriram ter o transtorno aos 20 e poucos anos.

 DivulgaçãoBecker destaca que a medicalização excessiva é potencializada pela crença, socialmente difundida, de que todo mal exige um remédio. Embora necessária em muitos casos, nem sempre esta é a melhor saída. O pediatra Daniel Becker defende que, primeiro, a família deve ser ajudada a fazer correções em seu estilo de vida. Atualmente, o médico não tem qualquer paciente fazendo uso de ritalina, e conseguiu fazer com que pelo menos dois deles evitassem a ingestão do psicofármaco. Com uma alimentação saudável e, principalmente, atividade física, é possível reduzir a hiperatividade da criança:

– Para uma criança com a síndrome de desatenção e hiperatividade grave, a ritalina é como um antibiótico para uma infecção no pulmão. Mas, quando receitada inadequadamente, pode causar problemas como insônia, irritabilidade, perda da imaginação, da criatividade, além de prejudicar, em nome de um comportamento, a vida psíquica de crianças, que são naturalmente seres mais agitados.

Hoje estudante de direito, Marcelo Carvalho Loureiro, de 21 anos, poderia ser mais um nessa lista, pois recebeu na adolescência o diagnóstico de TDAH. Nos últimos anos escolares, quando se preparava para os vestibulares, Marcelo foi a um psicólogo e a um neurologista, por achar que ficava muito disperso nas aulas.

Apesar de não ter notas ruins nem comportamento inadequado, o laudo médico parecia correto para o estudante. Manteve por dois anos o tratamento com Ritalina e Zetron para potencializar a ação, até manifestar efeitos colaterais, como aumento de ansiedade e taquicardia. Após a suspensão do tratamento, Marcelo consultou outro médico e teve um novo diagnóstico:

– Não notava muita diferença no meu comportamento com ou sem remédio. Apenas uma ligeira diferença na minha atenção. Parei de tomar porque alguns dos efeitos colaterais, que muitas vezes não são falados pelos médicos, começaram a interferir na minha saúde. Quando me disseram que não tinha déficit de atenção foi um pouco chocante. Disseram que, na verdade, eu tinha desenvolvido mais de um tipo de inteligência, o que é raro. Hoje ainda existem muitos médicos que dão o diagnóstico de forma inadequada e outros que não o fazem, pois existe muita disparidade de diagnóstico entre os médicos e os psicólogos.

Por outro lado, em muitos casos suspeitos o diagnóstico não é confirmado. Aos 12 anos, Guilherme dos Santos, no 4º ano do Ensino Fundamental, ainda tem dificuldade de concentração na leitura e na escrita, e não consegue gravar a sequência dos dias da semana. Após repetir de ano duas vezes, na quarta escola conseguiu evoluir. Apesar de apresentar sintomas que poderiam indicar TDAH ou dislexia, não tem um diagnóstico fechado. Um dos profissionais que o assistiram receitou ritalina, mas, após alguns meses, foi interrompido o uso da droga, que, segundo seus pais, diminuía sua autoestima e fazia com que se isolasse mais. Hoje, sem remédios, ele frequenta fonoaudióloga, tem aulas com um professor particular e faz provas orais na escola.

Para Daniel Becker, os riscos da prescrição médica equivocada somam-se aos da automedicação, provocando efeitos colaterais muitas vezes danosos. O pediatra cita o uso indiscriminado de outros medicamentos, como a cortisona, que, diferentemente dos antibióticos – também prescritos em excesso por médicos, “já na primeira vez que veem a criança” –, dispensa a retenção da receita médica nas farmácias. O pediatra lembra o caso de uma criança a quem, meses após receitar cortisona, a mãe voltou a dar a droga, sem o aval médico e com dosagem errada.

Reprodução da internet  A banalização do uso do medicamento indicada por levantamentos das autoridades de saúde, como a Anvisa, segue uma tendência mundial de padronização de comportamentos e ambições por performance. Nos Estados Unidos, onde 15% das crianças são diagnosticadas com TDAH e 3,5 milhões fazem uso de medicação, escolas adotam o metilfenidato (Ritalina ou Conserta, sugestivo nome de fantasia) para melhorar o desempenho dos alunos em avaliações e provas.

Ausência dos pais é agravante

De acordo com Daniel Becker, como em outros aspectos da vida da criança, a ausência dos pais pode ser um problema presente na raiz de muitos diagnósticos e tratamentos equivocados. Por desconhecer o dia a dia dos filhos, os pais podem ser levados a acreditar em laudos médicos equivocados:

– A ausência dos pais é um dos maiores problemas para a criança hoje em dia. A maior parte dos pais tem que trabalhar e fica muito pouco tempo com os filhos, e ainda passam por pressões quando chegam em casa. Então, existe uma tendência muito grande de apelar para soluções fáceis. Não ter paciência para o mau comportamento que às vezes é derivado justamente dessa dificuldade de conviver com os pais.

O problema também é apontado por Cabral Lima como possível causa do aumento de diagnósticos:

– As famílias têm mudado em vários sentidos. A garantia de autoridade dos pais já não existe e é posta em xeque. Hoje, a família não é mais instituição tão sólida. Se, por um lado, o enfraquecimento da autoridade parental democratizou a circulação de afeto, favoreceu a perda de referenciais de como agir. Essa falta de norte acaba se traduzindo em transtornos e manifestações comportamentais.

“Medicalização da subjetividade”

Rossano Cabral Lima cita o termo “psicofarmacologia cosmética ou do aprimoramento” para se referir à apropriação de uma medicação mesmo quando não há diagnósticos ou quadro clínico específico. Uma brecha no protocolo médico permite a difusão do uso mais informal da ritalina e colabora para uma crescente “medicalização da subjetividade”. Segundo o psiquiatra, a utilização de remédios em casos opcionais, ou até dispensáveis, é amplamente aceita, e mesmo práticas outrora consideradas antiéticas são admitidas. A crença maior no poder dos remédios resultaria da perda de referências:

– O discurso da interioridade tem sido posto à prova. Hoje, ninguém tem mais tempo para mergulhar nos sentimentos, no inconsciente, e os psicofármacos têm papel central nisso. Já que a religião, a família, até a carreira profissional não definem mais o que somos, o lugar dessas grandes narrativas passou a ser preenchido pela biologia, pela neurociência, pela genética, pelo saber sobre o corpo. Não se tem mais a noção de que se pode aprender com a dor de qualquer nível, inclusive a dor física, e sair moralmente mais fortalecido. Hoje, a tolerância a qualquer tipo de dor é mínima. As pessoas preferem saídas mais rápidas e “eficientes”, até porque a sociedade exige rapidez.

Daniel Becker acrescenta que questões atuais como o consumismo, o ineditismo, a falta de tempo para a reflexão, a perda da identidade familiar refletem na medicalização em excesso. Acreditar que, ao comprar um remédio na farmácia, o mal-estar será resolvido corresponde a uma tendência por se preocupar menos e não precisar ser o sujeito da mudança, e se dedicar por muito tempo a um problema. Com a vida moderna e diluída, é maior a busca por soluções rápidas, imediatas, fáceis e, principalmente, que sejam consumíveis:

– Prefere-se oferecer um remédio para si mesmo ou para outras pessoas para evitar problemas complexos, como questões do comportamento, do sofrimento psíquico, achando que vão conseguir soluções imediatas. Todas as sociedades apelam para drogas. Dentre as legais, estão as produções das indústrias farmacêuticas. Os efeitos podem ser muito poderosos e são capazes de oferecer alívio para certos sofrimentos ou soluções temporárias, até recreativas para certas situações da vida. Mas, nenhuma dessas drogas é isenta de efeitos colaterais. Sem indicação médica, tem potencialmente mais perigo.

Apesar de grande parte da sociedade ainda discriminar o uso de drogas – mesmo as legais –, a indústria farmacêutica se aproveita de um novo ethos, oferecendo produtos para satisfazer a voracidade de consumo de soluções fáceis:

– O problema é que a medicina está usando essas drogas de forma errada também. Os médicos estão usando essa droga para aumentar seu prestígio e seu poder. O consumo indevido de drogas vem também da prescrição médica desnecessária e excessiva. Com a pressão que a indústria farmacêutica faz, vai ser totalmente legítimo usar ritalina para aumentar concentração ou em momentos de estresse no trabalho. Já está sendo usado informalmente, mas daqui a pouco vai constar em manuais. Vejo como uma tendência por causa da soberania do mercado capitalista – alerta o pediatra integral.

* Colaborou Isabella Rocha.