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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


País

A alma brasileira nos 80 anos de 'Casa-grande & senzala'

Mariana Totino - Do Portal

02/12/2013

 Ilustração de Gilberto Freyre/Acervo FGF

Oito décadas de publicação, completadas neste mês de dezembro, diversas mudanças ocorridas na sociedade, e o livro Casa-grande & senzala permanece como uma interpretação sem paralelos da identidade brasileira. Ao chegar ele mesmo aos 80, o autor da obra, o sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), afirmou ter diante de si um mundo a realizar as mais surpreendentes acrobacias sociais: “O menino que persiste em mim vê esse espetáculo de olhos arregalados e espantados”. A fala, registrada pelo jornalista Joel Silveira em 1985, ressalta a capacidade de Freyre de manter o olhar de espanto de um menino e desfrutar o desconhecido. Constantemente articulada com fatos atuais e escrita de forma não-linear, Casa-grande & senzala é como uma conversa. Assim o pernambucano que estudou nos Estados Unidos e oferecia licor de pitanga a quem visitava sua casa no bairro de Apipucos, em Recife, retratou a formação de um país híbrido e mestiço.

Estas características possibilitaram uma tradução autêntica do povo brasileiro. Seguido por Sobrados e mucambos e Ordem e progresso, Casa-grande & senzala construiu bases e é referência na elaboração de discursos sobre a identidade brasileira. Nas palavras de Freyre, a obra revelou um indivíduo em busca de sua identidade, “a formação mais íntima de um povo: ou de um homem coletivo – o brasileiro, em particular, e o homem de várias origens situado no trópico”. O próprio sociólogo classificou seu trabalho como uma “autobiografia coletiva”, por ao mesmo tempo biografar a si mesmo e a quase todo brasileiro.

Se um dia a mestiçagem foi considerada um atraso no país, Casa-grande marcou a consolidação de uma visão positiva sobre o tema, transformando-o num traço que definia uma característica forte e um caráter único do brasileiro. A miscigenação, tratada como um aspecto positivo, contribuiu para a criação de uma imagem de um povo mais vulnerável e aberto a incorporações. A herança do colonizador português que não teve medo de explorar novos territórios e de entrar em contato com outras culturas não implicou em uma síntese, e sim, num convívio.

Reprodução Na visão do historiador e professor da PUC-Rio Ricardo Benzaquen de Araújo, esse convívio de diferenças, embora marcado por um equilíbrio, nunca deixou de ser tenso. Apesar de Freyre acreditar que a colonização no Brasil foi mais “açucarada” em relação a outras colonizações europeias, ele não descartava o caráter opressor da experiência escravocrata brasileira. Benzaquen afirma que a esterilidade cultural atribuída ao caráter híbrido do brasileiro passou a ser substituída por um pensamento de igualdade. Esta visão superou o esforço de se igualar à superioridade das sociedades europeias (que acreditavam serem mais evoluídas, segundo o discurso dominante na época). Firmou-se, então, como uma espécie de cultura nacional, ao encontrar eco na sociedade.

– Apesar de ter havido proximidade nas relações entre a casa grande e a senzala, foi mantida uma dimensão opressiva, que não permitia uma separação. As desigualdades não foram postas de lado – afirma o historiador, que ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Ensaio em 1995 com Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30.

Apesar de ter sido acusado de idílico pela visão que sustentava quanto à miscigenação, Freyre não romanceou. No livro há dados sobre intimidade, alimentação, vestuário, relações sexuais, aliados a um modo autêntico de escrever e à consulta de fontes pouco utilizadas na época – testamentos, diários, cartas, jornais, relatórios de viajantes, fotografias, receitas, iconografia e entrevistas com descendentes de escravos. O aspecto econômico do colonialismo e a consolidação das grandes propriedades monocultoras e escravistas também foram abordadas. Ao optar por narrar o que acontecia na esfera privada, Freyre construiu uma micro-história brasileira, privilegiando a ideia de família e a unidade da casa.

Hoje consagrado, o livro está na 51ª edição e não é grande só na fama. Atualmente, ele é publicado pela editora Global, mas a primeira a publicá-lo foi a Schmidt e, em seguida, a José Olympio. Chegou a ser divido em dois volumes e, na última edição, apresenta um total de 728 páginas. Quando lançado, em 1933, foi alvo de críticas por abordar a dimensão íntima e descrever inclusive os costumes sexuais:

 Reprodução – O livro foi tratado como pornografia. Foi um susto nos anos 30, recebeu críticas de católicos de direita. É um livro oral que aborda a dimensão íntima. Mas o que estava em jogo era discutir o assunto de maneira peculiar. Freyre discutiu até sobre sexo, que era uma das experiências entre senhores e escravos na casa grande – lembra Benzaquen, destacando na obra traços do modernismo e relações com uma estética de vanguarda.

Já no fim dos anos 1930, Casa-grande foi associado a um conjunto de trabalhos e ensaios que definiam o Brasil, como o de Caio Prado Júnior, de 1928, que tinham em comum a preocupação em redefinir uma identidade nacional, e foram sintetizados para definir o tipo brasileiro. No entanto, pondera Benzaquen, nenhum insistia na noção de mestiçagem da mesma forma que Freyre.  

A historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, pesquisadora associada ao Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge e autora da biografia Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos (Unesp/2005), premiada com o Jabuti, lista autores como Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Júnior, que escreveram, quase na mesma época, livros que poderiam ser chamados de rivais ao de Freyre, porém menos abrangentes, e mais modestos, além de Stuart Schwartz, que questionou em profundidade aspectos isolados do livro de Freyre. Maria Lúcia afirma que, numa era cada vez mais especializada, um questionamento mais amplo tornou-se ainda mais difícil:

– Desde 1933, não consigo pensar em ninguém que tenha se disposto a enfrentar o desafio de competir com a interpretação de Freyre. Foi a mais abrangente e interdisciplinar do Brasil, que ainda hoje se apresenta como algo inédito.

De acordo com o jornalista e professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco Anco Márcio Tenório Vieira, Casa-grande & senzala é a interpretação mais inovadora sobre a sociedade brasileira:

 – O conjunto de inovações teóricas e metodológicas faz da obra um marco nas ciências sociais. As explicações cientificistas sobre o Brasil foram enterradas ao separar, dentro da teoria e do método da antropologia cultural, o termo “raça” de “cultura”. A miscigenação brasileira foi transformada em algo positivo. Freyre construiu uma obra que não conclui. É como se dissesse que o fenômeno humano não pode ser apreendido em sua totalidade pelas ciências sociais e humanas. Ele relativizou os estudos de campo e os de gabinete, e os contrapôs ou os submeteu a vivências interiores. Estranho é observar que esse caminho faz de Freyre um cientista muito mais próximo do nosso tempo do que do seu. Ele mostrou o quanto ainda existia de positivismo nos estudos etnográficos que aprendera na faculdade de antropologia – pontua Tenório Vieira. 

Mestiçagem e o termo democracia racial

Numa época em que ainda eram dominantes doutrinas cientificistas, como o positivismo – que atribuía a povos etapas de evolução –, e os determinismos biológico e geográfico – que viam os indivíduos por características fisiológicas ou pelo meio em que viviam –, Freyre rompeu com essas ideias, valorizando a cultura em vez de a raça. Inspirou-se nas vanguardas da antropologia americana, protagonizada por Franz Boas, de quem foi aluno na Universidade de Columbia. Boas foi pioneiro do relativismo cultural, princípio que defendia que cada cultura se expressa de maneira diferente.

 ReproduçãoNa biografia de Freyre, Maria Lúcia Pallares-Burke listou autores e livros importantes para a formação intelectual do sociólogo pernambucano. Segundo a pesquisadora, a incorporação desse pensamento relativista que desprezava cientificismos teria sido mais lenta do que Freyre quis admitir. Ainda jovem, ele se preocupava com os efeitos negativos das crescentes imigrações e teria compartilhado de opiniões semelhantes sobre o movimento eugênico presentes em obras de líderes norte-americanos do racismo científico, no período em que viveu nos Estados Unidos (de 1918 a 1922).

A historiadora destaca que, nesse período, Freyre, chamado de “escurinho”, teria sido vítima de preconceito como estrangeiro latino-americano, o que o teria influenciado na defesa de uma maior igualdade de raças.

No primeiro capítulo de Casa-grande & senzala, Freyre menciona uma resistência superior de determinadas raças a “certas influências patogênicas peculiares, caráter ou intensidade e ao clima tropical”, o que pode ter levado a suspeitas de resquícios de uma crença no cientificismo.

– Como muitas pessoas respeitáveis na época, Freyre pensara e observara de acordo com o paradigma racial dominante. Estava convencido de que a superioridade de uma raça e a inferioridade de outra eram fatos imutáveis, provados pela ciência.  Apesar de ter abandonado esta visão, e passado a observar a partir de uma perspectiva na qual a cultura suplantava a raça, Freyre continuou a usar os conceitos e a linguagem da eugenia.  Mas o fazia de maneira descritiva e algumas vezes provocadora, como um estrato arqueológico ou uma camisa de força inevitável da época. A linguagem usada por Freyre é testemunha do período no qual escrevia.

Ricardo Benzaquen acrescenta que essa noção peculiar da raça não era uma concepção racista ou cientificista, e sim, influência da teoria de Lamarck, naturalista francês cuja crença era a de que traços incorporados eram transmitidos e herdados às gerações seguintes, e que os seres humanos evoluem constantemente para graus maiores de complexidade e perfeição. Freyre teria misturado esses conceitos, ao fim incorporando-os. Maria Lúcia ressalta que este uso da palavra raça não significa preconceito com a população negra e mestiça, sentimento partilhado entre o sociólogo quando jovem e a elite do país . Para ela, falar sobre raças e distinguir umas das outras não seria hierarquizá-las, assim como dizer que Freyre não se libertou das crenças em superioridade racial seria esquecer a aparente inevitabilidade do uso deste termo:

 – As pretensões do racismo “científico” foram há muito desacreditadas, mas criticar o racismo é praticamente impossível sem usar a linguagem de raça, sem dizer que a ideia de uma hierarquia de raças não tem fundamento e que raças diferentes devem ser tratadas como iguais, ou sem dizer que o cruzamento das raças é bom ou neutro em vez de maléfico. Ainda há muitos institutos que usam o termo “relações raciais” em seus títulos. O objetivo é geralmente “justiça racial”, a ser alcançada pelo estudo da “discriminação racial” ou da “desigualdade racial”. Enfim, como “cultura”, “raça” é uma categoria que ninguém consegue definir satisfatoriamente, e parece que ninguém consegue evitá-la.

Tenório Vieira frisa que o termo democracia racial foi criado pelo sociólogo francês Roger Bastide com base na obra do pernambucano, em 1944. O termo usado por Freyre é “democracia social”, relacionando-se ao fato da verticalidade social do Brasil Colônia (senhores, escravos, homens livres) ser quebrada pela horizontalidade das interpenetrações culturais. O especialista em literatura brasileira encontrou o substantivo “democracia” e a variante “democratização” uma única vez cada em Casa-grande, assim como o adjetivo “democrático”. A palavra “democratização” aparece em uma nota de rodapé do 5º capítulo:

– Roger Bastide tenta estender esse conceito (de democracia social) para o de democracia racial, isto é, essa horizontalidade também se daria nas relações entre as raças. Ele vai descobrir que sua teoria ou hipótese estava errada quando, em 1954, realiza, com Florestan Fernandes, uma pesquisa em São Paulo sobre a situação do negro e descobre que ela é infinitamente inferior à dos brancos e mestiços.

As ideias de que todos os brasileiros são mestiços e de que essa mestiçagem é um valor a ser prezado teria levado à apreciação e ao estudo da cultura afro-brasileira. Ainda assim, esse interesse e valorização não foram capazes de tornar realidade o sonho da democracia racial, afirma Maria Lúcia Pallares-Burke:

– As ideias de Gilberto Freyre são extremamente relevantes no debate sobre imigração e multiculturalismo. Não se ouvem muitas pessoas argumentarem da mesma maneira na Europa, apesar de este tipo de mistura ser, de fato, a que está acontecendo. Sua posição em favor de uma mistura cultural ou hibridismo é um meio-termo entre aquela dos “assimilacionistas” – que querem que os imigrantes abdiquem de suas próprias culturas e se tornem americanos, britânicos, por exemplo – e, de outro lado, a dos “multiculturalistas”, que gostariam que cada grupo étnico mantivesse suas próprias tradições.

O patriarcalismo hoje

 Arte: Mariana TotinoAspectos como as relações de poder entre os senhores de engenho e escravos, abordadas em Casa-grande & senzala, são constantemente associadas a análises sobre eventos atuais da sociedade, sendo adaptadas para o contexto político. Entre outros aspectos que parecem atuais na obra de Freyre, Tenório Vieira destaca o “mandonismo, com requintes às vezes sádicos, dos que exercem o poder”, e para exemplificar lança mão de passagens do livro:

– Freyre afirma que “a tradição revolucionária, liberal, demagógica é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático”. Freyre teria notado ainda que, “mesmo em sinceras expressões individuais [...], de mística revolucionária, de messianismo, de identificação, sente-se o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se”.

É dentro dessa relação de sadismo e de masoquismo, segundo Tenório Vieira, que Freyre vai assinalar que “a tradição conservadora no Brasil tem se sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de autoridade’ ou ‘defesa da ordem’”.

– Poderia elencar vários aspectos, mas este diz muito do nosso modo de transigir na política e nas relações interpessoais. Em Casa-grande & senzala, Freyre usa a psicanálise para entender a alma coletiva e o comportamento do povo brasileiro. Ao discutir sobre as relações de sadismo entre o “conquistador” e o “conquistado”, ele nota que “esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação em campo mais largo, social e político”. Entre as místicas da ordem e da liberdade, a da autoridade e a da democracia é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos.

Livros e vivência: indissociáveis da criação intelectual de Freyre

Os livros que Gilberto Freyre leu e o que aprendeu durante os anos que viveu fora do Brasil influenciaram em Casa-Grande & Senzala e em toda a sua obra. Não por acaso os autores lidos pelo pernambucano tiveram destaque em sua cronologia de vida. Freyre frequentou uma escola americana em Recife, concluiu o bacharelado em artes na Universidade de Baylor, no Texas, e, de lá, seguiu para a Universidade de Columbia, em Nova York, para estudar ciências sociais. Foi quando entrou em contato com o relativismo cultural do antropólogo americano Franz Boas.

– Na década de 30, contrapondo-se à forte corrente internacional que alardeava os efeitos desastrosos da miscigenação, Freyre tentava unir forças com pessoas como os antropólogos Roquette-Pinto, Franz Boas e seu colega de Columbia Rüdiger Bilden, que combatiam as teses da hierarquia das raças e da degeneração do mestiço, argumentando que o problema a ser solucionado no Brasil e em outros países de população mestiça não era racial, mas social e ambiental – ressalta Maria Lúcia.

A historiadora já havia pesquisado sobre o jornal britânico The Spectator para o doutorado, no fim dos anos 1980, quando um amigo indicou a leitura de Ingleses no Brasil, livro de 1948 em que Freyre cita o periódico como um dos agentes da cultura britânica no Brasil do século XIX – na época, era comum os pais darem nomes de ingleses ilustres a seus filhos. Ela lembra que escreveu para Freyre e recebeu pouco depois, com surpresa, uma carta em que ele a chamava de “minha cara colega de estudos”. Para a edição da Flip de 2010, que homenageou o pernambucano, a biógrafa participou de debates e, ao lado do marido, o historiador britânico Peter Burke, presenciou o lançamento da edição em inglês de Os ingleses no Brasil – obra que conseguiram fazer com que a embaixada americana patrocinasse. Com o marido, Maria Lúcia também lançou Repensando os Trópicos- um retrato intelectual de Gilberto Freyre (traduzido pela Editora Unesp, em 2008). 

– Um aspecto central da biografia foi o de testar minha suspeita de que a anglofilia de Freyre fora essencial para o desenvolvimento do instrumental que inovou a história brasileira. Parte do meu estudo foi dedicada a desvendar o papel que alguns autores e ideias vitorianas (da Inglaterra imperialista da segunda metade do século XIX) exerceram na reconciliação de Freyre com o Brasil, após ele passar cinco anos entre os Estados Unidos e a Europa, quando tinha entre 18 e 23 anos, uma reconciliação sem a qual sua obra não poderia ter surgido – explica Maria Lúcia.

Na biografia sobre o “vitoriano dos trópicos”, Maria Lúcia procurou desvendar a rede de relações pessoais e de ideias por trás do surgimento das realizações culturais de Freyre. Em sua pesquisa, a historiadora constatou que o sociólogo se apropriou criativamente das ideias de vários de seus interlocutores britânicos. Ela cita Herbert Spencer, em cuja obra o “equilíbrio de antagonismos” ocupa posição central, e Lafcadio Hearn, admirador da mestiçagem, como influências para Freyre. Críticas como as do escritor inglês William Morris, ao capitalismo moderno, por exemplo, foram adaptadas à realidade brasileira:

– Adaptar suas ideias ou fazer uma tradução cultural desse pensamento significava contrastar a sociedade patriarcal do passado colonial brasileiro com a ganância mercantil de uma cidade em modernização. Pode-se dizer que, para Freyre, o equivalente, no Nordeste, ao industrialismo moderno era a indústria de cana. Para o nosso vitoriano brasileiro, os vilões do Nordeste eram a usina e os usineiros.

Acervo Fundação Gilberto Freyre  A escolha do pernambucano em retratar o drama da formação familiar brasileira também teria passado pelo interesse particular que tinha pela sua própria infância. Ele teria ampliado o foco primeiro para a infância no Brasil e depois para a família.

– A casa passou a ocupar um papel central. Mais envolvente e rica do que a história do “menino brasileiro”, a noção da casa acomodava-se melhor à ampla interpretação do Brasil que Freyre estava pronto a escrever no início dos anos 30, e na qual o tema da miscigenação seria central e enfrentado em novas bases – afirma Maria Lúcia, apontando o caminho biográfico e não-linear de construção de Casa-grande & senzala.

– Gilberto Freyre dizia que em sua obra “entrara leite de muitas vacas”, mas o queijo era criação sua. O leite vinha de várias origens, de vários pensamentos, e autores que encontrara, das experiências que tivera, e tudo isso, interagindo com sua natureza, dera como resultado sua obra. Não foi um término inevitável de um caminho cumulativo e direto, sem desvios, e incertezas sobre ideias ou referenciais a adotar – acrescenta a biógrafa.

Novas adaptações criativas de ‘Casa-grande’

Se Freyre narrou a passagem da casa-grande e senzala para sobrados e mucambos, as dicotomias sociais ganharam ao longo do tempo novas representações por outros autores. Em interpretação mais recente sobre a identidade do brasileiro, como a do antropólogo Roberto DaMatta, por exemplo, as instâncias são a casa e a rua.

– Se traduzíssemos por Coberturas & favelas, não estaríamos muito longe do espírito freyriano. Quanto às nossas contradições, Casa-grande & senzala é exemplo raro de uma obra que pode ser dilatada para o modo como a nossa sociedade urbana e moderna continua a reproduzir as dicotomias e as interpenetrações entre culturas e raças observadas por Freyre – constata Tenório Vieira.

Segundo o especialista em literatura brasileira, crítica literária e estética, é possível ver a presença da obra freyriana em reflexões e estudos de autores como Roberto DaMatta, Darcy Ribeiro, Evaldo Cabral de Mello, Frederico Pernambucano de Mello, Roberto Motta, Ricardo Benzaquen de Araújo e Gilberto Velho.

– Nesses autores, encontramos temas que não foram contemplados com largueza por Freyre, como o fenômeno do cangaço e a Guerra de Canudos (no caso de Frederico Pernambucano de Mello), o período holandês (Evaldo Cabral de Mello) ou Gilberto Velho, que tratava da violência urbana do Brasil contemporâneo-moderno.

Maria Lúcia Pallares-Burke tenta projetar as características de uma interpretação tão ambiciosa quanto a de Freyre se escrita hoje:

– A interpretação do Brasil de Freyre cobre até por volta de 1910 ou 1914, e seria muito bom se outro estudioso tivesse feito um estudo semelhante dos últimos 100 anos, no qual várias coisas que não existiam seriam incorporadas: favelas, supermercados, telenovelas etc. Ninguém, no entanto aceitou o desafio de escrever um outro livro abrangente e interdisciplinar, como se fosse uma sequência, por assim dizer, de Casa-grande & senzala de Gilberto Freyre.

O estilo freyriano

A opção de Gilberto Freyre por reflexões em forma de ensaio, de forma não linear, presentes ao longo de seu mais célebre livro seriam, na visão de Tenório Vieira, uma forma de utilizar a língua não apenas para traduzir a realidade, mas como um meio de expressar vivências interiores:

– Ele uniu ciência e estética ao se valer da linguagem expressionista como um modo de ultrapassar as fronteiras entre o sujeito e objeto de estudo. Os alogicismos e as obscuridades do mundo interior, características dessa linguagem, estão presentes em toda a obra. A linguagem em Freyre não se restringe apenas ato de valorizar a expressão, mas termina por ser parte do seu próprio método. Estas características se revelam tanto no modo de nunca concluir os seus livros e tomá-los como um work in progress.

Para homenagear a obra e o estilo de escrever de Gilberto Freyre, a Editora Global – que desde 2003 publica os livros do autor – vai publicar uma edição comemorativa de Casa-Grande & Senzala, e organiza o 5º Concurso Nacional de Ensaios. Realizado a cada dois anos, o concurso tem como tema desta edição Família, mulher e criança, em referência ao subtítulo de Casa-grande: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. O vencedor terá o trabalho publicado em tiragem mínima de dois mil exemplares.