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PUC-Rio

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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


Cultura

Miguel Pereira: cinema precisa de apoio fiscal e salas no interior

Brenda Baez e Júlia Cople - Do Portal

01/11/2013

 Arquivo Portal

Enquanto veículos de comunicação ajustam-se a novas formas de produção e de receita, a indústria cinematográfica brasileira sopra cifras inspiradoras: movimentou, no primeiro semestre, R$ 142 milhões — 90% do arrecadao em todo o ano passado, estima a Agência Nacional do Cinema (Ancine). O faturamento reflete o salto de 280% no público das produções nacionais, de acordo com o portal Filme B. Um avanço acompanhado pela abertura de 83 novas salas de exibição, também só na primeira metade do ano (chegam a 2.571 no país), e pelo aumento de 12% nas vendas de ingressos previsto até dezembro. Em meio a esse cenário, o Portal inaugura, na próxima segunda-feira, a seção PUC Filmes, que exibe, a cada semana, filmes produzidos, alguns premiados, pelo curso de Cinema da universidade. O acervo já conta com mais de 100 curtas, entre ficção e documentário. Os respectivos cineastas contarão bastidores das produções em entrevistas à equipe da TV do Portal, na nova série Conversa Curta. Na estreia, dois filmes inspirados na obra de Machado de Assis, ambos de 2007: Noites de Almirante, dirigido por Bruno Mello, produzido em parceria com o Globo Universidade; e Missa do Galo, de Leonardo Gouvea.

Para o crítico Miguel Pereira, coordenação da pós do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, a iniciativa reforça o sentido do cinema: “Um filme só existe se é visto, e há filmes muito bem feitos, como os estreantes Noites de Almirante e Missa do Galo”. Em entrevista ao Portal, ele acrescenta que a novidade, ao impulsionar um "reconhecimento crítico", também ajuda a aprimorar o curso e a incentivar o empreendedorismo na área. O especialista ainda avalia a fase do cinema brasileiro: embora constate menor preconceito em relação aos filmes nacionais, alerta para o risco de perda de identidade decorrente da globalização e para a concentração das salas em metrópoles. Ele propõe apoio fiscal e de infraestrutura aos setores de distribuição e exibição, que considera o calcanhar-de-Aquiles na cadeia produtiva, e torce pela volta dos cinemas de rua. Sobre a percepção de andamos dependentes das comédias e de temas associadas a comunidades urbanas, Pereira imprime um olhar pragmático: trata-se de um nicho de sustentação financeira, que não restringe as produções autorais e independentes. Mas pondera: "Se a comédia for um pouco mais sutil e mais elaborada, ela ganha espaço entre o público e faz também as pessoas pensarem".

Portal: Qual a importância e qual a expectativa para o lançamento da seçao PUC Filmes?

Miguel Pereira: Colocar a produção dos alunos no ar dá visibilidade à produção do curso. Um curso de cinema não é um curso apenas teórico, deve ter uma aplicabilidade na vida cotidiana da profissão. E a forma de mostrar a capacidade ou a criatividade do aluno que passa pelo curso é exatamente mostrar o que ele fez, o que ele produziu. O segundo ponto é que o filme visto é um filme que existe. O que está escondido, que não é mostrado, só está na cabeça de quem o viu e de quem o fez. Cinema é luz, é imagem em movimento. Se você não acessa a produção, ela não existe para você. A tecnologia hoje facilita esse acesso e, evidentemente, pode ter retorno, o que interessa bastante a quem faz cinema.

Portal: O senhor fala de retorno financeiro?

Pereira: Não é apenas o retorno financeiro, que já é uma parte do processo. Ele está dentro do sistema de produção que teria um retorno financeiro automático. Você entra no cinema e parte da renda vem para você. Mas o retorno crítico, o retorno avaliativo dos filmes é importante. Até para nós professores, inclusive, é importante que tenhamos essa resposta, para melhorar, aperfeiçoar. Vamos ver onde estamos errando, onde os alunos estão errando. Eu mesmo tenho interesse em ver todos esses filmes, porque não pude comparecer à exibição de muitos, embora tenha visto 66 produções da universidade, quando fui júri do Prêmio PUC-Rio Kinoplex de Cinema, no ano passado.

Portal: Qual a sua opinião sobre os dois filmes estreantes: Noites de Almirante e Missa do Galo?

Pereira: Noites de Almirante, do diretor Bruno Mello, é um filme feito em parceria com a Globo Universidade, uma oportunidade de associar a Rede Globo a um trabalho universitário. Foi o primeiro projeto feito nesse campo,. Pretendia trabalhar a questão do Machado de Assis como cronista do Rio e o bicentenário do escritor. Fizemos uma seleção e escolhemos esse. Por ser de época e ter um filme dentro de um filme, havia problemas de produção. Um filme complexo, mas muito bem feito. O outro, Missa do Galo, do diretor Leonardo Gouvea, também é um muito interessante, muito bem feito. Esse vai dar um certo retorno, com certeza.

Portal: Falando nisso, quem o senhor destacaria da nova geração de cineastas?

Pereira: Os novos cineastas estão em busca de um caminho mais autodefinido. Acho que tem gente talentosa, gente que conduz a narrativa com eficiência, mas o grande talento não está aparecendo muito. Recife, Minas, Rio Grande do Sul e Brasília tem produzido filmes interessantes. Há um talento envolvido ali, mas muitas vezes não quer dizer que isso possa se repetir. A distância do eixo Rio-São Paulo dificulta muito que o talento apareça. Ainda não há algo que sobressaia, como a aparição de Walter Salles, como essa nova geração posterior ao Cinema Novo. Não apareceu ainda essa figura de hoje. O José Padilha é um cineasta muito interessante, que oscila entre o grande cinema comercial e o cinema independente. São novidades, mas ainda não chegam ao ponto.

Portal: Em termos de qualificação, o que é preciso para fazer (bom) cinema?

Pereira: A primeira coisa é conhecer o cinema clássico profundamente. Ver filmes, ler os clássicos e ir ao cinema permanentemente. Todo hora eu compro um livro novo, porque não se pode ficar desatualizado. Você não pode fazer cinema sem ir ao cinema. Tem que ir duas, três vezes por semana. Tem que ver tudo, não só o filme "bom". Vejo de tudo, sempre vi. Isso é uma necessidade absoluta e, claro, conhecer os instrumentos para poder fazer. Esse aperfeiçoamento tem que existir.

Portal: As comédias, hoje carro-chefe da produção brasileira, dividem opiniões: uns defendem, por ser fonte de entretenimento; outros criticam, pelo "humor banal". Qual a sua avaliação?

Pereira: As comédias entraram em um espaço que estava faltando. A comédia e a chanchada, que tem um caráter mais popular, são produtos da cultura brasileira e falam da vida cotidiana. Grande parte dessas comédias está mais no campo da coisa imediata, um pouco grosseira. Não acho que sejam obras de arte, nem é esse o objetivo. São obras que cumprem seu papel comercial dentro da atividade de cinema. Não posso esperar que todos os filmes sejam fantásticos como O Capital, de Costa-Gravas, que esté em cartaz, nem que todos sejam dessaa natureza. Mas se a comédia for um pouco mais sutil e mais elaborada, ela ganha espaço entre o público e faz também as pessoas pensarem.

Portal: Mas o senhor concorda que o cinema brasileiro tornou-se dependente de comédias e de filmes que mostram comunidades urbanas, como Tropa de Elipe e Cidade de Deus?

Pereira: Como todo sistema de produção, o Brasil encontrou um nicho de sustentação bastante razoável, fora do sistema hollywoodiano e fora dos grandes sistemas de produção do mundo. Filmes de grande bilheteria permitem que o cinema se reproduza mais. Isso na história do cinema acontece e sempre aconteceu. Você não pode ter uma cinematografia só de produtos que não dão dinheiro, tem que misturar. Então, desse ponto de vista, acredito que as comédias e os filmes que abordam a violência são válidos. Posso até não concordar com a abordagem que eles fazem, mas isso não quer dizer que eu não respeite a liberdade, a maneira de fazer. Posso pegar uma comédia dessas ou um desses filmes bobos de violência gratuita e arrasá-los na crítica. Mas isso não quer dizer que não sejam válidos. É a mesma coisa no cinema americano: a maioria dos filmes de ficção científica é só efeito especial, mais choque do que propriamente algo substantivo.

Portal: Como assim?

Pereira: Um filme precisa de alguma coisa além dos efeitos. Tem que ter uma imagem bonita, bem elaborada, bem pensada, construída. Esse filme Gravidade, do Alfonso Cuaron, além dos artifícios técnicos, usa as metáforas da vida, embora rasas, o que o diferencia de outros de ficção científica vistos a todo instante. Fico espantado, porque no mesmo dia em que eu vi esse filme, eu vi vários trailers de filmes americanos e todos destroem Nova York. Só porque é possível fazer isso no cinema agora, você vai destruir uma cidade o tempo inteiro? Não tem cabimento isso dos super-heróis que arrasam a cidade, arrasam os espaços como se fossem um videogame. 

Portal: Ainda falando em tecnologia, qual a principal contribuição recente da tecnologia para o cinema?

Pereira: A tecnologia democratizou a captação da imagem e o som. Todo mundo fotografa ou filma, todo mundo tem uma camerazinha ou um telefone celular. Mas é necessário examinar com cuidado a obra, ver os detalhes, as coisas singulares. Não é só fotografar e filmar. Tem que filmar o detalhe, tem que ver o elemento que define a natureza daquele produto. Cinema é isso. Cinema é detalhe, cinema é observação. Quanto mais apurada e desenvolvida for essa apuração, melhor.

Portal: Nosso cinema caminha nesse sentido? Como o senhor avalia o cenário do cinema brasileiro?

Pereira: O cinema brasileiro vive a consolidação de um sistema de produção. O problema ainda está na distribuição e na exibição, porque a forma de gastar dinheiro às vezes é equivocada. Gasta-se muito com um filme que, em perincípio, não terá grande rendimento. Para isso, deve-se adequar o produto à clientela. É difícil, mas já existem formas de diminuir esse hiato entre o público e o filme. É preciso saber onde está o público para aquele filme e saber usar isso. A exposição do filme mostra-se absolutamente fundamental. Precisamos de mecanismos mais ágeis, salas mais diversificadas, não só salas grandes, mas também médias e pequenas. A média de filmes lançados por ano, em torno de 90, é boa. Mas o interior não tem salas de cinema. A maioria da população brasileira nunca foi ao cinema. É questão de força econômica.

Portal: Para imprimir essa força econômica, são necessárias intervenções no poder público?

Pereira: Não diria intervenção, e sim apoio.

Portal: De que forma seria esse apoio?

Pereira: Por meio de incentivos como a criação de novas salas de cinema, estímulos à distribuição. Algumas renúncias fiscais voltadas à produção poderiam se estender à distribuição e à exibição. Há um programa muito interessante chamado Ponto de Cultura, implantado pelo Brasil afora, inclusive no interior. Os pontos de cultura têm apresentado o cinema brasileiro para muita gente do interior do país. É um sucesso. Se você apresentar o filme ao público, ele vai gostar, vai querer participar.

Portal: O senhor acha que o Vale Cultura e a Cota de Tela podem ajudar também?

Pereira: Tudo o que for incentivo para exibição e para a pessoa ir ao cinema é fundamental, como é o caso do Vale-Cultura. Em relação ao programa Cota de Tela, já fui mais a favor, porque pode funcionar ao contrário. Certa proteção tem que existir para o produto brasileiro. Mas não uma coisa impositiva, e sim negociada entre todos os atores que compõem a atividade cinematográfica. Você negocia isso, e funciona. Não sou mais a favor de uma obrigatoriedade absoluta em relação ao produto nacional. Ate porque precisamos ganhar mercados fora do Brasil. Isso falta.

Portal: O senhor disse que precisamos exportar o filme brasileiro. Vários atores e diretores têm lançado carreira no exterior. Como o senhor vê essa onda de contribuição nas produções internacionais?

Pereira: São oportunidades que surgem por olheiros, o sujeito não se oferece. A dificuldade maior era a língua, hoje já superada. Há essa busca no campo do audiovisual no mundo inteiro, não só no Brasil. Você vê atores circulando pelo mundo todo. Claro que os atores estrangeiros são mais caros; os brasileiros, mais baratos. Essa, muitas vezes, é uma questão de produção. Não é nem uma questão de dizer que são atores excepcionais. Os produtores não estão preocupados com isso, e sim com a grana. A repercussão para nós, aqui, é pequena. Qualquer filme do (Rodrigo) Santoro ou do Wagner Moura ou da Alice Braga vai ser aquilo: atores brasileiros que estão fazendo um filme americano. Em relação à questão cinematográfica do Brasil, não faz muita diferença. É algo mais global de produção.

Portal: O cinema brasileiro deixa a desejar em relação a outros países?

Pereira: Peguei as bilheterias todas e vi que o esquema brasileiro hoje é o de qualquer grande cinematografia, inclusive a americana. Há um número pequeno de grandes sucessos, um número maior de sucessos médios e um número maior ainda entre os médios e os pequenos. Em todo o mundo é assim: Itália, França, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra. Aliás, hoje, acho que existe um grande problema: o cinema globalizado. O filme acaba não tendo identidade nenhuma, é global. Então, é americano, mas feito na Europa, produzido no Brasil, e por aí vai. Quem criou isso foi a esperteza de Hollywood, que se espalhou pelo mundo inteiro. Agora está entrando de uma maneira mais sutil, principalmente no cinema inglês, francês, porque é uma forma de conquistar mais grana. Toda a questão econômica do cinema é onde está a grana e para onde ela vai. É claro que cabe a cada cinematografia se defender um pouco desse processo.

Portal: Nesse contexto de globalização e disputa de capital, ainda há espaço para o cinema autoral e a produção independente?

Pereira: Os editais estão muito formatados para o grande filme e isso dificulta. O filme independente fica um pouco em segundo plano, mas não deixa de existir, continua havendo o apoio ao filme independente. Aquele que pensa cinema é tão importante quanto aquele que faz o filme comercial. Tem de  haver essa diversidade. Até já alcançamos um bom nível de diversidade, não só de gêneros, mas também de filmes independentes.

Portal: No primeiro semestre deste ano, o público de filmes nacionais cresceu 280%, segundo o portal Filme B. A que se deve esse salto? 

Pereira: São duas coisas. Um é o próprio ritual do cinema, que convida as pessoas. Além disso, as pessoas estão muito carentes de aproximação e de relacionamento, por vários motivos. Só o o bar não resolve o esse problema. Há outras formas de lazer e de encontro. O cinema cumpre essa função social. Prefiro pensar o cinema como uma necessidade social, não como carência dos outros, porque uma coisa não necessariamente substitui a outra. O cinema continua tendo esse papel de preencher necessidades pessoais e existenciais.

Portal: Mesmo com o crescimento animador do público de filmes nacionais, ainda há preconceito?

Pereira: Cada vez menos. Os jovens estão aceitando mais o filme brasileiro. Existe ainda algum preconceiro porque as pessoas ainda têm uma velha ideia de que o cinema brasileiro é só a chanchada. Mas quando vão para o cinema, gostam. Mesmo os mais velhos. Tenho a impressão de que a juventude está mais aberta ao cinema brasileiro. O jovem se sente mais atendido.

Portal: O senhor acredita na revitalização dos cinemas de rua? 

Pereira: Eu gostaria muito. O shopping dispersa demais, dá muitas opções falsas. Mas, de qualquer maneira, é uma atração. Acho bom que existam cinemas nos shoppings, embora o cinema de rua seja insuperável. Ele tem que voltar a existir. Há vários ainda no Rio, inclusive o Grupo Severiano Ribeiro está tentando ressuscitar alguns cinemas de rua. Sei que terão público. A vida não se resume ao shopping.