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Rio de Janeiro, 18 de abril de 2024


Economia

Publicidade infantil: como evitar o consumismo

Ingrid Forino - aplicativo - Do Portal

09/10/2013

 Renata Ursaia

Às vésperas do Dia das Crianças, a enxurrada de comerciais de TV para esse público, correspondente à multiplicação de canais fechados do segmento, renova o debate sobre os parâmetros da publicidade infantil. Uma das questões centrais discutidas por pais, professores, psicólogos, profissionais de comunicação, agências, legisladores e entidades de defesa da criança e do adolescente remete aos mecanismos para evitar que o bombardeio de anúncios — da repaginada boneca que fala ao festival de jogos eletrônicos — induza ao consumismo. Especialistas reforçam a necessidade de equilibrar as demandas do mercado com os cuidados inerentes à personalidade em formação, para mantê-la receptiva a valores associados, por exemplo, à cidadania e ao bem-social. Embora considere rigorosa a regulação referente à publicidada dirigida à criança, a Associação Nacional de Agências de Publiciadde (Abap) reconhece a importância de uma coordenação de esforços, entre publicitários, família, educadores, para aperfeiçoar as vacinas contra os abusos. 

A preocupação revela-se proporcional ao avanço da publicidade infantil no país, cujos investimentos beiram R$ 1,2 bilhão, estima a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), e lubrificam uma economia em busca de recuperação (devemos crescer não mais do que 1,5% neste ano, projetam economistas). A maior fatia dessa verba destina-se a anúncios de tevê, impulsionados por um recorde digno de reflexão: as 46 milhões de crianças brasileiras de até 14 anos passam uma média de cinco horas por dia em frente à telinha, aponta o Movimento Infância Livre de Consumismo (MILC). Significa um consumo alto não só dos desenhos, dos seriados e dos programas predileto, mas de um varal de mensagens publicitárias.

Para a psicóloga Laís Fontenelle, integrante do Instituto Alana, o maior perigo é a possibilidade de tais mensagens reforçarem a percepção, já na infância, de que a posse de objetos mostra-se determinante à aceitação social. Uma percepção, diz ela, acentuada pela forma com que o pequento espectador absorve os anúncios. Para as crianças, o “mundo fantástico” apresentado se confunde com a realidade, argumenta a psicóloga:

— Ninguém nasce consumista. É na infância que os hábitos são formados, sejam, por exemplo, alimentares ou de consumo.

O publicitário Paulo Azeredo, professor da PUC-Rio, observa que as técnicas e a intensidade da publicidade para crianças equivalem às usadas para persuadir os adultos. Assim, esclarece ele, o termo apropriado é "publicidade dirigida a crianças", porque "publicidade infantil nada tem de infantil". 

— Em sua inocência, os pequenos realmente acreditam que os bonecos voam, dirigem, lutam, derrotam os inimigos, são seus amiguinhos. Eles não têm noção, por exemplo, do teor de açúcar e/ou de gordura do hambúrguer anunciado massivamente. São formados novos consumidores ávidos, que vão crescer consumidores ávidos.

Associação Nacional de Agências de Publicidade acredita que a educação, combinada às normas que regulam a publicidade infantil, seja o caminho para prevenir consequências indesejadas, no sentido do consumismo. Com base neste princípio, a organização lançou, no ano passado, a campanha Somos Todos Responsáveis. A iniciativa, dedicada também a estimular o debate nas redes sociais, reúne cinco cartilhas digitais com esclarecimentos sobre questões levantadas, ao longo de um ano, em 300 depoimentos de pais, professores, psicólogos e publicitários na página eletrônica e no Facebook da Abap. O e-book sobre a legislação específica ressalta que "a publicidade para crianças, diferentemente do que muita gente pensa, é fortemente regulada no Brasil", pelo Código de Autorregulação Publicitária, pelo Estatuto da Criança e Adolescente, pelo Código de Defesa do Consumidor e pela própria Constituição. 

A cartilha lembra que tramita no Congresso, há mais de uma década, uma proposta de lei que proíbe a propaganda voltada para criança na tevê, no rádio e na internet, entre 5h e 22h. O texto reconhece o peso da publicidade no conjunto complexo de influências sobre a criança e convida "as pessoas envolvidas com os aspectos legais desse assunto" a aprofundar as discussões além das esferas jurídicas. Apresenta, também, as principais restrições à publicidade para crianças, como as que proíbem os imperativos ("compre" ou "peça para os seus pais"), os "produtos que substituam as refeições", os "conteúdos que desvalorizem a família, a escola, a vida saudável" e o merchandising em programas infantis, conforme determinado, no início do ano pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar).

Abap: orientar a criança é melhor do que isolá-la da publicidade

A Abap admite, contudo, que as regras não impedem a incidência de abusos (assim foram consideradas, e punidas, 60% das 8 mil campanhas publicitárias julgadas pelo Conar nos últimos 30 anos), e incorpora-se aos que propõem uma coordenação de responsabilidades entre publicitários, família, professores, legisladores. Uma das mais importantes, para a entidade, é a orientação familiar para que a criança diferencie "fantasia e realidade". Esse esforço conjugado, acreditam representantes da Abap, mostra-se mais proveitoso do que isolar a criança da mensagem publicitária, como é feito na Noruega, Suécia e na província de Quebec, no Canadá.

 Arte: Ingrid Forino Já o Movimento Infância Livre de Consumismo, criado também no ano passado, em resposta à campanha da Abap, considera que as regras têm sido insuficientes para evitar "a apropriação do imaginário infantil com o objetivo de despertar o desejo de consumo acima de tudo". A cofundadora do grupo Vanessa Anacleto diz que brinquedo "deixou de ter valor pelo uso e virou objeto de status":

— Mais do que apresentar produtos à disposição no mercado, a publicidade infantil apresenta valores equivocados às crianças — opina — Certas propagandas induzem à crença de que a aquisição de bens de consumo contribui para melhor aceitação da criança no meio em que vive. O brinquedo deixou de ter valor pelo seu uso e passou a ser desejado como objeto de status.

Correntes como o MILC e o Alana sugerem restringir a publicidade para menores de 12 anos. Mas, para o assessor da diretoria executiva da Abap, Stalimir Vieira, seria melhor aperfeiçoar a orientação da família às crianças: “Se a publicidade cumpre o papel de estimular o consumo, aos pais cabe o papel de estabelecer os limites e evitar distorções de entendimento”. Segundo o especialista, proibir os anúncios ao público infantil “é querer terceirizar os critérios de educação e formação das crianças”:

— Todo responsável deve estar atento àquilo que pode ser prejudicial aos filhos. Buscar a proibição da publicidade dirigida às crianças é exercer uma espécie de tutela da sociedade.

Vanessa concorda que responsáveis e educadores tenham um papel decisivo para a criança discernir as mensagens publicitárias, mas considera excessiva a carga de conteúdos dessa natureza veiculados na tevê. Ela calcula:

— Em meia hora de programação infantil, são, no mínimo, 10 minutos de propaganda pesada. Vem sendo atribuída aos pais a responsabilidade exclusiva de lutar contra grandes empresas que gastam fortunas para apresentarem seus produtos 24 horas por dia de forma  irresistível às crianças. Parece simples pedir aos pais que restrinjam o consumo de televisão, mas não seria o caso de ter uma TV de melhor qualidade? — questiona.

Segundo a Abap, o papel da publicidade é “manter a economia aquecida através do estímulo ao consumo, respeitando a inteligência e o bom gosto do consumidor”. Esse respeito deveria significar, para a jornalista Beatriz Zogaib, autora do blog Mãe da Cabeça aos Pés, o direcionamento da publicidade infantil não às crianças, mas aos pais ou responsáveis:

— A publicidade infantil age diretamente no ponto fraco de qualquer criança: o sonho. A fantasia acaba servindo de interlocutora entre o produto e a criança, que escolhe motivada pelo sonho, como se aquele ideal de consumo fosse deixá-la mais feliz. Isso representa a gestação de um adulto consumista e o retrato de uma geração sem limites.

 Agência Brasil Especialistas em psicologia e comportamento infantil ponderam que há uma série de outras influências além das mensagens publicitárias, e lembram a responsabilidade da família em impor limites. Uma tarefa nada fácil diante do pendor consumista, aflige-se Bárbara Saleh, mãe de Sueli e Kassem. Ela conta que os pedidos dos filhos são insistentes e, não raramente, surpreendentes:

— Uma vez, enquanto eu estava na cozinha, deixei meu filho Kassem, que ainda aprendia a falar, vendo televisão. Minutos depois, ele me pediu uma comida de determinada marca. Na hora, não sabia o que era, nem se existia. Isso me chocou.

Beatriz também se surpreendeu quando o filho Leonardo, de 4 anos, fez uma listas com os brinquedos que ainda não tinha, dentre os mostrados na televisão. Exigia que ela comprasse "os que faltavam":

— Foi como se ele me dissesse: "Mamãe, eu sou obrigado a ter tudo isso, viu?". Eu me sinto impotente, porque o máximo que posso fazer é desligar a TV e dizer "não".

"A autorregulamentação do mercado é insuficiente", diz psicóloga

Para alguns especialistas, culpar a publicidade pelo desenvolvimento de comportamentos consumistas equivaleria a responsabilizar os jogos de luta por inclinações violentas: um determinismo simplista em relação à complexidade de fatores que pesam na formação da personalidade. Outros, como Laís, acreditam que a melhor alternativa seria a proibição da publicidade para crianças de até 12 anos, em TV, rádio e internet, como prevê o Projeto de Lei 5921/2001, apresentado pelo deputado Luiz Carlos Hauly. Em tramitação no Congresso há 11 anos, a proposta entrou em pauta para votação no mês passado.

Segundo a Abap, a veiculação de anúncios dirigidos ao público infantil vem obedecendo a critérios mais rigorosos, de acordo com artigos incorporados ao Conar. O órgão fiscaliza o teor das mensagens publicitárias, a partir de denúncias. Verifica, por exemplo, se não estimulam "comportamento socialmente condenável" e se abicam "do apelo imperativo direto de consumo à criança".

— Nosso sistema constitucional garante a liberdade de expressão, abrangendo a modalidade comercial, de forma que não há vedação total e absoluta à publicidade de produtos e serviços regulares. Existem normas de autorregulamentação que estabelecem princípios gerais a serem observados, bem como regras especificas para determinadas categorias — observa o Vieira.

O Instituto Alana considera o Conar "insuficiente", pois “é o mercado se autorregulando, e não tem representatividade social". Para a ONG, devem ser adotadas medidas mais rigorosas no controle da propaganda endereçada a crianças até 12 anos:

— Os dez países com melhor qualidade de vida têm algum tipo de regulação desse conteúdo — compara — O consumismo na infância é um problema urgente, e se tornou uma questão mundial. Não está mais restrito à esfera familiar.

Contrário à restrição total à publicidade dirigida a menores de 12 anos, Stalimir Vieira escala o amplo debate e a coordenação entre publicitários, famílias e professores como as principais armas para aprimorar os mecanismos contra distorções e abusos em mensagens do gênero. Ele diz que o bom senso tem prevalecido e as adaptações feitas pelo Conar "têm sido satisfatórias para a maior parte da opinião pública". Para o Conar, "os pais têm papel protagonista, mas a preocupação deve ser compartilhada por todos, tanto pelo poder público, como pelas empresas e pela própria sociedade civil".

Publicitário: "Estão terceirizando as responsabilidades"

Já o publicitário, redator da agência NBS, Bruno Pinaud alerta que o bom senso, ou a responsabilidade, está sendo terceirizado por todos: "Os pais julgam que o colégio e os meios de comunicação têm o papel de educar, enquanto eles apenas ficam com a função de dizer 'sim'. É uma fuga das responsabilidades". Pai de Luca, ele pondera que o excesso de zelo e o politicamente correto podem também prejudicar a formação infantil:

— A vida não é um conto de fadas. Devemos exercitar o bom senso das crianças. Pois, se tornarmos o mundo completamente ascético, estaremos formando mal os nossos filhos.

A diretora do Mediativa/Comkids Beth Carmona também prefere, à proibição da publicidade para menores de 12 anos, uma melhor aplicação dos mecanismos de controle. Ela sugere uma legislação mais objetiva:

— Precisamos aprender a usar as leis e os mecanismos que já temos. Podemos tornar mais clara e objetiva a legislação contra praticas publicitárias agressivas e abusivas. 

 Arquivo Portal  Para Beth, seria impensável banir a publicidade para crianças, já "inserida na indústria do entretenimento e na cadeira produtiva de conteúdo". A executiva argumenta, ainda, que a verba publicitária é "um dos ingredientes" para se investir na qualidade de programas, animações e personagens dirigidos às crianças. Ingrediente igualmente poderoso à Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), que espera faturar, até dezembro, R$ 4,3 bilhões no varejo, contra R$ 3,8 bilhões do ano passado.

— A publicidade faz parte da cadeia que vai sustentar uma oferta de conteúdos infantis. As crianças no Brasil estão completamente conectadas. Hoje mídias e múltiplas telas povoam nossa vida. Portanto, temos que aprender como consumi-las de forma equilibrada: reconhecendo o que é bom e descartando o que não serve — propõe Beth.

"Não dá para colocar o filho numa redoma. É preciso ensiná-lo a lidar com o consumo"

Equilíbrio deveria ser a palavra-chave do consumo, ressalta Azeredo. Para ele, o "perigo" não está nas coisas, mas no uso que se faz delas. Esta é justamente uma das principais aflições de pais de crianças pequenas mundo afora: até que ponto o apelo publicitário dirigido a consumidores mirins não despertará "usos inadequados" e comportamentos orientados, principalmente, pelo "ter". Laís recomenda a harmonização do consumo de TV e computador com outros tipos de programa, inclusive ao ar livre. Beth acrescenta: "vale abusar do diálogo para conscientizar a diferença entre querer, poder e precisar". Beatriz usa outra tática, para conter o acesso do filho a excessos publicitários:

— Ponho DVD's para o Leo assistir, ou gravo desenhos da TV por assinatura e pulo os anúncios. Mas não dá para fugir e colocar o filho numa redoma. Também faz parte ensiná-lo a lidar com o consumo — ressalva.