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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


País

"Jornalista tem de estar apto a abrir caixas-pretas da história"

Júlia Cople - aplicativo - Do Portal

11/10/2013

 Arte: Ingrid Forino e Júlia Cople

As manifestações de junho levantaram a poeira do debate sobre o desempenho da imprensa na democracia. A crise de representação, sinalizada no brado das ruas, coincide com a reestruturação de veículos tradicionais, abalados pelo advendo da web 2.0, que revolucionou o mundo da informação. Se os críticos defendem que essa mudança contribuiu para a superficialidade do trabalho midiático, tampouco ficou fora de questão o nicho que, a princípio, exigiria maior apuração e aprofundamento: o jornalismo investigativo. É nesse contexto que a PUC-Rio recebe a 8ª Conferência Global de Jornalismo Investigativo, acompanhada pelo 8º Congresso Internacional da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e pela 5ª Conferencia Latinoamericana de Periodismo de Investigación, de 12 a 15 de outubro, para discutir as diretrizes, a ética e os formatos do gênero. Pela primeira vez no Brasil, a organização espera receber de 1.200 a 1.500 inscritos, que participarão de debates e cursos com especialistas de diversos segmentos, como o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa e os jornalistas Caco Barcellos, Miriam Leitão, Roberto Cabrini e Glenn Greenwald, o repórter do jornal inglês The Guardian que tornou público o programa de espionagem americano Prism.

Um dos mais premiados jornalistas brasileiros, conhecido por seus trabalhos investigativas, Chico Otávio (foto), um dos fundadores da Abraji, coleciona onze prêmios da categoria, dentre os quais seis Prêmios Esso. Em entrevista ao Portal, o autor de reportagens emblemáticas, como sobre os casos do Riocentro e da Legião da Boa Vontade e a série sobre o Judiciário brasileiro, afirma que nem todo jornalismo é investigativo, alusivo às produções de maior "complexidade, investimento e tempo de execução". Com a habilidade de quem se equilibra entre a rotina de repórter especial d'O Globo — sinônimo de muitas viagens, pesquisas e entrevistas, não necessariamente nesta ordem — e as aulas na PUC-Rio, Chico leva fé na arte de garimpar fundo: "Todo profissional de comunicação deve estar apto a ingressar nessa empreitada que o tire da rotina". Ele admite a predileção por cavucar crimes cometidos na ditadura, diz que o medo faz parte da profissão — sobretudo de ações judiciais — e o "poder de transformação do jornalismo" compensa as pedras do caminho.

A voz habitalmente mansa ganha eloquência ao ressaltar: o repórter, em nome da denúncia, não tem salvo-conduto para cometer irregularidades. Chico Otávio vê com bons olhos a chegada das novas mídias, mas alerta para a overdose de "informação subsequente". Ele aposta na cultura do compartilhamento, impulsionada por novidades como a Agência Pública, e considera proveitosa a chegada da Mídia Ninja, mas quer vê-la "também na periferia, no rompimento da adutora, nas enchentes de Xerém, até para mostrar uma visão diferente desses casos". Sobre o futuro do jornalismo investigativo, afirma de forma categórica: "Falta uma boa assistência jurídica das empresas e até do sindicato, para que os pequenos e médios veículos possam investigar". 

Portal PUC-Rio: A princípio, todo jornalismo não seria investigativo?

Chico Otávio: Discordo. Respeito quem pensa assim, mas as matérias investigativas exigem muito mais tempo, cuidado e critério. Razão pela qual o repórter é quase obrigado a ter queda-de-braço com chefe, com editor, no sentido de conseguir tempo suficiente para checar devidamente, recolher documentos, ter a paciência de furar bloqueios. O acesso à informação é complicado. Não são informações que estão ao alcance dos olhos, tem que brigar por elas. Demanda investimento e às vezes viagens. Por esse conjunto de fatores, acredito que haja uma diferença gritante entre o jornalismo investigativo e o dia a dia das redações.

Portal: O que é necessário, em termos de qualificação, para ser um jornalista investigativo?

Chico Otávio: O jornalismo investigativo não é necessariamente um gênero, embora eu tenha dito que vejo diferenças em relação ao dia a dia da imprensa. Ele é um momento, não é um gênero. O repórter está ali no dia a dia, e, de repente, sai para trabalhar numa reportagem de denúncia, com mais possibilidades de desenvolver a apuração. Todo repórter tem que estar apto para mergulhar em algo mais profundo. Não tem nada específico. Todo mundo tem que ser investigativo.

Portal: Por que o senhor escolheu esse nicho da profissão? Foi o senhor que escolheu ou foi levado a esse caminho por algum motivo?

Chico Otávio: Quando ingressei na universidade, pensava em fazer publicidade. Era a minha suposta vocação inicial. Comecei fazendo anúncios para um pequeno jornal em Jacarepaguá, mas eles precisaram fazer uma grande cobertura de carnaval. Eu estava de bobeira e me pediram para ajudar, já que eu era estudante de Comunicação. Peguei o bloquinho e nunca mais larguei.

Portal: Há algum tema que o senhor mais goste de investigar?

Chico Otávio: Os crimes da ditadura militar. Estou trabalhando, inclusive, numa matéria desse tema. Saiu no domingo passado (no jornal O Globo), com o título Bicho cresceu com ajuda de torturadores. É um tema caro, que me consome, afinal o regime militar acabou há 28 anos e as informações ainda estão protegidas por um segredo. É uma caixa-preta que o jornalismo ainda não abriu totalmente. Enquanto os fatos não forem esclarecidos, demandam jornalismo. Por isso, me sinto desafiado. Isso para mim é encantador na profissão.

Portal: Falando nisso, quais as suas reportagens preferidas da carreira?

Chico Otávio: Gosto muito de uma série que fiz da Amazônia sobre o ciclo da exploração de madeira. Não foi premiada, mas valeu a minha satisfação. Há também aquelas com as quais ganhei prêmio. O caso Riocentro, por exemplo, que dividi com os grandes amigos Ascânio Seleme e Amaury Ribeiro Júnior, reabriu a história e conseguiu mudar a posição do exército. Tem o caso da Legião da Boa Vontade. A reportagem Sentenças suspeitas foi uma das pioneiras em denúncias na magistratura, setor em que ninguém gosta de colocar a mão.

Portal: O que é mais gratificante: o furo (informação exclusiva) publicado, o prêmio recebido ou o serviço prestado?

Chico Otávio: Muito mais importante é o poder de transformação da reportagem. Em caso de denúncia, o que ela vai produzir de positivo na sociedade. Isso é o mais gratificante.

Portal: E o trabalho dos colegas de profissão? Quais as suas referências e que trabalhos indica para os aspirantes a jornalista investigativo?

Chico Otávio: A Abraji lançou o livro 10 reportagens que abalaram a ditadura (Record, 2005). Eu adorei, é leitura obrigatória. Gosto da série de matérias de José Hamilton Ribeiro para o Globo Rural. É um grande repórter, que foi até mutilado cobrindo a Guerra do Vietnã. Fico espantado, porque são reportagens sobre a raça de jumentos, e ele sempre consegue despertar a curiosidade. É um mestre. Outras referências são Joel Silveira e toda essa linha do jornalismo literário, com Gay Talese e Tom Wolfe. Também é referência o veículo que subverteu a linguagem: o Pasquim. A fantástica entrevista com Madame Satã é um clássico do jornalismo.

Portal: E no plano internacional? Qual o destaque, na sua opinião?

Chico Otávio: Glenn Greenwald (publicou, no inglês The Guardian, reportagens sobre esquema de espionagem americano). Ele emparedou o (presidente americano) Obama do seu apartamento na Gávea. Recebeu e trabalhou tudo sem sair do lugar. Furo internacional. Jornalismo investigativo. Tem um pé aqui no Brasil, não tem?

Portal: Como é a sua relação com o medo que não raramente se insere no processo das investigações jornalísticas?

Chico Otávio: Quem mora no Brasil tem medo, porque não é um dos países mais seguros do planeta. O medo faz parte do cotidiano do repórter investigativo, embora haja matérias que representam mais riscos.

Portal: Alguma situação específica da qual o senhor se recorde?

Chico Otávio: Uma operação da Polícia Federal que acompanhei, numa área indígena, em combate à extração ilegal de madeira. Na volta, o comboio foi bloqueado por toras na estrada. Na ida, elas não estavam lá. Nesse momento, senti muito medo, achei que era emboscada. Felizmente, nada aconteceu. O que a gente realmente tem de importante é a indústria do dano moral, isto é, o medo de enfrentar um revés judicial. Hoje o que emperra o jornalismo investigativo, para além da falta de espaço, investimento e interesse, é a tentativa de impor uma autocensura nas redações, com medo de uma ação se reverter em indenização. Falta uma boa assistência jurídica das empresas e até do sindicato, para que os pequenos e médios veículos possam investigar também.

Portal: O senhor já foi processado?

Chico Otávio: Várias vezes. Estou sendo nesse momento. A lista de autores desses processos se confunde com as mais graves denúncias de irregularidades, de corrupção. Há quem defenda que deveria colocar esses nomes no meu currículo, porque me beneficiaria.

Portal: Nesses vários processos, o senhor foi censurado alguma vez?

Chico Otávio: Tive acesso a uma conversa grampeada, e grampos no Brasil só são permitidos com autorização judicial. Essa não tinha. Então só usei a conversa como pauta. Fundamentei a minha matéria com base nas informações iniciais que a conversa ensejava. Publicamos. A autoridade denunciada contestou e o jornal entendeu que era necessário divulgar o conteúdo do grampo. A Justiça vetou. Fomos até o Supremo e perdemos em todas as instâncias. Chamar isso de censura, acho exagero, mas alguns veículos acham que é, como o Estado de S. Paulo, no caso dos grampos telefônicos do filho do Sarney. Não diria censura, mas o Supremo entendeu que, neste caso específico, não se podia subverter a lei e divulgar algo que não tinha sido autorizado em nome do direito da informação. Preservou-se o direito à privacidade, e eu entendi. É do jogo. Mas lamentei que o leitor ficasse privado do conteúdo de um grampo que poderia ajudá-lo a entender aquele personagem que continua pedindo nosso voto.

Portal: E internamente? O senhor já foi travado pela linha editorial do veículo? Como administrar esses limites?

Chico Otávio: O único limite que eu tenho hoje é o nosso código de conduta, que é imposto a todos os repórteres da redação do jornal para o qual trabalho. Chamo isso de censura? Não. Prefiro chamar de algo que busca a qualidade e que é uma questão de respeito ao leitor. Se o que eu apurei não está condizente com este código, estou fora. Eu entendo, é do jogo. Acho um exagero dizer que existe censura interna. O que existe são cuidados editoriais.

Portal: Falando em código de conduta, vale tudo para conseguir a denúncia?

Chico Otávio: Não, de jeito nenhum. Condeno veementemente. Não se pode cometer irregularidade em nome de uma denúncia. O repórter é um cidadão como qualquer outro, sujeito às leis. Não é super-Homem. O jornalismo mais saudável, inclusive, é com o crachá no peito, aquele que não esconde sua condição. Aperta o gravador e tira da fonte a declaração que você precisa num jogo claro e transparente. É mais difícil, mas aí está o desafio. Há uma distorção, porque acham bacana se disfarçar, usar os meios secretos, mas isso é o mais fácil. Difícil é você dizer o seu veículo e abordar o sujeito. Não podemos perder isso do horizonte, o resto é plano B. Estão confundindo e tornando A o plano B.

Portal: Com as novas mídias, o que muda no ofício do jornalismo investigativo?

Chico Otávio: Melhora muito. Quanto mais plataformas, melhor. Acaba gerando, porém, uma overdose de informação. Nessa briga, ganha quem fizer a diferença, quem investir mais na informação. Não tenho nada contra as novas mídias, até porque acho que o jornalismo com computador é um aliado da investigação. O que pode ser entendido como efeito colateral é essa sobrecarga. Quanto mais plataforma, mais responsabilidade. Quanto mais tarefas, menos tempo para o cuidado. Vejo com bons olhos, mas reconheço que há esse efeito colateral.

Portal: Uma das novas plataformas é a Agência Pública. O que o senhor pensa sobre essa agência de notícias de jornalismo investigativo?

Chico Otávio: Acho que é um dos futuros do jornalismo investigativo. São reportagens que custam caro, porque exigem mais investimento. Pesquisa no Arquivo Nacional tem um preço. Os materiais ainda são muito analógicos, então o repórter, às vezes, tem que se deslocar até Brasília para pegar o resultado. Quando você cria uma agência, essa solidariedade pode implicar uma redução do custo de uma reportagem dessa dimensão. Outra coisa legal que eu vejo é a própria solidariedade, né? Desde que a Abraji foi fundada, ela trouxe isso de bom: a cultura do compartilhamento, da troca de informações. Vejo isso como uma novidade importante.

Portal: Caso sejam subsidiadas pelo governo ou pela iniciativa privada, agências de notícias de jornalismo investigativo perdem credibilidade?

Chico Otávio: Totalmente. Uma agência dessas tem que trabalhar em estado de pureza. Qualquer dinheiro que entrar ali vai comprometer a empresa com quem está financiando, seja público ou privado. Sinceramente, não acho saudável.

Portal: As críticas à mídia tradicional, amplificadas com as manifestações de junho, respingam no jornalismo investigativo?

Chico Otávio: Um jornal diário está sujeito a críticas. Não dá para agradar todo mundo. Acho as críticas altamente construtivas. Adoro que elas surjam, que venham na direção dos trabalhos que faço, inclusive. O que faz o repórter perder a credibilidade é o descuido com seu trabalho. Mas, se você consegue fechar a equação ineditismo-relevância pública-consistência, não tem nada que derrube a credibilidade da matéria.

Portal: E a ascensão da Mídia Ninja? Qual o impacto para as investigações?

Chico Otávio: Vejo com bons olhos, nunca tive medo da concorrência. É bom para evitar o controle social da grande imprensa. Seja bem-vindo esse espírito jovem, essa empolgação, porque isso oxigena o jornalismo. Mas é óbvio que não quero ver só nos protestos, só no confronto com a Polícia Militar. Quero ver a Mídia Ninja na periferia, no rompimento da adutora, nas enchentes de Xerém, até para mostrar uma visão diferente desses casos. Isso ainda é inédito. Um dos meus mestres, Rosental Calmon Alves, disse que a mídia tradicional tem muito a aprender com a Mídia Ninja.

Portal: Em quê, por exemplo?

Chico Otávio: Transmissões ao vivo. Esse é o primeiro ponto. Não é a grande redação que tem as tecnologias? Os ninjas vão lá com equipamento precário e fazem. Por que não podemos fazer também? Transmitir ao vivo e mostrar para o público o que está acontecendo em tempo real. Isso é uma grande lição. Na semana passada, o jornal para o qual trabalho mostrou um policial forjando uma prova, jogando no chão um morteiro para incriminar um manifestante. Isso, para mim, é uma lição aprendida com a Mídia Ninja. É preciso ter humildade de reconhecer que eles também têm muito a nos ensinar. A relação dos repórteres da mídia tradicional com os ninjas, no calor das manifestações, é uma via de mão-dupla.