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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Cultura

Documentário com Havelange reabre debate sobre censura

Luis Edmundo Sauma - aplicativo - Do Portal

01/10/2013

Divulgação

O lançamento do documentário Conversa com JH (2013, Brasil), do jornalista, escritor e professor da PUC-Rio Ernesto Rodrigues, no Festival do Rio 2013, nesta sexta-feira (4), às 19h, no Cine Lagoon, na Lagoa, reforça o debate acerca das biografias não autorizadas – cujas discussões ganharam corpo com a perspectiva da dispensa de autorização pelo biografado ou pela família do biografado, conforme espera a Associação Nacional dos Editores de Livros (o pedido será apreciado pela ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, ainda sem data prevista). Ernesto Rodrigues entra nesse campo ao abrir, de forma sagaz, o baú com as restrições feitas pelo ex-presidente da Fifa à versão original da biografia Jogo Duro – A história de João Havelange (Record), publicada pelo jornalista em 2007. Extraídas de gravações de 11 encontros entre biógrafo e biografado, no Country Club do Rio, as críticas e os cortes "sugeridos" tangenciam a censura, revelam um discurso ora eloquente, ora caricato, invarialvelmente humanizado. Mais que desmistificar Havelange, tais gravações fornecem combustível para Rodrigues desdobrar a aventura biográfica num documentário que busca tratar dos limites entre os direitos do autor e do personagem retratado.

– O filme é um mergulho inédito e desconcertante nas fronteiras éticas, psicológicas e profissionais da relação entre biógrafos e biografados. Na verdade, fui cumprir um compromisso que firmei com ele – explica Rodrigues, autor também da biografia Ayrton Senna, o herói revelado (Objetiva, 2004).

Os 93 minutos do documentário mesclam áudios gravados nos encontros em que Rodrigues submeteu o livro à clave de Havelange com depoimentos dos jornalistas Geneton Moraes Neto e George Moura e de personalidades como o atual presidente da Fifa, Joseph Blatter. Embora algumas sequências provoquem risadas, o filme levanta a bola para a reflexão. Mergulha, como diz Rodrigues, na fronteira não raramente farpada na qual transitam biógrafo, biografado e os limites do direito à informação. 

Para construir a biografia sobre o ex-todo-poderoso da Fifa, artífice da globalização do futebol, sobretudo na África e na Ásia, e um dos brasileiros mais poderosos no cenário internacional no século XX, Ernesto Rodrigues entrevistou cerca de 140 pessoas, entre dirigentes, jogadores, jornalistas. Havelange exerceu o direito de supressão, previsto pelo artigo 20 do Código Civil (Lei 10.406/2002), mas não esmoeceu a perseverança e a habilidade retórica do biógrafo em defesa da cuidadosa pesquisa. "O cara (Havelange) me contou a história dele. Ele me recebeu em 25 horas de entrevista. Eu vou cumprir o que eu combinei com ele", argumenta Rodrigues, no filme. Para ele, a lei talha o acesso à informação sobre figuras importantes:

– Nós (autores de biografias) ficamos com a faca na barriga. O biografado tem um poder muito grande. A biografia do Havelange não se trata de um livro policial. Não fiz para desmerecê-lo. Ele recusava a abordagem de certos assuntos. Essa lei empobrece a qualidade das informações que uma sociedade deve ter sobre pessoas importantes – protesta.

 Divulgação O tema é aguçado pelo confronto, agora no Supremo, entre os que reivindicam a dispensa de autorização pelo biografado ou seus representantes legais, como se observa nos países desenvolvidos, e os que defendem a autorização obrigatória – não raramente sinônimo de censura. No documentário de Rodrigues, uma das restrições de Havelange, pinçada para o trailer (disponível na página eletrônica da produtora Bizum), ganha tom de ultimato: "Ou você faz a minha vida como administrador, ou eu não quero esse livro! Já lhe disse para riscar isso aqui!".

 “Leis brasileiras mostram um paradoxo”, diz autor da biografia proibida de Roberto Carlos

A controvérsia em torno dos limites entre o respeito à privacidade e a liberdade de expressão encontra resguardo nas leis brasileiras, observam espacialistas. Se por um lado o Código Civil dá ao biografado o direito de proibir a divulgação de certo material, a Constituição de 1988 determina, no artigo 220º, parágrafo 2º: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. O professor de Direito da UFF Nílton Cesar Flores admite que possa haver invasão à intimidade do biografado, mas considera soberano o direito à informação:

– A princípio, ninguém é dono da verdade. Posso presenciar algum fato e, ao contar para outra pessoa, não ter mais o controle sobre o destino daquela informação. Por se tratarem de pessoas públicas e importantes, a população tem o direito de saber os pormenores da vida pessoal dos personagens – avalia ele, que teme um avanço da censura:

– Hoje começa com uma biografia, amanhã poderemos estar nos textos de natureza política. Já vivemos num tempo em que a censura prévia era praticada. Então, penso que é um retrocesso.

Tentativa de acabar com o controle dos biografados, a ação movida pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) tramita no STF, sob os cuidados da ministra Cármen Lúcia. O pedido, feito na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.815, pretende eliminar a necessidade de autorização para se publicar uma biografia.

O caso do cantor Roberto Carlos tornou-se um dos mais conhecidos do gênero. Com o argumento de que a Constituição Federal apoia a preservação da intimidade e da vida privada, o Rei conseguiu retirar das livrarias, em 2007, a biografia não autorizada Roberto Carlos em Detalhes, do jornalista e historiador Paulo Cesar de Araújo. Mesmo com apenas cinco meses no mercado, a biografia somou 47 mil exemplares comercializados e figurou na lista dos livros mais vendidos do país. O cantor entrou com um processo cível e um criminal. O primeiro pedia a retirada de circulação do livro e indenização de R$ 500 mil por dia de exposição. O segundo queria, além da proibição, a prisão do autor por mais de dois anos. Paulo César, que leciona na PUC-Rio uma disciplina, lembra a partitura desafinada:

– No criminal, tive uma audiência de reconciliação com ele (Roberto), na qual o cantor se apoiou no artigo 20 do Código Civil para defender a proibição das vendas. Todos eles (biografados que entram na Justiça contra o biógrafo) se utilizam desse mesmo artifício. É a única saída deles. As leis brasileiras têm um paradoxo, é aberrante. A Constituição, chamada de Carta Magna, deveria ser seguida – argumenta o escritor, que, mesmo depois do veto, sente-se vitorioso:

– Não me sinto nem um pouco derrotado. O livro foi muito bem recebido pela crítica, teve uma ampla repercussão. Recebo e-mails da Argentina, do México, da Espanha, elogiando o meu trabalho. A biografia continua sendo lida – comemora Paulo César.

PC, como é conhecido, detalha fatos da vida pessoal do Rei, "todos já sabidos", como a amputação de parte da perna. O objetivo, garante o autor, era produzir, a partir de pesquisa detalhada, uma biografia à altura do personagem:

– Roberto Carlos era o meu ídolo de infância. O meu projeto começou quando eu ainda estava na faculdade de Comunicação, aqui mesmo na PUC-Rio. Tive uma motivação afetiva e uma motivação intelectual, já que, naquela época, não existia nenhuma biografia do Roberto. Passei 15 anos fazendo a pesquisa para o livro, e foi um imenso prazer.

Presidente do Sindicato dos Editores de Livros: "Editores fazem censura prévia" 

Segundo a presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Sônia Jardim, editores fazem uma espécie de censura prévia em originais de biografias. Ajustam trechos que consideram passíveis de questionamentos na Justiça.

– Editores acabam por infringir a Constituição, ao fazer censura de trechos que julgam possíveis de ações judiciais. Isso porque, já na leitura de um original, caso se perceba algo que pode vir a ser caso de litígio, muitos orientam o autor a suprimir o trecho – afirma Sônia.

Para Nílton Flores, a aprovação da ADI 4.815, que dispensa a autorização oficial, não prejudicará os direitos do biografado, e sim garantirá a publicação. Ele esclarece que os autores e editores continuarão sujeitos a processos legais, em caso de informações consideradas falsas, caluniosas:

 – Liberdade de expressão não significa que o escritor possa colocar qualquer coisa no livro. Eu defendo o direito do autor de escrever, mas o personagem também tem o direito de processar se achar que está sendo lesado de alguma forma. Isso, porém, não lhe dá o poder de retirar a biografia das livrarias, prejudicando o trabalho do biógrafo.

 Divulgação Para boa parte dos biógrafos, não é essencial que o personagem ajude ou apoie a obra, mas que não interfira no trabalho do escritor. Rodrigues (foto ao lado) lembra que, na biografia de Senna, não houve interferência da família:

– A família Senna não se intrometeu em nada no processo. Num primeiro momento, eu até procurei a Viviane (irmã de Ayrton), mas ela já tinha planos de fazer uma biografia própria. Percebi a abstenção da família porque entrevistei algumas pessoas bem próximas, e as entrevistas fluíram normalmente, sem nenhum tipo de represália ou restrição de assunto. Não houve sequer um pedido de revisão do livro por parte da família.

"Estou otimista quanto a decisão do STF", anima-se PC Araújo

O desgaste causado por disputas, judiciais ou não, entre biógrafos e biografados, emagrece o mercado editorial das biografias. No ano passado, esse tipo de produção, dos mais procurados nos mercados americano e europeu, respondeu, em 2012, por 326.023 exemplares no Brasil, um crescimento pífio de 0,48% em relação ao ano anterior, estima pesquisa de Produção e Venda do Setor Editorial Brasileiro, feita pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe/USP)

Apesar dos embates judiciais, Paulo Cesar de Araújo mantém-se empolgado. Acredita que a apreciação do Supremo dispensará a autorização dos biografados e, assim, vai oxigenar o mercado editorial. Vida nova para a obra sobre Roberto Carlos:

– A biografia dele está mais do que atualizada. Só estou esperando a decisão do STF. Tenho muito otimismo que será favorável a nós, escritores. Assim que essa necessidade de autorização cair, o meu livro vai voltar às livrarias – projeta.

Para o coordenador-adjunto de Direito da IBMEC, Sérgio Branco, a proibição das biografias não oficiais pode ser considerada inconstitucional:

– Se a Constituição protege tanto a liberdade de expressão quanto a privacidade e a imagem, apenas a análise do caso concreto pode nos oferecer a resposta aplicável. Uma decisão abstrata e aplicável a todos os casos, ou seja, a proibição, pura e simples, de qualquer biografia não autorizada, mostra-se inconstitucional – opina.