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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


País

"Novo julgamento reduz confiança na Justiça"

Brenda Baez e Júlia Cople - aplicativo - Do Portal

19/09/2013

 Divulgação / Agência Brasil

A expectativa pelo voto de Minerva do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, sobre a validade dos embargos infringentes na Ação Penal 470, dissipou-se na tarde desta quarta-feira, quando o ministro confirmou a posição indicada há cerca de um ano. Já o julgamento do chamado Mensalão — a compra de votos parlamentares para garantir a aprovação de leis alinhadas ao governo —, iniciado em 2007 e ora desdobrado para 2014, levanta novas expectativas, novas polêmicas e uma velha sensação: de impunidade, exposta, por exemplo, numa inundação de mensagens nas redes sociais. Embora o desempate a favor dos recursos (6 a 5) reconheça o direito de 12 dos 25 réus a novo julgamento, a absolvição é descartada por juristas. Por outro lado, a apreciação dos embargos infringentes abre a perspectiva de réus emblemáticos, como o ex-ministro José Dirceu e os ex-cânones petistas José Genoino e Delúbio Soares, terem as penas reduzidas. Dirceu, condenado por "chefiar a quadrilha do mensalão", pode escapar do regime fechado.

Para processualistas, a decisão — ancorada na premissa de que a ordem jurídica não deve se curvar ao clamor das ruas, como frisou o ministro Celso de Mello — foi justa, pois contempla o direito de defesa e o tratamento racional das liberdades fundamentais previstas na Constituição. Para outros analistas, o novo julgamento carrega a semente do descompasso, bradado pelas manifestações de junho, entre a sociedade e os representantes políticos. E assim, desgasta o próprio Supremo. Arrasta também discussões adjacentes, porém não menos importantes, como a influência da opinião pública e da mídia nos tribunais; o tempo ainda maior que o caso tomará do já sobrecarregado STF; os efeitos na percepção de justiça e no comportamento da população e os impactos nas eleições presidenciais de 2014. 

Proporcionais à complexidade desse momento histórico, cujas implicações provavelmente só conseguiremos compreender mais à frente, as controvérsias espelham a divisão observada na Corte em relação aos embargos infringentes — cujas interpretações antagônicas encontram justificativas igualmente consistentes. Os recursos, agora aceitos, possibilitam a reanálise de provas de condenações que obtiveram ao menos quatro votos em favor da absolvição. Assim, abrem brechas à reversão de acusações e à redução da pena total dos crimes de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. (Veja no quadro no fim do texto como as sentenças dos réus podem mudar.)

A polarização é centrada numa disparidade entre os textos constitucional e regimental interno do STF. Enquanto os favoráveis à aceitação dos embargos dizem que o artigo 333, de 1980, que prevê esse tipo de recurso, tem força de lei, os contrários argumentam que a Lei 8.038, de 1990, anulou tal cláusula por não citá-la, portanto, a mais alta instância da Justiça brasileira deveria submeter-se à Carta federal. Para o professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas Ivar Hartmann, essa intensa divisão do colegiado deve-se mesmo à complexidade do caso e não indica necessidade de reforma:

— Em casos complicados, é normal haver controvérsia, e essa é sanada por voto, não tem outro jeito. Onze ministros é um número adequado, modelo igual ao de outros vários países. O fato de haver esse desempate não é um problema institucional.

 Nicolau Galvão Já na opinião do cientista político e professor da PUC-Rio Ricardo Ismael (foto), a revisão dos autos processuais põe em xeque, nesse caso, a produtividade do STF:

— A norma jurídica deve ser seguida a risco, afinal estamos em um Estado de Direito. Mas o Supremo é a alta corte do país. Já foi feita a condenação, e são muitos anos desde que começou. São 55 sessões do tempo do Supremo, que tem que decidir outras coisas. Ninguém pode falar de pressa no julgamento, porque não é verdade.

Em palestra na PUC-Rio sobre a separação de poderes, o professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas Joaquim Falcão havia alertado para a sobrecarga da suprema corte. De acordo com um levantamento do Conselho Nacional de Justiça trazido pelo acadêmico, o STF acumulava 39.250 processos de 1988 até 2009.

 Arquivo Portal O adiamento do fim da Ação Pena 470 deve-se, noves fora, à proximidade entre a quantidade de votos a favor e contra a condenação, o que, no argumento dos advogados de defesa, indica dúvida sobre a culpa do réu. O professor de Filosofia da PUC-Rio Edgar Lyra (foto) apela à comunicação: se os mecanismos de votação do gênero fossem previamente esclarecidos à população, haveria menos desgaste, "menos angústia" com o resultado, que, para muitos, apesar de tecnicamente correto, flerta com a impunidade.

— Por que as pessoas votam? Exatamente porque não existe uma certeza, um consenso a respeito da culpa ou da inocência dos réus. A única maneira de resolver é votar, estabelecer um critério de maioria, que prevalecerá. Aí você vota e a maioria não é suficiente. Do ponto de vista do cuidado com a opinião pública, deveria estar claro que 7 a 4, por exemplo, não necessariamente condenava — pondera Lyra.

A falta de uma ponte entre a população e a linguagem e os argumentos jurídicas contribui para a sensação de distanciamento, para percepções enganosas e para a frustração diante da representação política, reforça o professor. Um castigo para o senso comum de justiça:

— Parece-me que o Supremo está trabalhando em algo intrincado, difícil até para os operadores do Direito, que dirá para a população. Já que as normas dos processos penal e civil e a complexidade das jurisprudências são inacessíveis ao cidadão comum, deveria haver alguém que faça essa interpretação. As pessoas ficarem totalmente mobilizadas em uma direção e, de repente, não ser mais aquilo é um atentado contra a credibilidade e a confiança. É muito danoso para o senso comum de justiça.

Nesse contexto, a dúvida pró-réu — a clássica presunção de “inocência até que se prove o contrário” — acaba se convertendo, ao leigo, numa sensação de impunidade. Ao encontro da torcida popular para que o Supremo “tomasse outro caminho”, Hartmann considera o novo julgamento um retrocesso:

— Diante do resultado do ano passado, parecia que a impunidade era exceção e não mais a regra. Mas, não, ela está presente. A questão é que não tem como prever quando serão julgados: pode ser esse ano ou daqui a cinco. Quanto mais demorado, melhor para os réus. Essa incerteza faz com que a concepção de justiça sofra um atraso. A questão-chave é que os processos nunca chegam ao fim, fazendo com que a noção de impunidade seja fortalecida — argumenta.

Como não há previsão de término do julgamento, Ismael lembra que o próprio ministro Celso de Mello será aposentado compulsoriamente em 2015, quando completará 70 anos. Marco Aurélio Mello, pelo mesmo motivo, sairá em 2016. Além dessas trocas acertadas no regimento, analistas especulam uma substituição de ministros. 

— Troca-se o colegiado para tentar alterar o veredicto. Isso é um absurdo. O Brasil tenta mudar, mas a ala conservadora impede. É clara demonstração da tradição de livrar os poderes das punições legais — opina Ismael.

Na avaliação do cientista político, os embargos infringentes, na prática, significam “apenas mais uma protelação”. Essa quebra de expectativa pelo fim do processo, diz ele, representa um tratamento desigual da justiça àqueles que têm condições de pagar bons advogados. "Fiquei frustrado", sintetiza.

Para Lyra, a frustração era, porém, inevitável, independentemente do teor do voto do decano Celso de Mello:

— Se ele recusasse os recursos e terminasse o julgamento, criaria um mal-estar profundo entre os garantistas, aqueles que são partidários da obediência aos mínimos detalhes do aparato técnico e da máxima consideração do principio da presunção de inocência. Geraria a suspeita de que o voto foi movido por razões políticas, morais, ou seja, extrajurídicas. Por outro lado, se ele aceitasse os embargos, como aconteceu, e estende algo que se arrasta há um longo tempo, fica no ar a ideia de que os ministros têm algum motivo que não puramente o jurídico para prolongar esse julgamento. É complicado — reconhece.

A prorrogação indefinida da punição alimenta, segundo o filósofo, um ceticismo generalizado sobre a possibilidade de “mudar o mundo dentro da legalidade”. Mas a preocupação maior do pensador é com o efeito sobre os costumes:

— A partir da suspeita, aos olhos dos cidadãos, de que fatores estranhos à justiça acabam determinando o rumo das decisões, eles começam a não ter mais razões para respeitar as leis. Talvez passem a cumpri-las só quando tiverem certeza de que serão punidos. A gente vai ter uma sociedade cada vez mais baseada no elemento de coerção como regulador dos costumes. Uma sociedade menos livre, em última análise — projeta.

Influência do clamor popular nas decisões jurídicas divide especialistas

 Arquivo Portal A manobra do presidente do STF, Joaquim Barbosa, que finalizara a sessão precedente antes do aguardado voto de Minerva, não conseguiu impedir o iminente "sim" aos embargos infringentes. Apesar de Barbosa ter justificado o encerramento pela sessão do Supremo Tribunal Eleitoral "prestes a começar", analistas consideram que o objetivo oficioso era submeter Celso de Mello à voz popular e midiática. A tentativa foi em vão, porque o decano, observa Lyra, é reconhecido como “o ministro mais impermeável às influências externas”; mas serviu para acender o debate sobre a relação dos tribunais com a opinião pública e a imprensa. O próprio televisionamento das sessões tem incomodado os advogados de defesa, cientes da pressão decorrente do maior envolvimento da população com o julgamento.

— O problema não é se cada juiz voto de acordo com sua consciência ou com o apelo da multidão, como disse um ministro. O furor da população, se não influencia nessas decisões, deveria. No Brasil, precisamos pressionar para que as instituições políticas nos atestem um tratamento igualitário para todos — afirma Ismael, referindo-se ao discurso de Luís Roberto Barroso.

Já o professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Contagem Luiz Moreira Júnior, membro do Conselho Nacional do Ministério Público, diverge e defende que o compromisso do STF seja com as instruções normativas. Ele explica por quê:

— Quem reconhece as demandas do povo é o Poder Legislativo. Se o Judiciário contempla vontades, ele passa a ser linchador, justiceiro.

Apesar das reações adversas ao novo julgamento, como sinal de uma cultura da impunidade, expostas nas redes sociais, Ricardo Ismael descarta uma influência substantiva da mídia. Até porque, para o cientista político, a mídia está polarizada:

— A imprensa está dividida agora, como está há muitos anos. Um lado diz que houve mensalão e o outro nega. Fato é que essa história de mídia manipuladora favorece a absolvição dos réus. Não se pode dizer que ela está manipulando a população. 

Mas a pressão sofrida por Celso de Mello não era apenas externa. Lyra lembra que dois ministros do STF, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello, mencionaram discursos anteriores do decano mais convenientes às respectivas argumentações: Lewandowski votou a favor dos recursos e Marco Aurélio, contra.

— Não deixa de ser curioso. Na vez de Marco Aurélio Mello, inclusive, me pareceu que ele não estava apenas votando, mas tentando convencer Celso de Mello a seguir sua linha de pensamento — observa o filósofo.

 Divulgação / Agência Brasil O Supremo Tribunal Federal escapou, em geral, das críticas dos protestos de junho. Pelo contrário, observou-se, em vários deles, até uma idolatria ao presidente Joaquim Barbosa, seguida de clamores pela "prisão aos mensaleiros". Agora, analistas apontam a perspectiva de a aprovação dos embargos deflagrar desesperança ou indignação, mas consideram temerário prever o impacto nas ruas.

Os especialistas tampouco se arriscam a precisar os efeitos do novo julgamento na corrida presidencial. Embora o argumento político do mensalão tenha se diluído ao longo dos últimos sete anos, quando começou a avaliação dos autos, a oposição aposta que a superexposição do tema na mídia se constitua um trunfo eleitoral. Na avaliação de analistas políticos, a economia em busca de recuperação terá peso maior na chance de reeleição da presidente Dilma Rousseff. Perdas econômicas, ponderam, tendem a acentuar os impactos nas urnas produzidos pelos escândalos de corrupção. 

Mesmo oposicionistas pré-candidatos ao Planalto podem sofrer com o adiamento. Marina Silva, que tenta criar o partido Rede para concorrer à presidência, era ministra quando o ex-deputado Roberto Jefferson denunciou o esquema de compra de votos. Já o governador de Pernambuco e presidente do PSB, Eduardo Campos, defendeu recentemente o ex-presidente Lula das acusações de envolvimento no mensalão.

Punições: o que pode mudar com o novo julgamento

José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil

Punido com 10 anos e 10 meses de prisão por corrupção ativa e formação de quadrilha. Sem a pena de quadrilha (2 anos e 11 meses). Passaria do regime fechado (em presídio de segurança média e máxima) para um regime semiaberto (quando se pode deixar o presídio para trabalhar), obedecendo a pena de 7 anos e 11 meses de prisão.

José Genoino, ex-presidente do PT

Condenado a 6 anos e 11 meses no regime semiaberto pelos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha. Mesmo sendo absolvido da pena de quadrilha, continuaria no semiaberto, mas seria puindo em 4 anos e 8 meses de prisão. Devido a problemas de saúde, Genoino pode obter prisão domiciliar.

Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT

Punido em 8 anos e 11 meses no regime fechado por corrupção ativa e formação de quadrilha. Sem a pena de quadrilha, passaria para 6 anos e 8 meses de prisão no regime semiaberto.

João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara

Punido em 9 anos e 4 meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e peculato em regime fechado. Sem a pena de lavagem, passaria para 6 anos e 4 meses de prisão no semiaberto.

Marcos Valério, empresário, considerado o principal operador do mensalão

Condenado a 40 anos, 4 meses e 6 dias no regime fechado pelos crimes de corrupção ativa, formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Sem a quadrilha, a pena ficaria em 37 anos, 5 meses e 6 dias e continuaria em regime fechado.

Ramon Hollerbach – Ex-sócio de Marcos Valério

Condenado a 29 anos, 7 meses e 20 dias no regime fechado pelos crimes de formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Se absolvido da quadrilha, continuaria no regime fechado com pena de 27 anos, 4 meses e 20 dias.

Cristiano Paz, ex-sócio de Marcos Valério

Punido em 25 anos, 11 meses e 20 dias no regime fechado pelos crimes de corrupção ativa, peculato, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Se absolvido de quadrilha, continuaria no regime fechado com pena de 23 anos, 8 meses e 20 dias de reclusão.

Kátia Rabello, acionista do Banco Rural

Condenada a 16 anos e 8 meses em regime fechado, por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta. Sem a quadrilha, seria punida em 14 anos e 5 meses permanecendo no regime fechado.

José Roberto Salgado, ex-presidente do Banco Rural

Punido em 16 anos e 8 meses por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta em regime fechado. Sendo absolvido de quadrilha, seria punido em 14 anos e 5 meses permanecendo no regime fechado.

João Cláudio Genu , ex-assessor parlamentar

Condenado a 4 anos pelo crime de lavagem de dinheiro em regime aberto, podendo pleitear a conversão para prestação de serviços. Na reanálise do caso, poderá ser absolvido.

Breno Fischberg, ex-dono da corretora Bônus Banval

Condenado a 3 anos e 6 meses em regime aberto pelo crime de lavagem de dinheiro, podendo pleitear a conversão para prestação de serviços. Na reanálise do caso, poderá ser absolvido.

Simone Vasconcelos, ex-diretora das agências de Marcos Valério

Sua punição por formação de quadrilha prescreveu e ela não pode mais pagar por este crime que foi desconsiderado na soma total da pena, totalizada em 12 anos, 7 meses e 20 dias pelos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. No entanto, ainda poderá recorrer por uma pena maior nos crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas devido aos quatro votos favoráveis.