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Rio de Janeiro, 18 de abril de 2024


Cultura

Vinicius de Moraes, centenário de um apaixonado pela vida

Mariana Totino e Marianna Fernandes - aplicativo - Do Portal

17/10/2013

 Arte: Marianna Fernandes

O poeta Vinicius de Moraes completaria um século de vida neste ano. Carioca, boêmio, era da rua, mas também gostava de ter a casa cheia. Apaixonado pela figura feminina, definia-se um “mulherólogo”, fazendo troça com a fama de mulherengo. Amava também a vida, vivendo intensamente e declarando-se a ela e a seus amores – entre os quais seus cinco filhos – em suas composições. Apesar de ter se casado nove vezes, aqueles que conviveram com ele garantem que sempre foi homem de uma mulher só.

O escritor Ruy Castro, autor do livro de correspondências Querido poeta (Cia. das Letras, 2003), confirma que Vinicius era de fato um grande romântico, mas afirma que a fama de infiel atribuída ao poeta não se justifica: “Se estivesse casado, tinha que se separar desta para casar com a outra”.

Generosidade, bom humor, desapego em relação a questões materiais e preocupação com o outro são características frequentemente atribuídas ao poeta por aqueles que o conheceram, conviveram com ele ou estudaram sua vida. A relação de Vinicius com a juventude, a crença que tinha no potencial de novos talentos se comprova pelas parcerias com artistas em início de carreira:

– Ele não podia ver um jovem compositor sem se oferecer para ser seu parceiro. Fez isso com Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime e tantos mais – lembra Ruy Castro.

 Acervo VM Cultural/DR A cantora Georgiana de Moraes, uma das filhas do poeta, conta que ainda hoje muitas pessoas vêm até ela com histórias sobre seu pai, como se tivessem sido amigos, devido à sua personalidade amigável e da capacidade de fazer com que as pessoas, mesmo aquelas com quem não tinha intimidade:

– Todos se sentiam à vontade na sua presença. Ele tinha um dom particular de diminuir o distanciamento entre ele e os outros, tornando todos íntimos da figura dele.

Vinicius pai

Filha de Lila Bôscoli – a segunda mulher de Vinicius – e terceira dos cinco filhos, Georgiana (nas fotos com o pai ainda bebê e, abaixo, nos anos 70) conta que não era fácil ter o poeta como pai. As viagens a trabalho, o tempo destinado à criação de sua obra e os sucessivos casamentos fizeram com que Vinicius ficasse ausente em diversas etapas da sua vida – a cineasta Suzana de Moraes e o fotógrafo Pedro de Moraes, os filhos mais velhos, frutos do casamento mais longo do poeta, com Beatriz Azevedo de Mello, a Tati, chegaram a morar com Vinicius em Los Angeles, nos tempos em que o pai era diplomata. Apesar disso, Georgiana conserva boas memórias da infância, como a convivência com grandes intelectuais e a abertura de um show de bossa nova, da qual participou cruzando o palco num velocípede. Hoje, valoriza os aspectos positivos da relação com o pai:

Acervo VM Cultural/DR – Se na época Vinicius não foi presente o tempo todo, agora ele está mais vivo do que nunca. É um pai muito presente de forma tardia. Ele me dá muito material para eu lidar com a vida. Penso em alguma coisa e vejo que ele já escreveu sobre isso.

A jornalista Maria Gurjão de Moraes, a caçula do poeta, filha da jornalista Cristina Gurjão (a bebê da foto abaixo), foi a que passou menos tempo ao lado do pai, que morreu quando ela tinha 10 anos, em 1980. Maria, a única que se acostumou a chamá-lo de pai, o define como muito amoroso.

– Ele era, ao mesmo tempo, um homem acadêmico e popular, uma pessoa extremamente interessada pelas pessoas, que gostava de conhecer o outro. Se estivesse vivo, estaria entre os jovens – diz Maria (foto), que este ano tem feito visitas a escolas para conversar com crianças e adolescentes cariocas sobre a vida e a obra de Vinicius.

Acervo VM Cultural  Nem a dedicação inicial à carreira de diplomata e as posteriores viagens em turnês o fizeram abandonar suas raízes ou seus amigos. Formou-se em Direito, trabalhou como censor cinematográfico no fim dos anos 1930, durante o regime do Estado Novo. Em 1943, passou em concurso para o Itamaraty e no cargo de diplomata trabalhou em cidades como Londres (onde estudou cinema), Roma e Montevidéu. De volta ao Brasil em 1964, é exonerado do Itamaraty em 1969, quando se casa com Cristina Gurjão e passa a colaborar para O Pasquim, jornal de oposição à ditadura.

 “É preciso inventar de novo o amor”

 Segundo Vinicius, foi a figura da mulher que o salvou da caretice. Ele, que recebeu criação católica em colégios tradicionais como o Santo Inácio, costumava escrever poemas que em nada se parecem com a sua obra em geral (na reprodução, a menção a prêmio que ganhou no colégio). Após se familiarizar com as mulheres, Vinicius não só se revelou o poeta que é como também se tornou um eterno apaixonado. Analisar cada ano da cronologia da vida de Vinicius é deparar-se com viagens e trocas de esposas em intervalos de poucos anos.  Marianna Fernandes

A primeira mulher foi Beatriz Azevedo de Mello, a Tati, mãe de Susana, nascida em 1940, e Pedro, em 1942, com quem permaneceu por seis anos. A paixão seguinte foi Regina Pederneiras, a única com quem se casou na igreja. Não tiveram filhos. A terceira foi Lila Bôscoli, com quem teve Georgiana, em 1953, e Luciana, em 1956, pouco antes de a relação acabar. Foi a vez de Maria Lúcia Proença, musa inspiradora de Para viver um grande amor e para quem escreveu o apaixonado poema Teu nome. Em seguida veio Nelita, então com 19 anos, 30 a menos que ele, com quem se casou e foi para Paris em 1963, pela delegação brasileira junto à Unesco. Vinicius “raptou” a moça, deixando desesperada a família da moça.

  Marta Rodriguez Em 1969, já de volta ao Brasil, casou-se com a jornalista Cristina Gurjão, com quem teve a filha caçula, Maria. Logo depois a atriz baiana Gesse Gessy levou o poeta para a Bahia e apresentou-lhe novas crenças no Terreiro da Mãe Menininha. Após deixar a terra de todos os santos, Vinicius partiu para a Argentina, onde casou com Martita. De volta ao Brasil, durante um show, em 1972, foi abordado pela estudante de jornalismo Gilda Mattoso, que lhe pediu um autógrafo. Logo a paixão aflorou – seria seu último casamento.

Marta Rodriguez Santamaria, a ex-mulher argentina de Vinicius, conhecida como Martita, o descreve como amoroso, terno, transparente e erudito:

– Ele tinha uma capacidade profunda de comunicação, que podia ser vista nos shows e em suas relações pessoais. Percebia talentos nas pessoas, que, às vezes, nem elas mesmas sabiam que tinham. Chegava até a alma das pessoas, como se pudesse lê-las. Ele era meio mágico, um grande sedutor e naturalmente charmoso, o que atraía. Ele foi a pessoa mais generosa que conheci.

De acordo com Marta, ser a mulher de Vinicius implicava em estar atenta a compartilhar a rica sensibilidade que ele tinha. Ela o define como fiel, intenso, bom companheiro, um amigo com quem tinha uma grande afinidade e um romântico incurável:

– Uma vez eu estava em Buenos Aires quando bateram na porta e era um empregado de uma floricultura, trazendo um ramo de flores que o Vinicius tinha enviado do Rio. Eram onze flores, com uma nota que dizia que a flor que faltava era eu. Não dá para esquecer uma delicadeza destas. Ele me modificou, me enriqueceu e me tornou uma pessoa melhor.

Desapegado em relação a dinheiro, Vinicius não se preocupou em construir patrimônio e mesmo que tivesse pouco, ajudava os amigos. A generosidade traduzia-se em ações como no caso do pianista brasileiro Francisco Tenório Junior, desaparecido dias antes do golpe militar na Argentina, durante uma turnê de Vinicius e Toquinho em Buenos Aires, em 1976. O músico deixou o hotel dizendo que voltaria em instantes, e nunca mais foi visto. Vinicius não mediu esforços para encontrar o amigo, procurando a imprensa e acionando o Itamaraty. O desaparecimento de Tenório, agora, será investigado pela Comissão Nacional da Verdade.

Meio mozarlesco, meio kerniano

 Reprodução Vinicius tinha o hábito de classificar as pessoas de acordo com a Nova Gnomonia, teoria criada por Jayme Ovalle, segundo a qual mozarlescos são os românticos inveterados, guiados pelo coração; já os kernianos são impulsivos por excelência, indivíduos de bom coração, capazes de grandes sacrifícios pelo outro. Os dantas, categoria na qual Vinicius costumava incluir Chico Buarque, são os puros, nobres e desprendidos que não têm consciência do próprio valor; parás são os homens audaciosos, que valorizam o sucesso material, a glória ou o poder. Por fim, os onésimos têm dificuldade para encontrar suas finalidades na vida, não conseguem se sentir entusiasmados e tendem a provocar desconforto nos outros; no entanto, são extremamente responsáveis.

Para a jornalista Maria Lucia Rangel, que conviveu muitos anos com o poeta, seus filhos e amigos – e é filha do compositor Lucio Rangel, responsável pelo encontro de Vinicius e Tom –,Vinicius era um misto de mozarlesco com kerniano:

 Marianna Fernandes– Ele adorava doces, apesar de ser diabético. Ia para a copa com as crianças comer doce de leite, e dizia que queria morrer em sua banheira comendo papo de anjo. Vinicius sempre teve o amor que quis. Ele gostava da paixão. Quando terminava com uma mulher, já estava virado em outra, e saía dos relacionamentos só com a roupa do corpo. Numa dessas, deixou tudo para trás, e depois me pediu que fosse buscar apenas o seu Portinari que havia ficado na casa da ex-mulher – conta Maria Lucia, que guarda dedicatória de Vinicius a seu pai em um exemplar de A arca de Noé (foto).

“A vida só se dá para quem se deu”

As famosas parcerias de Vinicius conquistaram o mundo. Garota de Ipanema, composta com Tom Jobim, está entre as músicas mais tocadas da história. Em 1965, a versão The Girl from Ipanema, por João Gilberto e o saxofonista americano Stan Getz abocanhou três prêmios na maior premiação da música mundial, o Grammy (na categoria melhor gravação, melhor disco por Getz/Gilberto e melhor engenharia de som). 

Se a paixão por mulheres rendeu muitos casamentos a Vinicius, o interesse pelas pessoas levou o então diplomata, que viajava de Roma a Paris, a presenciar os batuques do Morro do Cavalão, em Niterói. Maria de Moraes destaca que seu pai foi um dos poucos a ter participação em movimentos distintos da música, da bossa-nova aos afrossambas. Misturando o erudito e o popular, o poeta criou algumas de suas mais importantes obras, tal como a peça Orfeu da Conceição, e, anos mais tarde, o movimento dos afrossambas, com Baden Powell.

Foi na casa de seu amigo Carlos Leão, em Niterói, aos pés do morro do Cavalão, que Vinicius se inspirou para escrever a peça, que, anos depois, ocuparia os palcos do Teatro Municipal – tudo bancado pelo poeta. Ouvindo o batuque dos moradores do Cavalão, veio a ideia de transpor para uma favela carioca o mito grego de Orfeu e Eurídice. Ainda servindo como diplomata em Paris, em 1953 concluiu a escritura da peça.

Em 25 de setembro de 1956, um elenco composto apenas por atores negros ocupou o palco do mais famoso teatro brasileiro em grande estilo, com direito a cenário assinado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. O sucesso foi tanto que a peça foi adaptada para as telas de cinema – sob direção de Marcel Camus. Com roteiro de Vinicius, músicas feitas pelo poeta e por Tom Jobim, foi dirigido e produzido por franceses, Orfeu negro recebeu os mais importantes prêmios do cinema mundial, na categoria de filme estrangeiro.

– Vinicius teve a ideia de adaptar o mito de Orfeu e Eurídice para a realidade das favelas cariocas, quando estava ouvindo o batuque dos moradores do morro. O filme, adaptação da peça, foi um dos fatores que ajudou a construir a imagem do Brasil no exterior – destaca Maria.

Na autobiografia do presidente dos Estados Unidos Barack Obama A origem dos meus sonhos, lançada em 2008, o representante americano faz referência ao filme. Teria sido o primeiro longa-metragem estrangeiro visto pela mãe de Obama. Ao se mudar para o Havaí, ela se casou com um queniano que seria parecido com o protagonista do filme, o ator Breno de Mello. Há quem diga que, se não fosse Vinicius, Obama não teria existido.

Lamento no morro

Para que o musical Orfeu da Conceição pudesse ser montado no Teatro Municipal, foi preciso pensar numa alternativa para substituir o instrumentista Oswaldo Gogliano, conhecido como Vadico, que estava doente. Lúcio Rangel, jornalista e amigo de Vinicius, sugeriu que ele convidasse o jovem músico Tom Jobim que costumava tocar na noite carioca.

 Reprodução  O local do encontro foi o bar Villariño, no Centro do Rio, em 1956. Tom, que estava tomando uma cerveja, foi chamado para se sentar à mesa com Vinicius e Lúcio. Juntou-se a eles e ganhou um uísque para acompanhá-los.  A primeira preocupação de Tom foi com os lucros – eram tempos difíceis, ele era pouco conhecido e estava difícil sustentar a família – daí surgiu a frase “Tem um dinheirinho nisso aí?”. Foi assim que começou uma das maiores parcerias da música brasileira.

Ainda numa época em que os papéis de compositor e cantor eram bem separados, a primeira letra da parceria, Se todos fossem iguais a você, foi gravada por Roberto Paiva, em 1957. O grande sucesso da bossa nova, a música Chega de saudade, foi lançada em 1958 por João Gilberto, o que mudaria os destinos de muitos artistas que ainda estavam por surgir e abriria o caminho para o surgimento de novas vozes na MPB.

Homenagens aqui e no exterior

 Reprodução  Trinta e três anos após sua morte, o poeta está entre os mais mencionados entre os jovens como um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Cento e vinte alunos de alunos de Comunicação Social da PUC-Rio, inscritos este semestre na disciplina eletiva de Comunicação e Música Popular Brasileira, ministrada pelo jornalista e escritor Paulo Cesar de Araújo, apontaram em questionário os maiores artistas de todos os tempos da MPB. Tom Jobim (morto em 1994) ficou em primeiro lugar, com 32 votos. Chico Buarque foi citado 28 vezes. Vinicius teve 21 votos. Apesar das escolhas terem sido variadas, sendo lembrados cantores como Caetano Veloso, Cazuza, Elis Regina, Noel Rosa, Pixinguinha e Renato Russo, o legado deixado pelo Poetinha é reconhecido também por jovens universitários.

No rol de celebrações ao centenário, neste domingo 20 de outubro, um dia após o centenário do poeta, está previsto um show na Praia de Ipanema com a participação de Nana Caymmi, Toquinho, Miúcha, Roberta Sá e Arlindo Cruz. Reedições de obras completas de poesia e prosa, lançamentos de álbuns e livros, novas versões de coletâneas e homenagens em feiras e exposições fazem parte do roteiro de homenagens.

A Companhia das Letras lançou em junho Jazz & co, com textos pouco conhecidos de Vinicius quando morou em Los Angeles (de 1946 a 1951) e teve contato com o ritmo americano. Pois sou um bom cozinheiro, livro de culinária, com receitas de pratos que costumavam ter em casa ou de petiscos que beliscava nos bares e restaurantes que frequentava, foi lançado este mês, também pela editora. Sai ainda a caixa A bênção, Vinicius – A arca do poeta com 20 CDs, incluindo álbuns autorais e as coletâneas de dois volumes A arca de Noé, de 1980, e Pela luz dos olhos teus, de 2013, com a interpretação de vários artistas. A coletânea A arca de Noé ganhou uma nova versão lançada pela Sony. O projeto que foi organizado por Susana de Moraes, filha de Vinicius, e também pela cantora Adriana Calcanhotto, reúne sucessos na voz de cantores como Maria Bethânia e Seu Jorge.

A Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, também pôs no ar o documentário Vinicius – Poesia, música e paixão, produzido em 1993 pela Rádio Cultura.

Na Biblioteca Popular Vinicius de Moraes, no Leblon, uma das 29 bibliotecas municipais do Rio, a subgerente da biblioteca, Simone da Cruz, espera fechar o ano com mais livros nas estantes dedicadas ao poeta e conta que os visitantes, entre eles alunos de Ensino Fundamental e professores da rede municipal, têm procurado mais este material. Hoje o acervo reúne cerca de 80 exemplares sobre a vida e obra do poeta, conseguidos por meio de doações – inclusive da VM Cultural, escritório que administra os direitos autorais de Vinicius – e de trocas em sebos.

Na celebração do centenário de Vinicius, as homenagens ultrapassam fronteiras. A exposição Vinicius...saravá! será realizada no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, de novembro a março de 2014. Idealizada por Marta Rodriguez Santamaria, a ex-mulher argentina de Vinicius, a mostra contará com a direção criativa da artista plástica Renata Schussheim e com a coleção de fotos do fotógrafo argentino Gianni Mestichelli, que, segundo Marta, “seguia Vinicius por todos os lugares cada vez que vinha a Buenos Aires”. Serão reproduzidas músicas, vídeos, hologramas e poesias do poetinha. 

 Marta Rodriguez Marta, que tem uma coleção de fotografias do Vinicius, recolhida nas viagens e do tempo em que esteve ao lado do poeta afirma que a exposição será estendida para além de três a quatro semanas, tempo médio que uma exposição fica em cartaz no centro cultural. Pois as autoridades do local reconhecem a importância da homenagem:

– Ele teve uma profunda relação com Buenos Aires, por isso tanta gente se lembra tanto dele até hoje. Agora que estamos organizando a exposição, tem aumentado a quantidade de pessoas que escrevem com carinho sobre ele. Até mesmo jovens, que não eram nascidos quando ele morreu. Ele despertou grandes amores, porque tinha um amor à flor da pele, num sentido extenso, um amor pelos outros. Isso tudo está em sua obra. Com sua música e poesia, as pessoas descobriram uma nova sensibilidade – destaca Marta.