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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Mundo

"Igreja deve seguir aproximação personificada pelo papa"

Danilo Rodrigues Alves e João Pedroso de Campos - Do Portal

04/08/2013

 Arte: Nicolau Galvão

Reaproximar a Igreja Católica dos brasileiros, falar aos mais pobres, às minorias, e motivar os jovens cristãos de todo o mundo. Estes eram alguns dos desafios do papa Francisco ao desembarcar no Rio, há 15 dias, para a Jornada Mundial da Juventude. Decantados a euforia dos fiéis com a nova voz da Igreja – cuja dicção se cristaliza no carisma e na simplicidade do novo líder – e os balanços oficiais positivos da JMJ, especialistas enxergam um legado além de novidades retóricas. Acreditam que a "cultura do encontro" migrará das pregações para mudanças correspondentes a gestos emblemáticos de Francisco, como a opção por acomodações e acessórios mais franciscanos, a disposição para corrigir falhas administrativas e a maior abertura para as diferenças.

Na avaliação de teólogos e pesquisadores da área, as mensagens observadas na primeira viagem internacional do papa eleito em março representam um cartão de visitas para alterações na Igreja Romana, extensivas à Cúria Romana, à Secretaria de Estado e ao Banco do Vaticano, alvo de acusações recentes. "Agora, é preciso dar continuidade, na prática, à aproximação aos flagelos do mundo personificada pelo papa Francisco", observa Maria Clara Bingemer, decana do CTCH (Centro de Teologia e Ciências Humanas) e professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Embora reconheça um ambiente propício a renovações, o jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras Luiz Paulo Horta, que escreveu uma série de artigos sobre a JMJ para O Globo, ressalvou: mudança de comportamento não significa mudança de doutrina. (Horta morreu no sábado passado, aos 69 anos, vítima de infarto, dias depois de conversar com a reportagem do Portal. Veja a entrevista completa no box abaixo deste texto.)  

Para boa parte dos analistas, um dos principais indícios da mudança dos ventos rumo a uma Igreja com "o cheiro das ovelhas" – portanto mais potente diante da missão evangelizadora e do desafio de rejuvenescer e tornar a crescer – ficou estampado, durante a Jornada, em cartazes como "Santo Padre, eu sou evangélico, mas te amo". Na opinião de Luiz Paulo Horta o maior legado da primeira grande viagem de Francisco tem raízes na comunicação. Um papa próximo da rua, "que não quer barreiras, humano e aberto", soluciona, em parte, o distanciamento da Igreja por trás do estilo formal e de certa pretensão dos pontífices, destaca Horta.

– A mudança no discurso foi um marco. João XXIII e Joseph Ratzinger, que teve uma postura importante, foram papas marcantes, mas a mudança de Francisco foi enorme, essa coisa mais simples, aberta. [Na Jornada], ele tinha palavras sensíveis para cada um, católicos e não católicos, com uma voz firme e suave ao mesmo tempo. Francisco é o papa do encontro – sintetiza. 

"Diálogo inter-religioso deve produzir mais que tolerância"

A preocupação da Igreja e do papa com questões pastorais e aspectos sociais deu um tom ecumênico à visita de Francisco. Ele disse que “se há jovens que precisam de educação e passam fome, o que importa é que eles sejam atendidos. Não importa se quem estiver atendendo for católico, protestante, judeu ou ortodoxo”.

Entretanto, o professor Gomes de Souza observa o foco social da Jornada como mais superficial que o esperado, por mais que o papa negue sua adesão à Teologia da Libertação, "feita por pobres para os pobres" e característica do pentecostalismo.

– Senti falta de um enfoque mais profundo nas pastorais sociais e na Teologia da Libertação. Mesmo ele já tendo dito que não é adepto da Teologia da Libertação, seu próprio jeito de se aproxima muito do que se prega com essa teologia, uma igreja feita por pobres e voltada para os pobres.

O líder judaico-messiânico Eduardo Stein avalia que a Jornada ficou muitio centrada "na figura do papa". Ele ressalta, contudo, que o encontro foi um exercício de tolerância religiosa:

– Tudo ficou muito centralizado na presença dele, e não nos assuntos da pauta. A visita funcionou como uma injeção de ânimo na Igreja Católica, mas, por outro lado, tirou a atenção dos eventos que a Jornada se propôs a fazer – opina – Trata-se de um evento de uma denominação religiosa, então todas as coisas cooperam para essa denominação religiosa. Ela não é um evento criado para as demais denominações religiosas. Ela é positiva, sim, a quem se destina. A quem não se destina, ela se torna um evento de tolerância religiosa, que mostra um Brasil tolerante a diversas linhas religiosas.

Autor dos livros Islam: a sua crença e a sua prática (2003, Azaan) e O Estado islâmico e a sua organização (2007, Azaan), Sami Isbelle dirige o Departamento Educacional e de Divulgação da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro. Ele também reconhece o legado de aproximação da JMJ, marcada pelo "diálogo inter-religioso" e por um “Papa carismático”:

– Prefiro usar a palavra respeito. “Tolerar” não é algo positivo. É preciso deixar de enfatizar as diferenças e promover aproximação naquilo que existe em comum: projetos sociais e educacionais. Além da tendência de aproximação com o povo da Igreja Católica, há uma predisposição do papa Francisco em estreitar os laços de diálogo entre as religiões e o respeito mútuo. Francisco é um papa carismático, fala tocando o coração das pessoas.

Aos bispos, Francisco pediu que evitem o clericalismo e promovam o protagonismo dos fiéis. Aos jovens, que cultivem a utopia, os sonhos, "façam barulho" e sejam revolucionários contra a cultura do descartável, do provisório. À sociedade, pediu mais atenção e participação "junto aos pobres" e na política. Para o padre Luís Corrêa, professor de Teologia da PUC-Rio, estes são traços da Antropologia Cristã empregados pelo Sumo Pontífice "com muito entusiasmo". Ao comparar os discursos de Francisco e Bento XVI, o professor lembra: "Ratzinger tinha um discurso mais acadêmico, universitário. Tratava bem a multidão, mas à distância".

– O papa Francisco tem um discurso trocado em miúdos. A linguagem é mais popular, mais contundente. Na entrevista que ele concedeu à imprensa brasileira, perguntaram por que ele não falou em aborto, moral sexual. Disse: “a Igreja já tem uma posição clara quanto a isso, há outras coisas que devem ser tratadas eu quis levar uma mensagem positiva ao jovem”. 

Com habilidade, Francisco abriu, no entanto, brechas para reflexões referentes a pontos como o homossexialismo. Para o diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião, da Universidade Cândido Mendes, Luiz Alberto Gomes de Souza, o grande legado da Jornada foi "essa postura de abertura que Francisco apresentou já no fim da visita", no caminho de volta a Roma:

– O silêncio do papa quanto à questão dos homossexuais foi um silêncio libertador. Essa postura de abertura pode acarretar mudanças profundas em breve.  

Se o papa foi sutil ao reforçar os dogmas da Igreja Católica durante a Jornada Mundial, o bispo-auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Paulo Cezar Costa, afirma que "a doutrina e as verdades dogmáticas da Igreja sempre existirão, amparadas por um código moral que vem do Evangelho". Porém, ainda de acordo com Dom Paulo Cezar Costa, isso não impede a mudança de comportamento observada com Francisco, que aproxima a Igreja das esquinas e a faz mais presente no que chamou de "diversas realidades": 

– O grande legado da Jornada é o despertar para, cada vez mais, sermos discípulos em uma Igreja viva e testemunharmos Cristo nas diversas realidades. Com o fim da JMJ, os jovens foram enviados de volta a seus países e realidades, para serem testemunhas de Jesus Cristo. Esperamos que os jovens que aqui tiveram uma experiência com o papa sejam, em seus países, portadores daquilo que aqui experimentaram. 

Para a teóloga Maria Clara Bingemer (foto), decana do CTCH (Centro de Teologia e Ciências Humanas), a Igreja tem, com Francisco, uma oportunidade mais consistente de se aproximar dos problemas e flagelos do mundo. Ela também vê em Francisco a possibilidade de torná-la "menos hierárquica e mais igual". 

 Arquivo – A Igreja quer estar perto da humanidade, sobretudo onde ela mais sofre, com os pobres, com a violência, com os adictos de drogas. Esse é o lugar da Igreja. Isso o papa Francisco personificou muito bem. Agora, isso tem que ser trabalhado na continuidade da visita, na continuidade da jornada – afirma a teóloga – Em segundo lugar, ele quer uma Igreja que o Vaticano II chama de Povo de Deus, onde todo mundo tem uma missão em comum, que é o batismo. Onde não há os que ensinam e os que aprendem, os que mandam e os que obedecem. Todo mundo está servindo no mesmo projeto .

"A Igreja não deve ser ensimesmada", diz padre

A queda no número de católicos no Brasil, 27 pontos percentuais nos últimos quarenta anos, e o crescimento no número de evangélicos, sobretudo pentecostais, de 17 pontos percentuais nesse mesmo período, são, segundo analistas, razões para a preocupação pastoral da Igreja Católica e, portanto, do papa. As celebrações da Jornada marcadas para Guaratiba, na Zona Oeste carioca, reproduziriam a lógica de "ir aonde o povo está". A transferância para Copacabana, causada pelas chuvas, manteve, no entanto, a retórica de falar aos mais pobres.

"Varginha representa todos os bairros do Brasil, que é tão grande", disse Francisco, ao visitar a comunidade no Complexo de Manguinhos, Zona Norte. Depois, pediu que os jovens "saiam às ruas em ajuda a quem mais precisa". Para o padre Luís Corrêa, o tom jesuítico e essa "cultura do encontro" difundida ao longo da Jornada são um trunfo para a Igreja Católica recuperar o terreno perdido:

– O papa Francisco transmite, tanto nos gestos quanto no discurso, o calor humano que a Igreja deve ter no encontro das pessoas. Ele falou em promover a cultura do encontro, de a Igreja não ser ensimesmada, auto-referencial, para falar das periferias da existência: os pobres, os que sofrem, os que vivem em conflitos das mais diversas naturezas.

Reforma administrativa não deve esbarrar em doutrinas, afirmam analistas

Durante a Jornada Mundial da Juventude, o papa criticou clérigos e cristãos “incoerentes” e falou da corrupção nas instituições políticas. Não foi a primeira vez que fez críticas públicas a sua igreja. Especialistas apontam como uma das prioridades do início do pontificado de Francisco a reforma da Cúria, o corpo administrativo da Igreja. O primeiro passo foi a criação, em abril, de uma comissão formada por oito cardeais de cinco continentes para aconselhá-lo. A primeira reunião será em outubro. Na semana passada, o Vaticano anunciou outra comissão: para reformar as estruturas administrativa e econômica.

A colegialidade, isto é, delegar mais funções, é vista por Luiz Paulo Horta como tendência à administração da Igreja no pontificado de Francisco. "O papa, sozinho, pode fazer pouca coisa".

– Deve haver reforma administrativa para pessoas competentes ocuparem os lugares certos. A Igreja tem que ser mais bem administrada, pois é uma sociedade mundial e tem problemas de organização. A questão dos padres pedófilos foi, em parte, uma questão de má administração, de lentidão. Mas a Igreja é uma realidade tão universal que o papa, sozinho, pode fazer muito pouca coisa – pondera. 

O silêncio do papa quanto aos homossexuais e aos divorciados, entretanto, gerou dúvidas. As mudanças se limitariam à Cúria, à Secretaria de Estado e ao Banco do Vaticano ou se estenderiam à mentalidade? Para Dom Paulo Cezar Costa (foto), "algumas coisas não podem ser renovadas". Reprodução TV

– Não há oposição entre mudança e tradição. A Tradição da Igreja é a fé, tradição administrativa é com "t" minúsculo. Papa Francisco é um homem da Tradição, não da estrutura de governo tradicional, mas da fé, ele é depositário da moral da Igreja. Não há como desvincular um papa da Tradição. Há coisas que podem ser renovadas, outras não – argumenta.

Assim como Dom Paulo, Horta entende não haver ruptura com a doutrina católica, e sim uma mudança de postura que, ainda assim, acontece lentamente: 

– Doutrina é uma coisa, postura é outra. Em termos de doutrina, não há grandes diferenças entre Ratzinger e Francisco. É uma continuidade. O que o papa disse agora é mais uma questão de tom, de ênfase, do que de substância. Se mudar, vai mudar devagar, não vejo rupturas na doutrina, e sim em termos de comportamento. 

Além da doutrina intacta, Luiz Alberto Gomes de Souza avalia a passagem pelo Rio como um divisor de águas entre um Francisco "ainda mostrando a que vinha" e outro, mais forte depois de Copacabana, para consolidar mudanças na voz e no corpo da Igreja Romana: 

– Quanto à doutrina, creio que ele não deva fazer mudanças, até porque cabe à Igreja discutir tais mudanças. Porém, tenho certeza de que Francisco volta a Roma muito fortalecido para fazer mudanças significativas na estrutura da Igreja, na Cúria Romana. 

"O próximo passo é verificar se a cultura do encontro vai se espalhar pela Igreja"

Jornalista, músico, crítico de música, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras, Luiz Paulo Horta nasceu no Rio em 14 de agosto de 1943. Chegou a estudar Direito, mas abandonou o curso para construir as cinco décadas na imprensa que passaram pelo Correio da Manhã, no início dos anos 1960, pelo Jornal do Brasil, onde trabalhou por 26 anos, de 1964 até 1990, e, por fim, no Globo, onde foi editorialista e crítico de música clássica. Acumulou ainda a coordenação de um grupo de estudos bíblicos do Centro Loyola, da PUC-Rio, cujos resultados virariam aquele que seria seu último livro: A Bíblia: um diário de leitura (2011, Zahar). Àquela altura, já tinha escrito Dicionário Grove de Música(1994, Zahar) e Guia da Música Clássica em CD (1997, Zahar)  Em agosto de 2008, Horta foi eleito para suceder a escritora Zélia Gattai na cadeira 23 da ABL, para ele "um lugar de congraçamento, de amor às letras, de dedicação à nacionalidade através da língua”. O jornalista trabalhava num livro justamente sobre a transição promovida na Igreja por Francisco, o "papa do encontro", como ele definia o sucessor de Bento XVI. Luiz Paulo Horta faleceu aos 69 anos na manhã de sábado, vítima de um infarto. Era casado com a jornalista Ana Cristina Reis e tinha três filhos.

Na quarta-feira passada, dia 31, Horta concedeu entrevista, provavelmente sua última, ao Portal PUC-Rio. Empolgado com o papa Francisco e "a sua postura" (irrigada de carisma) durante a Jornada Mundial da Juventude, Horta observou que o próximo passo do pontífice e da Igreja é fiscalizar se o novo discurso vai se incorporar, em larga escala, a seus representantes. Passo que considerava fundamental para a solução de problemas de "comunicação e acolhimento".

Portal PUC-Rio: Em sua opinião, qual o legado da Jornada Mundial da Juventude, primeira viagem oficial do papa Francisco?

Luiz Paulo Horta: Para mim, além da figura do papa, os grandes acontecimentos foram o grupo de peregrinos que fizeram da cidade uma coisa alegre, colorida. A mudança no discurso foi um marco. João XXIII e Joseph Ratzinger, que teve uma postura importante, foram papas marcantes, mas a mudança de Francisco foi enorme: essa coisa mais simples, aberta. Ele tinha palavras sensíveis para cada um, católicos e não católicos, com uma voz firme e suave ao mesmo tempo. Francisco é o papa do encontro.

Portal: Diante dessa busca da Igreja Católica por uma renovação no discurso, quais os próximos passos depois das mensagens passadas pelo papa Francisco, sobretudo aos mais pobres, na Jornada?

Horta: O próximo passo é verificar até que ponto essa postura do papa se espalha pela Igreja – há integrantes que não têm essa postura – para resolver os problemas de comunicação e acolhimento. As pessoas se sentem distantes porque há um estilo formal. A principal mensagem foi a mudança de postura, um papa próximo das pessoas, que não quer barreiras, humano, aberto. A história dele é de aproximação com as pessoas, ele é o "não sectário". Não fala a grupos, nem mesmo somente à Igreja. É uma coisa que acompanhou ele durante toda sua vida eclesial essa postura de promover a cultura do encontro. É uma novidade, uma coisa boa que deve render bons frutos.

Portal: O senhor avalia que, partir do pontificado de Francisco, a Igreja Católica tende a se aproximar do dia a dia, sendo mais branda com os dogmas e menos teológica?

Horta: Doutrina é uma coisa, postura é outra. Em termos de Doutrina, não há grandes diferenças entre Ratzinger e Francisco, por exemplo. É uma continuidade. O que o papa disse agora é mais uma questão de tom, de ênfase, do que de substância. Se mudar, vai mudar devagar, não vejo rupturas na Doutrina, e sim em termos de comportamento.

Portal: Há previsão de uma grande reforma administrativa na Igreja a partir de novembro, e o papa deve definir alguns cargos importantes. Estas mudanças serão tão progressistas quanto o discurso de Francisco contra políticas econômicas e desigualdades, ou devem ser mais conservadoras?

Horta: "Progressista" e "conservador" são chavões, não acho que a discussão passe por aí. Deve haver reforma administrativa para pessoas competentes ocuparem os lugares certos. A Igreja tem que ser mais bem administrada, pois é uma sociedade mundial, uma organização imensa que tem problemas de organização. A questão dos padres pedófilos foi, em parte, uma questão de má administração, de lentidão no enfrentamento do problema. Mas a Igreja é uma realidade tão universal que o papa, sozinho, pode fazer muito pouca coisa.

Portal: Em abril, uma comissão, formada por oito cardeais de cinco continentes, foi criada para aconselhar o novo papa neste período de mudanças, que passam pela Cúria e a nova administração do Vaticano. Em que o "administrador" Francisco deve diferir do "administrador" Bento XVI?

Horta: Acho que deve acontecer nesse pontificado a ideia da colegialidade, que é delegar mais funções para dar conta dessa organização gigantesca. Reafirmo que o papa, sozinho, pode fazer pouca coisa frente à estrutura ligada à Igreja Católica, principalmente a administração do Banco do Vaticano e a Secretaria de Estado.