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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Cidade

Yvonne Bezerra de Mello lembra seus meninos da Candelária

Helena Soares - Da sala de aula

16/07/2013

 Divulgação

Na madrugada do dia 23 de julho de 1993, oito jovens moradores de rua foram mortos à queima-roupa, sem chance de reagir. Policiais saíram de dois carros com armas em punho, atirando em quem estava dormindo nos arredores da Igreja da Candelária. Assim que os tiros pipocavam, Yvonne Bezerra de Mello recebeu um telefonema que iria mudar sua vida e das crianças que ela passaria a atender dali em diante.

Tia Yvonne, como era chamada pelas crianças e adolescentes que frequentavam sua “escola sem portas nem janelas”, foi a primeira a chegar à cena do crime, após a ligação do menino Bocão, de 9 anos. Com medo de que algo acontecesse aos seus meninos – eram 72 ao todo na Candelária –, deixava sempre três fichas de telefone para serem usadas caso houvesse algum problema. Não faltavam motivos para preocupação:

– Antes da chacina, eu tinha ido várias vezes à prefeitura falar sobre a situação deles. Pedi várias vezes, mas ninguém me ouviu. A culpa é do governo, eu culpo todos eles. Foi uma omissão, porque foram avisados. Foi uma chacina anunciada; eu avisei à prefeitura que esses meninos iriam morrer.

Com a chacina, Yvonne acolheu os sobreviventes e percebeu que aquele método de ensino precisava ser incrementado. Essa foi a semente do Projeto Uerê (foto), que ela mantêm desde então. Após passar por vários quartinhos, e dificuldades, hoje ela tem uma escola bem montada que atende 430 crianças com problemas cognitivos referentes à violência. Em 2000 nasceu a pedagogia Uerê-Mello, que atende 200 mil crianças pelo país e é política pública no Rio de Janeiro, onde Yvonne trabalha nas escolas com os piores índices no Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico, o Ideb.

Um dos objetivos do projeto é o trabalho de prevenção às drogas, situação que piorou, principalmente com a chegada do crack. Yvonne acredita que a chacina da Candelária ocorreu por causa de uma dívida do tráfico de drogas. O grupo era de crianças pequenas, mas havia quatro maiores de 16 anos. O mais velho traficaria, segundo ela, pegava cocaína na favela, escondia a droga dentro do chafariz na frente da Candelária e revendia a um policial corrupto que atuava no local. Com o tempo, o jovem adquiriu a dívida.

A sociedade foi a favor dos culpados. Porque aquilo ali era ralé, eram meninos que roubavam. Então foi visto como um favor. Fui execrada na época, falavam que eu educava bandidos. De uns anos para cá é que a situação vem melhorando – afirma, lembrando que, na época, em pesquisa realizada por uma rádio, a maior parte das pessoas entrevistadas declarou-se a favor da eliminação dos meninos.

Dos 72 meninos e meninas de que cuidava na Candelária, Yvonne só tem conhecimento de uma menina viva, que está em um hospício. Acredita que quase todos morreram.

Condenados estão em liberdade

Dos seis policiais militares julgados pela chacina, três foram absolvidos. Em novembro de 1996, três anos depois do crime, o PM Nelson Cunha foi condenado a 261 anos de prisão em um julgamento que durou 19 horas. Atualmente, ele está em liberdade condicional, segundo o Tribunal de Justiça do Rio. O PM Marcus Vinícius Borges Emmanuel foi condenado a uma pena de 300 anos, em 2003. Porém, obteve o benefício do indulto (extinção da punibilidade) em 29 de junho de 2012, e foi o último dos condenados a ser libertado. O último acusado a ser julgado, Marcos Aurélio de Alcântara, foi condenado a 204 anos de prisão, mas também já está em liberdade.

Este ano, um dos acusados, inocentado no julgamento, conseguiu indenização de R$ 50 mil por danos morais da Rede Globo, por menção a seu nome no programa Linha Direta, por danos à honra. Em recurso especial julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ele teve reconhecido o direito ao esquecimento. Foi a primeira vez que uma corte superior discutiu o tema no país.

Sociedade e chacina

Para o professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio e autor do livro Cidade Cerzida, Adair Leonel Rocha, chacinas com moradores de rua não mobilizam a população. Segundo ele, as chacinas são uma banalização da vida, algo que ocorre no cotidiano na medida em que grande parte da população não tem acesso ao poder público e a tudo que tem direito.

– A chacina é uma das formas de destruição e aniquilamento. A visão geral da população é que as pessoas que trazem riscos devem ser aniquiladas, então a chacina da Candelária foi vista como algo bom, como uma limpeza necessária.

Rocha alerta que as chacinas ainda acontecem, principalmente dentro das favelas e em comunidades empobrecidas. Segundo ele, os mortos acabam virando só um número. Ele ainda aponta a lógica da escravidão como uma explicação para esse pensamento, já que a matança é vista como uma coisa natural e a própria população empobrecida aceitaria essa ideia de que é menos importante do que as classes dominantes. E propõe: “O avanço do processo democrático da cidadania aumenta a visão crítica e questiona esses valores estabelecidos”.

Movimento Candelária

  ReproduçãoTodos os anos, sempre na data da chacina, o Movimento Candelária realiza um ato público em defesa da vida das crianças e jovens que sofrem com a violência policial. Neste ano, a realização foi antecipada para esta sexta, 19 de julho, por causa da Jornada Mundial da Juventude.

O Movimento Candelária é constituído por várias organizações de defesa da criança, do adolescente e dos Direitos Humanos, entre elas a Rede Rio Criança – que trabalha com menores em situação de risco – e o Movimento Moleque, que auxilia mães de jovens em conflito com a lei. Outra organização que faz parte do movimento é a B’nai B’rith, entidade judaica de direitos humanos, que conta com Patricia Tolmasquim no Movimento Candelária.

Patricia conta que o movimento foi criado com curta expectativa de duração. Acabou completando 20 anos, devido a novos casos:

Infelizmente esse movimento aumentou, porque houve várias chacinas posteriores (Acari, Vigário Geral, Baixada). Temos até as mães da escola de Realengo. É um movimento grande, que envolve até a Pastoral de Favelas. As chacinas acontecem, e infelizmente acontecem muito. Tivemos a adesão até das Mães de Maio, de São Paulo, que vêm para a Caminhada, e de grupos de fora do Rio.

O Ato Público começa com uma missa na Igreja da Candelária. Depois, há um ato inter-religioso com a Bênção dos Filhos, proveniente do judaísmo. Em seguida parte a caminhada até a Cinelândia. Lá, grupos de jovens e crianças fazem apresentações culturais, onde sua voz é ouvida. Outro momento do ato é a vigília em apoio às mães, que muitas vezes passavam mal durante a caminhada, ao ver fotos dos filhos. A vigília sempre se realiza na noite anterior ao Ato Público, mas, devido à Jornada Mundial da Juventude, neste ano ela acontecerá no mesmo dia.

A principal testemunha

Wagner dos Santos não era um dos meninos da Tia Yvonne, mas ocasionalmente estava na Candelária. Ele foi a principal testemunha do julgamento que condenou os três policiais militares. Wagner contou que foi levado de carro pelos homens e só sobreviveu porque se fingiu de morto. Em 12 de setembro de 1994, ele sofreu um segundo atentado na Central do Brasil, no qual levou quatro tiros e sobreviveu. Após esse caso, Wagner foi inserido no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas e mudou-se para a Suíça, vindo ao Brasil para participar do julgamento dos acusados.

O governo da Suíça concedeu a Wagner o direito de residir no país. Ele acabou optando por morar lá para garantir sua segurança. Após dois atentados, ele sofre com sequelas dos oito tiros que levou. Segundo Patrícia Oliveira, irmã de Wagner, em depoimentos na época, ele perdeu coordenação motora, boa parte da visão dos dois olhos e a audição em um dos ouvidos, o que o tornou incapaz para o trabalho; além de problemas psicológicos. Outra sequela que afeta Wagner é a intoxicação por chumbo, devido a uma bala alojada na medula da qual se desprendem partículas do metal.

Sandro e o ônibus 174

Outro sobrevivente da chacina foi Sandro Barbosa do Nascimento, o sequestrador do ônibus 174. O caso aconteceu em 2000, sete anos após a Candelária. O sequestro durou 4 horas e foi transmitido em tempo real pela TV.

Quando Sandro decidiu sair do ônibus usando a professora Geisa Firmo Gonçalves como escudo, após ter libertado os outros reféns, um policial do Bope, Marcelo Oliveira dos Santos, atirou nele, mas errou. O disparo acertou o queixo de Geisa e imediatamente Sandro reagiu com três tiros, que causaram a morte da refém. Depois, Sandro foi imobilizado e conduzido a uma viatura da polícia, e dentro do veículo morreu por asfixia.

Os policiais responsáveis pela operação alegaram que morte dele foi acidental. Levados a julgamento por assassinato, foram declarados inocentes. Uma investigação concluiu que dos quatro tiros que Geisa sofreu, o primeiro foi disparado pelo policial Marcelo Oliveira dos Santos, e os outros por Sandro.

Sandro era um dos meninos próximos a Yvonne. Ela conta que ele chegou à Candelária com 9 anos, e como era habitual entre os meninos, uma semana depois de chegar já estava cheirando cola. A mãe morreu assassinada na frente de Sandro, e ele não conheceu o pai. Foi parar na rua porque não se deu bem com os tios com quem foi morar em São Gonçalo.

Para Yvonne, ele é um caso típico de menino de rua: precisava de um atendimento depois que a mãe morreu e da ação da escola, já que tinha sofrido um trauma. Porém, nada aconteceu e ele não recebeu a atenção que merecia:

– E é assim que acontece o fenômeno meninos de rua, todos eles foram abandonados. Vão para a rua porque num dado momento da sua vida, quando precisou de algum apoio, não teve nenhum.

Yvonne relata que Sandro entrou em contato com ela cerca de três semanas antes do sequestro, mas ele já estava muito deteriorado pelo vício das drogas. Testemunhas relatam que durante o sequestro, Sandro chamou por Tia Yvonne, mas infelizmente nesse caso ela não pôde ajudar.

* Reportagem produzida para a disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso, da professora Itala Maduell.