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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


Cidade

Duas décadas depois, os reflexos da chacina de Vigário Geral

Amanda Weaver, Camille Rodrigues, Catarina Dorighetto, Juliana Almeida e Raissa Guida* - Da sala de aula

29/07/2013

 Arquivo

Vinte anos se passaram. Dos 52 policiais acusados, apenas sete foram presos. A chacina de Vigário Geral deixou 21 mortos e manchou a história da polícia brasileira. As famílias estão sem indenização até hoje. Apesar do sentimento de impunidade, alguns moradores não têm mais revolta, como é o caso de Iracilda Toledo, 56 anos, presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vigário Geral e uma das nove viúvas da tragédia.

– Não guardo revolta, a justiça foi feita. Apesar de nem todos terem sido presos, todos perderam a farda. Eles estão manchados perante a sociedade –  afirma Iracilda.

No dia 29 de agosto de 1993, os “cavalos corredores”, como eram chamados os assassinos, entraram encapuzados na Favela de Vigário Geral e mataram a esmo 21 moradores. Entre as vítimas, oito pessoas da mesma família. A ação foi em represália a outra chacina: 24 horas antes, um grupo de traficantes fuzilou quatro PMs na Praça Catolé do Rocha, boca de fumo da comunidade. Os “cavalos corredores” eram do 9º Batalhão, comandado na época pelo coronel Emir Laranjeira, e formavam um grupo de extermínio que deu origem às milícias.

Em homenagem às vítimas da chacina, os moradores da comunidade somaram esforços para relatar a história em um filme. O lançamento está previsto para 2014. Mas a data redonda dos 20 anos não será desperdiçada. Em agosto, haverá uma passeata para relembrar o que aconteceu em 1993, não só em Vigário Geral, mas também na Candelária (leia, aqui, reportagem sobre os 20 anos da chacina).

Após a chacina, Iracilda Toledo mudou-se com a família para o interior. Mas, toda semana, viajava para acompanhar os julgamentos dos “cavalos corredores”. Onze anos depois, voltou para o Rio, mas não revela onde mora. A presidente da Associação de Vítimas e Familiares foi a única pessoa que conseguiu indenização do governo pela tragédia, em 2006.

Seu sogro foi presidente da associação de moradores da comunidade, o que a motivou a tomar uma iniciativa: além de acompanhar os julgamentos, entrou em contato com a ONU e a Anistia Internacional.

–  Desde a morte do meu marido, comecei a ler de forma obsessiva livros de direito, a entender tudo de Código Penal. Assim, aprendi a exigir meus direitos e pude dar suporte a outras famílias de vítimas. Hoje, tem advogado que liga para mim pedindo informação –  conta.

Adalberto de Souza, o marido de Iracilda, era ferroviário. Os dois tinham três filhos pequenos. Ele estava em um bar próximo de casa, comemorando a vitória do Brasil numa partida. Dentro do bar, sete pessoas morreram e duas ficaram feridas: “Os policiais entraram e balearam todo mundo. Adalberto tomou um tiro na cabeça e morreu na hora”, lembra.

Nove anos depois da chacina, Iracilda também perdeu uma filha, assassinada pelo namorado. Os outros filhos têm nível superior e trabalham. Orgulhosa de quem se tornou, sempre que pode ela volta à comunidade. “Aprendi muito com o que aconteceu. Era egoísta, mas hoje me sensibilizo pela causa dos outros. As pessoas só vão à luta quando sofrem”, diz.

Maria dos Anjos, 61 anos, também é uma das viúvas de Vigário. Paulo Roberto dos Santos era motorista de ônibus e foi assassinado aos 44 anos, no mesmo bar. A perda de Paulo, com quem era casada havia 16 anos, modificou sua rotina. Além de passar e lavar roupa para a vizinhança, a dona de casa contou com o apoio psicológico e financeiro de outros moradores para sustentar a única filha, na época com 13 anos.

–  Os vizinhos me ajudavam com alimentação e roupas. Nós, parentes das vítimas, nos unimos muito e formamos uma nova família –  conta Maria, que há cerca de quatro anos conseguiu pensão pela morte do marido: –  Mas não é pelo assassinato, é porque ele contribuía para o governo – esclarece.

Para Iracilda Toledo, a maior conquista dos moradores de Vigário Geral foi romper o silêncio.

–  Na época, as pessoas eram assassinadas e os parentes não iam à delegacia registrar queixa, porque tinham medo. Quando surgiu o programa Linha Direta, da Globo, eu denunciei os policiais, e isso contribuiu muito para que eles fossem detidos. Hoje, os moradores percebem que o silêncio é conivente com a violência –  explica.

Apesar do esforço, ela acredita que os sete PMs presos pelo episódio já estejam em liberdade: “Tudo muda, menos o Código Penal brasileiro. Eles devem estar soltos, porque só cumprem um sexto da pena. Não importa quantas pessoas matem, só respondem por um crime: assassinato”, diz indignada.

Iracilda não guarda rancor e diz ter boa relação com os policiais “que são honestos”, pondera. Apenas um PM envolvido na chacina pediu perdão a ela. “Mas não tenho este dom divino”, admite. Outro policial a adicionou recentemente em uma rede social, mas ela não aceitou.

Maria dos Anjos, que se manteve só e se orgulha da filha, professora de matemática formada pela Uerj, deseja sair da comunidade – o que ainda não fez por falta de condição financeira. Mas não sente medo de morar lá: “A violência está presente em todo lugar, não só dentro da comunidade”, analisa ela, que ainda hoje se emociona ao falar sobre o assunto. Diz que a chacina a tornou uma pessoa mais ativa e sensível ao sofrimento do outro.

Presidente da Associação dos Moradores de Vigário Geral (Amavig), João Ricardo de Mattos, 49 anos, reclama que os moradores de Vigário passam dificuldades e não recebem serviços públicos de qualidade:

Arquivo Portal  – Não temos posto de saúde, e a associação ajuda os moradores na luta por serviços públicos, como água, luz e esgoto. O que existe aqui é o Afro Reggae, projeto privado que é controlado por uma minoria de jovens. ONGs como a Casa da Paz estão presentes só para a mídia, porque não têm efetividade para nós – diz.

Para Mattos, a chacina reflete um antigo conflito entre traficantes e policiais, e o temor da violência é constante na região:

– Vigário Geral não tem UPP; o tráfico de drogas continua. Aqui dentro, a gente não tem direito a nada – relata, acrescentando: – Para esse quadro mudar, é preciso educação. Mas as escolas primárias daqui são as mesmas há 50 anos, e não temos escolas secundárias ou cursos profissionalizantes. Já no entorno, as indústrias e empresas só crescem e têm cada vez mais dinheiro, apoiadas pelo governo e seus interesses.

* Reportagem produzida para a disciplina Redação em Jornalismo Impresso do professor Chico Otávio.

Leia também: Yvonne Bezerra de Mello lembra seus meninos da Candelária, 20 anos depois da chacina.