Ricardo Ismael*
19/06/2013Nota do editor: Enquanto a seleção tenta recuparar a alma e as conquistas; a luta por terra retrata o secular abismo entre interesses ruralistas e direitos indígenas; enquanto a inflação ressurge resistente sob variadas feições, do tomate às tarifas públicas, a voz das ruas acorda para expor uma insatisfação com o andar da carruagem política. Deflagrada pelo aumento das passagens de ônibus, a onda de protestos pelo país impõe reflexões mais complexas do que sugerem sua natuteza horizontal e apartidária, derivada das redes sociais, e os protocolares reconhecimentos à legitimidade das manifestações – descontados, claro, os espasmos de violência produzidos por uma minoria radical. Para tentar compreender melhor um fenômeno cuja dimensão história ainda carece de tempo, o Portal publica uma série de reportagens e artigos.
No texto abaixo, o cientista político e professor da PUC-Rio Ricardo Ismael avalia que, depurados os excessos e a pauta de reivindicações difusa, os manifestantes cobram uma "democracia e um sistema político mais ágeis e eficientes", que gastem melhor o dinheiro. "É evidente que a vida vai retomar à normalidade, mas se abriu a tampa da panela de pressão", compara.
Ricardo Ismael*
O ponto de convergência do processo social que culminou nas manifestações por todo o país é a reação ao aumento do preço do transporte – ao invés de acontecer em janeiro, como ocorre tradicionalmente, a mudança aconteceu agora, no meio do ano e em pleno período letivo. Tinha-se o conhecimento de apenas um movimento social que lutava por melhores condições no transporte da cidade, o Movimento Passe Livre (MPL), em São Paulo, que logo se colocou contra esse aumento nas passagens e estimulou a criação de outros grupos.
Outro ingrediente que ampliou o movimento e fez com que ele tomasse outra dimensão foi a repressão policial que aconteceu em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Até mesmo estudantes que não estavam diretamente envolvidos nas manifestações se engajaram nos protestos em solidariedade aos colegas agredidos. Trata-se, portanto, de uma reação de estudantes independente de legendas políticas: em cada capital ou região metropolitana que aumentou as passagens, os prefeitos são de partidos diferentes. O movimento é contrário ao aumento das passagens, e não ao prefeito Haddad, do PT, ou ao prefeito Eduardo Paes, do PMDB. Este é um dos méritos destas manifestações, porque à medida que um movimento como esse se partidariza, ou deixa que os partidos o abracem, cria-se uma certa dificuldade para a sua consolidação. Afastado das siglas, o manifesto não foi interpelado por questões como "estão protestando contra as passagens ou pra fortalecer a oposição?" e pôde ser ampliado.
Há, sim, uma crítica aos partidos tradicionais pela sua falta de respostas às demandas sociais por transporte, educação e saúde públicos e de qualidade. Os protestos acenderam um sinal amarelo nestes partidos, que começam a se preocupar com a renovação do sistema partidário e o crescimento de legendas como PSOL e Rede, da presidenciável Marina Silva, neste vácuo político. As manifestações não significam que haja alheamento completo dos estudantes às siglas, mas a conexão entre partidos políticos e movimento social merece maior reflexão. Perdeu-se, por exemplo, a tradição dos partidos de esquerda da participação dos jovens na indicação de candidatos.
É necessário, por parte de quem está no poder, o esforço de entender a convergência nas manifestações de rua e encaixá-la na agenda. Não há liderança, não se trata de algo que vem de cima pra baixo. Tal horizontalidade faz necessária a identificação desta "causa principal": o preço das passagens, em que os prefeitos devem manter o foco pelo bem das negociações. Não se pode tender à subjetividade fragmentária de cada um, apesar da beleza observada na Avenida Rio Branco em função da variedade cartazes e pedidos da massa. Os manifestantes podem gritar contra a PEC 37, a saúde, a educação e os estádios da Copa do Mundo, mas o ponto de convergência, que conferiu coesão ao movimento, é o ser contra o aumento das passagens.
Quanto aos governos estaduais, houve mudança na postura dos governadores em relação aos estudantes. Em uma semana, a repressão e a Tropa de Choque foram retiradas, suspensas. Isso fez com que aqueles que vão tentar a reeleição, ou estão apoiando certos candidatos, como Alckmin e Sérgio Cabral, se desgastassem menos frente a um eleitorado que apoiou os protestos.
Já na esfera federal, a repercussão deve fazer com que o governo não aumente a taxa de juros que frearia o crescimento, muito menos faça um corte de gastos fiscais que comprometam investimentos sociais, as principais demandas das ruas.
O possível desdobramento eleitoral no plano estadual é o fortalecimento dos partidos de oposição tanto no Rio quanto em São Paulo, enquanto nas presidenciais deve haver mais dificuldade à reeleição de Dilma Rousseff em primeiro turno.
Nesta quinta-feira haverá uma manifestação ainda maior que a de segunda, de pessoas que querem participar desse processo histórico. É preciso que os protestos tenham tempo. Logo as pessoas não vão protestar todos os dias, elas têm coisas a fazer. É evidente que a vida vai retomar à normalidade, mas nesse momento se abriu a tampa da panela de pressão. Não vejo nos manifestantes busca por inviabilizar a democracia representativa. Eles querem que esta democracia e o sistema político possam responder às demandas sociais de maneira mais ágil e eficiente, gastem melhor o dinheiro e não se limitem apenas ao discurso de campanha.
* Professor de Ciência Política da PUC-Rio
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