Às vésperas de receber a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, o Rio de Janeiro vive uma fase de grandes intervenções urbanas, com a abertura de vias, expansão da rede de transporte e remoções de moradias para abrir caminho para as máquinas. Segundo o Comitê Popular Rio Copa & Olimpíadas, mais de 7 mil famílias em 24 comunidades cariocas devem ser removidas de suas casas até 2016. Desde 2009, 19.220 famílias cariocas foram reassentadas pela prefeitura, a grande maioria (18.428) por viver em áreas de risco.
Considerada oficialmente a primeira favela do país, a do Morro da Providência, no Centro, nasceu de uma remoção: inconformados com a demolição de um cortiço, em 1893, seus moradores utilizaram os restos da construção para erguer barracos improvisados no morro. Quatros anos depois, chegaram soldados que combateram na Guerra de Canudos, à espera de morada na então capital federal, promessa nunca cumprida pelo governo.
Hoje, a Providência vive um momento delicado entre o desenvolvimento da Zona Portuária – fica entre a Central do Brasil e a Cidade do Samba – e a desapropriação. Segundo dados do Fórum Comunitário do Porto, 832 casas (cerca de um terço do total) foram marcadas para demolição. Dessas, 140 já foram destruídas. De acordo o site da Secretaria Municipal de Habitação, as obras no morro vão beneficiar 5.500 moradores e 1.720 residências. Em documentos da prefeitura, das casas desapropriadas, 515 têm como justificativa estarem em áreas de risco.
A definição de áreas de risco, porém, tem sido criticada por especialistas, como o engenheiro Maurício Campos dos Santos e o arquiteto Marcos de Faria Asevedo, que produziram um documento questionando alguns casos de remoção na Providência. Em um dos trechos, os autores questionam as modificações da prefeitura: “Pode-se concluir, assim, que inexiste justificativa para a ‘realocação’ de 351 domicílios em função de ‘risco’ e para a não inclusão da comunidade no projeto de urbanização. Faz-se necessária a realização de um estudo mais detalhado que permita aferir a real situação de risco, estudo esse que deve incluir propostas para a eliminação dos eventuais fatores de risco que vierem a ser identificados, a serem incorporadas em um futuro projeto de urbanização da comunidade”.
Professor do Departamento de História da PUC-Rio, doutor em História Social e pesquisador de temas como reformas urbanas e habitação popular, o historiador Romulo Mattos registra também a realização de remoções sem razão justificável:
– A definição de áreas de risco tem sido fortemente contestada por especialistas que visitam o Morro da Providência e outros morros. E a insistência em botar abaixo a Vila Autódromo (na Zona Oeste) não encontra correspondência no projeto do Parque Olímpico.
Na Vila Autódromo, 600 famílias serão reassentadas para a construção do acesso a um terminal de integração do BRT (ônibus articulado de alta capacidade), no entroncamento das linhas Transcarioca (Barra-Aeroporto Internacional) e Transolímpica (Barra-Deodoro). O terreno restante será utilizado, durante as Olimpíadas, como área operacional do Centro Internacional de Transmissão (IBC) e do Centro de Mídia (MPC), que fazem parte do Parque Olímpico. A prefeitura considera que esta é única obra para os Jogos Olímpicos que exigirá reassentamento.
Segundo o Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, divulgado em 2012 pelo Comitê Popular Rio Copa & Olimpíadas, 24 comunidades de todas as regiões da cidade serão afetadas por diversos tipos de obras – revitalização da Zona Portuária, ampliação da linha do BRT Transoeste, novos acessos aos estádios do Maracanã e Engenhão, construção de instalações esportivas e instalação de teleféricos em comunidades (veja a lista de áreas afetadas, número de famílias e obras em andamento). Pelas contas do comitê, 7.185 mil famílias serão retiradas de suas casas, muitas das quais, segundo o dossiê, não receberam as indenizações corretas ou foram coagidas.
Marcelo Burgos, doutor em Sociologia pela UFRJ e professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio com pesquisas sobre sociologia urbana, territórios segregados e periféricos, faz críticas ao modelo de reurbanização da cidade:
– Vejo uma intervenção profunda na estrutura urbana do Rio, inclusive com a criação de uma nova centralidade na dinâmica da cidade. O projeto do Porto Maravilha, por exemplo, era uma janela para tentar configurar uma cidade menos desigual, oferecendo habitações populares; mas o caminho tomado é outro, basicamente o de fazer daquela região um novo centro de negócios. Alteraram profundamente o projeto. É uma intervenção que redefine a geografia do Rio de Janeiro, de maneira que tende a tornar nosso território mais desigual.
Presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável e de Governança Metropolitana do Rio e ex-presidente do Instituto Pereira Passos, o economista Sérgio Besserman Vianna defende os reassentamentos, alegando os benefícios que trazem a toda à sociedade. Mas defende que toda intervenção seja discutida com a população:
– Em áreas de risco, o Estado tem que estudar, trabalhar, resolver e, quando necessário, reassentar mesmo. A Rocinha, por exemplo, merece um teleférico ou plano inclinado, mas o primeiro é caro e exige a remoção de uma enorme quantidade de casas. A segunda opção também envolve a remoção, porém em número menor. Ter um plano inclinado é interesse de toda a população do local, e justifica, sim, que famílias sejam reassentadas, até na própria favela, de preferência. Mas tem que haver um debate público, para que fique claro que está sendo feito em benefício maior da cidade, e especialmente da população pobre.
Como as ocupações em favelas foram feitas de maneira informal, sem documentação, por exemplo, as negociações ficam ainda mais difíceis. O defensor público Thiago Basílio, do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria, explica que, para a prefeitura ter a propriedade do imóvel, pode ocorrer a negociação direta com os moradores ou uma desapropriação formal, por meio de processo judicial.
– Na Providência, entramos com uma ação cautelar alegando que houve coação por parte da prefeitura para que os moradores saíssem. Uma liminar proibiu qualquer coação ou negociação individual. O município recorreu dessa decisão e houve uma audiência do desembargador com todas as partes, e o então secretário Jorge Bittar afirmou que “não haveria mais remoções compulsórias” – exemplifica Basílio, acrescentando que a prefeitura faz acordos não em grupo, mas individualmente, e que os que não concordam com os termos ou valores do acordo têm que aguardar um demorado processo de desapropriação formal.
Além disso, o defensor observa que o reassentamento longe do local de origem é prática comum. Pessoas que moravam do Centro ou na Zona Sul têm que se mudar para Campo Grande ou Santa Cruz, na Zona Oeste, perdendo horas no trânsito a caminho do trabalho e dependendo de transporte público deficiente: “A Lei Orgânica do Município determina que, nesses casos, tem que reassentar em local próximo, mas não diz o que é local próximo”. (na foto, registro de protesto no Palácio Laranjeiras)
A assessoria da Secretaria Municipal de Habitação alega que os reassentamentos necessários na Providência (por risco ou por obras) serão efetuados na própria comunidade ou em pequenos condomínios em torno do morro. Em relação às negociações, a secretaria afirma que realizou 20 assembleias com os moradores da Providência para apresentação do projeto e que, para as famílias que não aceitaram as opções da prefeitura (imóvel no programa federal Minha Casa, Minha Vida, compra assistida ou indenização por benfeitorias), estão sendo realizadas negociações individuais.
História do Rio caminha junto às remoções
Sérgio Besserman ressalta que o crescimento irregular em favelas e outros locais da cidade está ligado à ausência do governo. “Foram décadas de omissão do Estado brasileiro em relação à política habitacional, e as pessoas resolveram o problema: o povo que se vire, e o povo se virou”, afirma.
O historiador Romulo Mattos lembra que as remoções sempre acompanharam as favelas:
– Incêndios criminosos em favelas, para forçar a saída de seus habitantes, ocorrem desde a Primeira República. Os moradores do Morro de Santo Antônio, no Centro, por exemplo, foram vítimas desse expediente em 1916. Isso ocorreu porque os moradores resistiam fortemente às ordens de despejo.
No último século, um dos mais ruidosos casos de remoção foi o da Favela da Praia do Pinto, no Leblon, um dos bairros mais nobres da cidade. A remoção dos quase 20 mil moradores já era planejada desde o fim da década de 50, quando Carlos Lacerda era o governador do Estado da Guanabara. Mas, por forte resistência dos moradores, só foi ocorrer após um grande incêndio, em 1969, durante o governo Negrão de Lima.
A favela deu lugar ao condomínio Selva de Pedra, nome inspirado em uma novela da Rede Globo. Os habitantes da Praia do Pinto foram abrigados perto dali, no conjunto habitacional da Cruzada São Sebastião, inaugurado em 1962, com o apoio de Dom Helder Câmara. O bispo auxiliar do Rio na época era um dos maiores defensores do projeto que teve a Cruzada como modelo: urbanizar todas as favelas da cidade em um período de 12 anos, buscando manter os moradores perto de suas antigas casas, situação até hoje incomum em casos de remoções.
O conjunto de prédios populares da Cruzada fica em uma das áreas mais nobres do bairro e é uma das poucas comunidades que resistiram a novas remoções. O Shopping Leblon, erguido na área vizinha, tentou comprar o terreno, sem sucesso. Uma parceria garantiu a pintura dos blocos e emprego para parte dos moradores. Na década de 60, comunidades de outros bairros nobres, como Lagoa e Copacabana, foram removidas para valorizar essas áreas, onde foram construídas residências de classe alta. Os moradores acabaram indo para locais mais afastados, longe do trabalho e da vizinhança. A Zona Oeste, onde foi criado o conjunto habitacional Cidade de Deus para receber os removidos da Zona Sul, era o principal destino. O sociólogo Marcelo Burgos avalia que houve avanços na negociação para remoção, com mais ganhos para os desalojados.
– Nos anos 60, as remoções eram feitas de maneiras muito mais violentas. É uma memória muito traumática, que acaba pressionando as negociações. Por outro lado, obriga que essas negociações se deem de uma forma mais justa, com mais direitos. Hoje há mais controle, visibilidade. O poder público acaba ficando mais limitado – comenta.
Relatório da ONU: megaeventos prejudicam moradores das sedes
As remoções são uma prática comum em cidades que recebem megaeventos, seja em países em desenvolvimento, como China e África do Sul, ou nos mais desenvolvidos, como Estados Unidos e Espanha, por exemplo.
Na China, a questão das remoções foi uma das mais graves, e apesar do governo tentar ao máximo esconder o “outro lado” das modificações para as Olimpíadas, algumas denúncias foram feitas. Segundo o jornalista Gilberto Scofield, editor de Rio de O Globo e ex-correspondente do jornal na China nos anos que antecederam aos Jogos, os números não são muito confiáveis, mas, perto das competições, falava-se em 3 milhões de removidos devido às obras de urbanização, como parques, novas avenidas, novas estações de metrô e obras de estádios.
Os impactos não são restritos aos países em desenvolvimento. Segundo relatório da ONU sobre o impacto de megaeventos esportivos sobre a vida das pessoas nas cidades-sedes, nas Olimpíadas de 1996, em Atlanta, nos Estados Unidos, aproximadamente 15 mil moradores de baixa renda foram expulsos de suas casas. Além disso, pouco mais de mil unidades de habitação para famílias pobres foram removidas por causa dos Jogos.
O problema não é exclusivamente a remoção de casas ou famílias, mas também a alta especulação imobiliária em determinadas regiões. É o caso de Barcelona, na Espanha, que sediou as Olimpíadas de 1992. Além de 200 famílias terem sido despejadas devido às obras, a especulação imobiliária ao redor do centro olímpico elevou em 131% o preço dos imóveis. Em 2012 a história se repetiu em Londres, quando imóveis perto do centro olímpico sofreram valorização de 3%, enquanto no restante da cidade os valores caíram 0,2%.
Talvez tenha sido em Seul, Coreia do Sul, a pior experiência em relação às remoções. Segundo o mesmo relatório da ONU, 15% da população foi removida de suas casas e 48 mil edifícios demolidos devido aos Jogos Olímpicos de 1988. Para piorar, os apartamentos e terrenos na capital sul-coreana sofreram um aumento de mais de 20% em seu valor devido à especulação imobiliária.
“Maior legado deixado pelo Pan foi a Olimpíada”, comenta sociólogo
Além dos 30 dias de jogos e diversão para a população, o grande objetivo dos megaeventos, principalmente os Jogos Olímpicos, é deixar um legado ao país e, principalmente, à cidade-sede. Melhorias no transporte e na infraestrutura são as mais importantes. Mas levantam-se dúvidas de até que ponto valem as remoções e outras modificações profundas na cidade.
Segundo Scofield, na China, por mais que as mudanças tenham sido feitas, na maioria das vezes, de forma compulsória e com negociações não tão justas, a qualidade de vida dos chineses melhorou, especialmente na capital.
– Pequim ficou muito melhor por causa das Olimpíadas. A cidade não tinha estádio, as fábricas poluíam, construíram quatro linhas novas de metrô com dezenas de estações, plantaram 28 milhões de mudas de árvores, quilômetros de estradas, construíram um aeroporto internacional novo em folha, por exemplo – comenta.
Outro ponto são os “elefantes-brancos”, construções de grandes proporções e orçamentos que acabam abandonadas após o período dos Jogos. No Rio, é viva a lembrança do fracasso do legado dos Jogos Pan-Americanos de 2007. O Parque Aquático Maria Lenk, construído na Barra da Tijuca, não é utilizado nem para a competição que leva seu nome. O Velódromo Municipal, inaugurado em 2007, não atende aos padrões olímpicos e será demolido para a construção do Parque Olímpico.
Com pouco menos de cinco anos, o Estádio Olímpico João Havelange, uma das poucas construções utilizadas pelos cariocas em partida de futebol, apresentou falhas na estrutura e foi fechado em março deste ano. Além disso, o Engenhão, que tinha orçamento previsto de R$ 60 milhões, acabou custando aos cofres públicos R$ 380 milhões, segundo dados da Secretaria de Obras da Prefeitura.
Obra que o município investiu cerca de R$ 12 milhões, o Velódromo Municipal não será utilizado em 2016, por estar fora dos padrões olímpicos. O Maria Lenk, que custou R$ 85 milhões ao Governo Federal e a prefeitura, é outro elefante-branco no Rio que não será usado nas Olimpíadas devido à pequena capacidade, 6.500 lugares, bem abaixo do exigido pelo COI. Para Burgos, o maior legado do Pan foi a preparação de terreno para as Olimpíadas.
– O Pan de 2007 trouxe um enorme prejuízo financeiro ao Rio, mas de certa maneira estava articulado com a criação de um cenário favorável para a realização dos Jogos Olímpicos; pode-se dizer que o maior legado deixado pelo Pan foi a Olimpíada. Ou seja, demonstrou que a cidade estava preparada para servir àquele propósito, tudo correu muito bem naquele período, as coisas funcionaram. O Brasil e o Rio têm capacidade de organizar estes eventos. A pergunta é: em que medida eles deixaram um legado para a população?
Após as Olímpiadas de 2016, o historiador Romulo Mattos acredita que o maior legado será a criação de uma “cidade-empresa”:
– Todas essas mudanças operadas nas leis, que vêm fazendo da exceção a regra na cidade, criam condições muito favoráveis para a atuação de interesses empresariais no Rio de Janeiro, muitas vezes em detrimento da qualidade de vida e das tradições dos cariocas. Por essa razão, vem sendo cada vez mais comum no debate sobre tal modelo de gestão urbana o emprego de termos como “cidade-empresa”, ou mesmo referências à construção de uma cidade para o capital. Esse parece ser o principal legado.
Comunidade da Vila Autódromo vive o drama da remoção
Legado olímpico exige mais atenção social, alertam analistas
Miguel Couto: no balcão da emergência, um retrato do Rio
Rio 2016: tecnologia e novos usos para preservar arquitetura
"Gostamos de gente, e de contar histórias"