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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


Cultura

A aventura de um livreiro que resiste à maré digital

Danilo Rodrigues Alves - Do Portal

21/05/2013

 Nicolau Galvão

Escondido em meio a tantos outros prédios na tumultuada Rua da Lapa, existe um lugar ainda à sombra da redescoberta do bairro pelo carioca. A livraria, digamos, recém-chegada de Lisboa Poesia Incompleta, propriedade do português Mário Guerra, o Changuito, é um desses emblemas da resistência do artesanal sobre o admirável mundo digital. A tonelada de livros trazidos por Changuito do outro lado do Atlântico, boa parte de poetas portugueses, aperta-se provisoriamente num cômodo em torno de 30 metros quadrados. "Estou juntando dinheiro para alugar um espaço maior, já com cara de livraria", planeja esse Quixote abnegado por literatura e apaixonado pelo Brasil. Mesmo espremida, a inusitada livraria é, de certa forma, um oásis no meio do deserto que se tornou esse nicho do mercado literário. Alheio ao tempo e à correria lá fora.

Logo que se entra na pequena sala alugada, vê-se que não se trata de uma livraria qualquer. Uma atmosfera diferente, antiquada no bom sentido, a difere do estilo desses negócios. Enquanto conta a aventura de trazer na bagagem um  mar de livros e sonhos, Changuito acende um cigarro atrás do outro. A fumaça carrega o clima de filme noir. Prateleiras dispostas nos quatro cantos, mais uma bancada central, impõem-se repletas de clássicos da literatura mundial. São tocados suavemente pela luz que penetra através da cortina. Nem o espaço exíguo subverte o romantismo no ar. A impressão é de entrarmos num dos contos ao alcance das mãos.

A história desta biblioteca singular, contraponto à maré digital e aos tubarões editoriais, confunde-se com a história de Changuito. Ele veio ao Brasil pela primeira vez em 1993. Encantado com as maravilhas cariocas, fez o que tantos outros patrícios fizeram: teceu planos para voltar de vez. A crise econômica, deflagrada em 2008 e ainda remitente na Europa, foi a deixa que faltava para consumar o desejo. Juntou a tonelada de livros que cultivava em Lisboa, guardou-os em caixas de papelão e os embarcou para cá, em maio do ano passado:

– Fiz tudo praticamente sem ajuda – lembra – Minhas costas, depois de terminado o esforço, ficaram destruídas.   

No acervo do livreiro de 40 anos há raridades que surpreenderiam até colecionadores. Obras em cinquenta idiomas, do árabe ao mandarim, também fazem parte daquelas estantes provisoriamente instaladas em um quarto da Lapa. Variam de R$ 20, R$ 30 a mais de R$ 300, no caso de coletâneas. Para comprá-los, é preciso ir até lá. Venda pela internet, ao menos por enquanto, não faz parte do mundo de Changuito e seu romântico empreendimento. Mas o deslocamento é recompensado pelo papo com este Quixote contemporâneo, suas histórias, os bastidores de um projeto de vida incomum, talvez irresistível para quem anda imerso em outras formas de conexão.  Nicolau Galvão

Fora o espaço reduzido e a falta de visibilidade para as preciosidades impressas ("O ideal, claro, é que estivessem expostas numa loja de térreo"), Changuito reclama da dificuldade para reforçar as prateleiras com títulos brasileiros. Ele culpa nossa burocracia:

– Aqui no Brasil existe um problema que eu sinceramente não consigo entender. Para tudo tem que se fazer cadastro, para tudo tem que se esperar seis meses por uma resposta. Até já fiquei conhecido nas editoras. As pessoas dizem: “Fala Changuito, meu camarada, meu irmão. Manda o catálogo para gente.” Eu mando o catálogo, e nada. É um sofrimento desnecessário – desabafa, com sotaque carregado.

Changuito imita, de farra, o jeito carioca de falar. É parte do repertório de trejeitos simpáticos desse português que parece noutra sintonia. Divaga sobre poesia ("Tem uma vantagem sobre os outros gêneros: tempo para absorvê-la, sentir o que se lê"); amor ("A arte só de um rival: o amor"); sobre a cidade ("O carioca tem um lado infantil, que às vezes atrapalha, mas tem muita graça); sobre a importância de ler ("A leitura nos torna melhores políticos"). Emenda um assunto n'outro, como se mudasse de frequência. A serenidade predominante, acompanhada da voz aguda, só é abalada quando fala daquilo que considera uma grande ameaça: a “industrialização da literatura”, que para ele, principalmente no Brasil, está matando a essência do que é ler:

– Sinto muita pena do que vem acontecendo no mercado. Você entra numa livraria como essas que temos aqui no Rio hoje em dia e não se sente em uma livraria. Parecem shoppings centers, com suas decorações suntuosas, suas iluminações que quase nos cegam, querendo vender, vender, vender. O pior de tudo é que as editoras compactuam com isso, apoiam esse tipo de prática. Se você quer fazer dinheiro, esse tipo de ramo não é certo. Quando se usa a cultura para produzir lucro, se está matando uma das coisas mais lindas que nós, seres humanos, já criamos. A História está cheia desses exemplos – lamenta Changuito.

O último romântico, radicado em Laranjeiras, pretende formar grupos de leitura, como fazia em Portugal. Enquanto não migra para um espaço maior, lê para poucos, alguns amigos, gente do bairro, amantes da poesia, ou simplesmente curiosos que descobrem acidentalmente o tesouro escondido a poucos metros da área revitalizada pelo agito noturno.

Noves fora, a aventura de ganhar a vida como autêntico livreiro tem de pagar as contas. Ele diz que não sabe exatamente quantas obras tem de vender para sustentar a livraria. "São muitos por dia. É difícil". Para atravessar este oceano, dispõe de quase nenhum aparato de divulgação. Agarra-se às redes sociais e ao boca a boca. Traços de um Quixote inveterado, cujo Sancho Pancho talvez seja o próprio gênero literário com o qual trabalha e pelo qual nutre, a despeito das ventanias, uma inabalável admiração.