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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Cidade

Motoristas de ônibus falam o indispensável sobre a profissão

Amanda Reis - Do Portal

16/04/2013

 Cynthia Salles

Acidentes como o do ônibus da linha 328 (Castelo-Bananal), que fez sete mortos e 11 feridos ao cair de um viaduto na Avenida Brasil no dia 2 de abril, e o carro da linha 685 (Méier-Irajá) que invadiu um posto de gasolina atropelando duas crianças e duas mulheres, causando a morte de uma delas, servem de alerta para a qualidade da formação de condutores e também suas condições de trabalho numa cidade cujo trânsito é apontado como o pior do Brasil.

No ano passado o Corpo de Bombeiros registrou na cidade 167 acidentes envolvendo ônibus, com feridos. Infrações, especialmente por excesso de velocidade, também fazem parte da rotina dos 9 mil coletivos que circulam pela cidade. Segundo a Secretaria Municipal de Transporte, em 2012 foram aplicadas 3.049 multas, e em 2013, 789 até março. Os passageiros são os que mais sentem a realidade das estatísticas. De acordo com pesquisa realizada pela ONG Rio Como Vamos, em 2011, 51% dos cariocas avaliaram entre regular e muito ruim os serviços públicos de transporte na cidade, principalmente os moradores da Zona Oeste.

Como no acidente com o 328, essa insatisfação muitas vezes provoca discussões entre passageiros e motoristas – no caso, ambos foram indiciados por homicídio doloso, assumindo o risco de matar, assim como o condutor do 685. Estresse e impaciência são marcas do ofício.

 Amanda Reis O pernambucano Antônio Bezerra (foto), 55 anos, pai de quatro filhos, motorista há 17 anos da linha 435 (Gávea- Grajaú), já foi vítima de violência. Em dezembro passado, logo após deixar o ponto final no Grajaú, foi agredido por um homem que fechou o ônibus com seu Honda Civic, xingando e acusando de ter amassado o carro. Antônio desceu para ver o que tinha acontecido e foi surpreendido com um soco no nariz. Desmaiou na hora. Além de ter quebrados os óculos e o relógio, Antônio levou quatro pontos no rosto, e com a queda sofreu lesões na cabeça e nas costas. O motorista, que ficou sem trabalhar durante 14 dias, deu queixa na delegacia. O agressor, de cerca de 30 anos, foi localizado e pagou R$ 700, como ressarcimento pelos óculos.

– Ele ainda debochou, dizendo que meu relógio, que me custou R$ 500, “nem ele tinha condições de ter”. Soube que, se seguisse com a queixa no Ministério Público, o máximo que iria acontecer seria ele pagar uma cesta básica, ou prestar serviço comunitário. Deixei pra lá.

Estresse e fortes dores na coluna haviam afastado Antônio do emprego de motorista em 2002. Na época, entrou em uma depressão que durou dois anos. Só voltou à ativa oito anos depois.

– De repente, eu, que era uma pessoa ativa, não podia fazer mais nada. Se visse um ônibus, entrava em pânico.

Antônio foi abandonado pela mulher na época em que ficou doente. Teve o apoio de psicólogas de um posto médico do SUS próximo a sua casa, em São Cristóvão, a quem é agradecido: “Foram muito especiais”. Cynthia Salles

Depois de chegar ao fundo do poço, o motorista optou pela vida e decidiu seguir o tratamento. A força de vontade, aliada aos remédios, permitiu que Antônio chegasse “a um nível estável da doença”, como ele mesmo define. Apesar das dificuldades, diz que nunca perdeu a esperança de voltar a trabalhar:

– Por mais que você saiba que pode morrer amanhã, não desanime hoje – ensina.

Afastado pelo INSS, passou três meses difíceis quando, em 2010, teve o pagamento suspenso durante o tratamento. Sem dinheiro e sem poder pagar a pensão alimentícia, que corresponde a 30% do seu salário, hoje de R$ 1.770 (na época 1.300), decidiu voltar a trabalhar antes da alta médica.

Antônio, que começou a trabalhar aos 6 anos pastoreando gado em Juripiranga (PE), na divisa com a Paraíba, saiu de lá aos 18 para tentar a sorte no Rio, onde foi pedreiro, carpinteiro e porteiro de prédio. O motorista diz não gostar da profissão, por causa do estresse diário. Mas precisa do emprego:

– Sofro de IA, idade avançada, por isso não procuro outra colocação. Estar do lado de fora do ônibus é muito diferente. Quando entro e sento na cadeira, respiro pela metade. Meus únicos amigos são os retrovisores – desabafa.

Sério, de temperamento calmo, Antônio conta que é comum sofrer provocações e até ameaças. Recentemente, um passageiro queria descer fora do ponto, próximo à Igreja de Santana, no Centro:

– Ao descer, no ponto seguinte, ele me disse: “Vai ter volta!”. Respondi: – Entra na fila!. Estou exposto a tudo durante o trabalho. Se estou concentrado dirigindo e de repente me agridem, não vou conseguir trabalhar direito – completa, referindo-se ao acidente do ônibus 328, em que um passageiro foi tomar satisfações com o condutor, iniciando uma briga que terminou na queda do veículo.

Cynthia Salles Motorista da linha 410 (Gávea-Saens Peña), José Roberto da Silva, 42 anos, sai em defesa do colega da linha 328, e defende que o agressor deveria ser o único punido:

– O garoto não podia provocar o motorista, muito menos bater nele. O aviso “Fale somente o indispensável” é para ser respeitado – comenta o motorista, que desabafa sobre o abuso dos passageiros – “Alguns pagam a passagem e acham que compraram um escravo” – e já foi agredido até por um pedestre, que, sem motivo aparente, lhe deu um tapa através da janela, num sinal fechado.

Motorista há 30 anos, Damião Santana, 55 anos, tem saudade dos seus tempos em linhas intermunicipais:

– Coletivo não tem lado bom, é só estresse. O bom era quando eu estava na estrada – afirma ele, também defendendo punição máxima ao jovem agressor: “Esse garoto tinha que ir para o presídio de Tremembé”.

Alessandro Gama, 33 anos, pondera que o colega de profissão teve sua parcela de responsabilidade:

– O motorista também errou. Não tem que pagar para ver. É preciso ser covarde nessas horas. Quem se dá mal são as vítimas, e os parentes que sofrem pela perda.

Para José Bernardo Rodrigues, também da linha 410, a solução para esse tipo de caso é a redução da carga horária:

– Vivemos dobrando: trabalhamos cerca de 15 horas por dia. Se o governo determinasse seis horas de trabalho para os motoristas, todo mundo ficaria tranquilo, descansado.

Já Franklin Moura, 33 anos, despachante do ônibus 410, lembrou que, se houvesse um trocador, o desfecho poderia ter sido diferente:

– Dirigir e cobrar é complicado. Se houvesse um cobrador, ele poderia impedir que o garoto pulasse a roleta.

Os motoristas afirmam que a intensa carga horária de trabalho – que sempre ultrapassa as sete horas diárias por contrato – e o destempero dos passageiros contribuem para o risco de acidentes e a insatisfação da categoria. Para melhorar as condições de trabalho, os motoristas fazem reivindicações como o aumento do salário. Em março, após uma greve dos rodoviários, houve um reajuste salarial de 10% a 40%, e o valor da cesta básica aumentou em 25%. Hoje, a remuneração está em torno de R$ 1.770.

 Cynthia Salles Outra questão polêmica, discutida pela categoria, é a dupla função de motorista e trocador, em parte dos coletivos, que dispersa a atenção do trânsito. José Roberto não aceita trabalhar como cobrador aos domingos, como determina a empresa. E diz sofrer penalidades por isso:

– Descontaram dois dias do meu salário, apesar de eu estar à disposição da empresa. Não podem me obrigar a fazer dois serviços ao mesmo tempo, não fui contratado para isso.

A pesquisadora do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio Maria Inês Stingel explica que o estresse contínuo a que os motoristas estão submetidos faz com que o corpo trabalhe no seu ritmo máximo, como se combatesse um ameaça externa. Essa exaustão provoca lesões em vários órgãos que acarretam em diferentes problemas físicos.

– Motorista de ônibus é, talvez, uma das profissões mais estressantes – conta a psicóloga, que já atendeu uma trocadora que desenvolveu uma psicose por trabalhar numa região perigosa, com assaltos frequentes ao ônibus e vendo corpos de pessoas executadas pelas ruas. Cynthia Salles

Maria Inês afirma que o tratamento psicológico para os motoristas deveria ser permanente. Em algumas empresas, como a Estrela Azul, do 435, há uma psicóloga, que no entanto só é acionada quando um passageiro faz alguma reclamação. A Transurb, do 410 (Gávea-Saens Peña), não oferece assistência a seus funcionários.

Na linha 410 há dois anos, Nazário Vieira, 44 anos, apesar de bem-humorado, não aguentou a pressão do trabalho e saiu da empresa para fazer um tratamento psicológico durante três meses. Mas já voltou a conviver com a adrenalina materializada no trânsito caótico, nos inspetores da empresa e nos “passageiros mal educados”, além de ter que atingir a meta de 350 passageiros pagantes por dia. Nazário, ex-caminhoneiro, nunca tinha pensado em ser motorista. Ele lamenta que a classe não honre o uniforme:

 Maria Christina Correa – Rodoviário é muito covarde. Tem gente que senta atrás desse volante e se transforma, parece que incorpora um espírito ruim.

Pai de dois filhos, morador da comunidade de Rio das Pedras, na Zona Oeste, casado há 15 anos com a terceira mulher, Nazário tenta se divertir em meio ao caos do trânsito para abstrair a tensão do cotidiano.

– Eu brinco mesmo, principalmente com os meus velhinhos. Se não, eu e o povo ficamos doidos. Levo tudo na brincadeira, mas com respeito – conta ele sobre a relação com os passageiros e os colegas de trabalho.

Mesmo sendo um boa-praça, o motorista diz “não ter sangue de barata”. Admite que sai do sério se alguém faz uma barbeiragem na sua frente:

– Se eu tiver que falar, falo mesmo. Meu desabafo é no ônibus. Para ser motorista precisa ter habilidade, atenção e paciência – afirma, contando como tudo funciona no seu ônibus: – Para andar no meu carro a pessoa tem que se sentir bem. Gosto de ajudar: deixo criança entrar pela porta traseira, carrego todo mundo que está no ponto. Tem motorista que passa direto só para chegar mais rápido no ponto final. Mas as pessoas têm seus compromissos e precisam do ônibus.