Vera Novello* - Do Portal
05/04/2013Três meses depois das discussões sobre certa aproximação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a "vida real" no julgamento do Mensalão, o julgamento do policial militar aposentado Mizael Bispo de Souza – condenado a 20 anos de detenção por matar sua ex-namorada, a advogada Mércia Nakashima, em maio de 2010 – atraiu mais uma vez os holofotes da mídia à atuação do Judiciário. A transmissão ao vivo por rádio, TV aberta e internet reforçou o debate sobre a transparência nos trâmites judiciais. Apesar de certa discordância quanto ao ineditismo apontado pelo juiz Leandro Bittencourt Cano (o Tribunal de Justiça de Rondônia reivindica o pioneirismo das transmissões de júri num caso julgado em agosto de 2000), o caso Mércia deu notoriedade a esta forma de se acompanhar sessões do gênero. Bittencourt considera que o julgamento "trouxe ao público uma imagem mais positiva do Poder Judiciário" e a decisão de transmiti-lo tornou a sentença "mais clara a todos". A convite do Portal PUC-Rio Digital, a professora Vera Novello, que leciona Comunicação e Teatro na PUC-Rio, aprofunda, no artigo abaixo, a reflexão sobre tal prática e pondera como evitar sensacionalismo e espetacularização nos movimentos do Judiciário diante das câmeras.
Mais transparência no Judiciário
É fato: vivemos na era em que nada escapa às câmeras. Quando menos se espera estamos sendo vigiados – no hall dos edificios, nos elevadores, nos supermercados, nas agências dos bancos, em postos de gasolina, aeroportos e até nas ruas. Mesmo quando os aparatos de captação e gravação de imagens não são visíveis a quem está sendo filmado, pode ter certeza, eles estão camuflados, registrando imagens comprometedoras, que denunciam os momentos em que a ordem pública está sendo violada. Enfim, as macro e micro-câmeras encontram-se espalhadas por aí e, pelo menos em tese, estão a serviço da segurança do cidadão. Se ocorre um crime, seja de que natureza for, a investigação começa pela análise das imagens que registraram o delito, em uma espécie de rastreamento eletrônico, digital.
Ao que parece, estamos diante de uma crescente sofisticação no uso das câmeras como um instrumento a serviço do cumprimento da lei. É verdade que as coberturas jornalísticas, os furos de reportagem sempre tiveram como motivação principal a denúncia para que a sociedade possa exigir o cumprimento da lei. Por isso a liberdade de imprensa é esse ingrediente indispensável ao estado democrático em que o direito de opinar do cidadão está preservado.
A novidade recente é que o próprio Poder Judiciário sucumbiu à tentação de valer-se das câmeras como um instrumento de divulgação da ação da Justiça em defesa do cumprimento da lei, e convocou empresas de jornalismo (e não de segurança pública) para ajudar na tarefa, com uma única ressalva – que a transmissão em "tempo real" não se transforme em show sensacionalista.
Lendo sobre o caso do recente julgamento que condenou, em 14 de março, no Fórum de Guarulhos, Mizael Bispo (de 43 anos) a cumprir pena de 20 anos de prisão pela morte da ex-namorada Mércia Mikie Nakashima, me surpreendi com a ideia do próprio juiz querer trasmitir o julgamento ao vivo. Leandro Bittencourt Cano mostrou-se, em princípio, apreensivo com a possibilidade da transmissão atrapalhar o trabalho do júri, mas concluiu que o procedimento poderia tornar o julgamento mais imparcial, transparente.
Deixando a discussão sobre a imparcialidade da Justiça para um outro momento, temos que reconhecer que uma série de cuidados foram tomados para que a trasmissão não acabasse se convertendo num programa de entretenimento pelo sensacionalismo. Em primeiro lugar, buscou-se a anuência da acusação e da defesa quanto à transmissão – ambos autorizaram. O réu também autorizou a divulgação de sua imagem na mídia, e o próprio juiz fez a ressalva de que não se fizessem tomadas em close para evitar exposição desnecessária de Mizael.
Os depoimentos das 11 testemunhas citadas no processo só poderiam ser transmitidos mediante a autorização das mesmas. Os sete jurados não poderiam ser filmados. Emissoras de TV, rádio e internet montaram um grupo para decidir como as imagens seriam produzidas, demostrando uma preocupação não apenas técnica, mas também ética. Assim, sob o comando do juiz, três câmeras foram posicionadas no plenário do Fórum de Guarulhos: “Eu me sento na parte mais alta, bem no meio. Ao meu lado direito, se sentarão o representante do Ministério Público e o assistente da acusação”, explicava o juiz Leandro Bittencourt Cano, determinando a disposição do aparato que iria captar as imagens, como se ele fosse um diretor de estúdio.
Apesar das recentes transmissões ao vivo do julgamento do Mensalão (2012) e do julgamento de 24 réus acusados de envolvimento em 27 mortes no presídio Urso Branco em 2002 (Rondônia, 2010), a mídia insistiu em afirmar que o julgamento de Mizael Bispo teria sido o primeiro júri popular a ser transmitido ao vivo. Acredito que isto se deva a uma peculiaridade no julgamento de Mizael Bispo: neste caso houve o entendimento, por parte da Justiça, de que não vale mais a pena lutar contra a evidência de que a presença das câmeras pode favorecer a transparência. O que não pode é transformar este ou qualquer julgamento numa série de TV ou em reality show, mas dar o direito ao cidadão de bisbilhotar o julgamento certamente pode ajudá-lo a entender como funciona a Justiça.
O público, conhecendo os critérios utilizados em julgamentos como este e os fundamentos das teses da defesa e da acusação, pode avaliar o Código Penal Brasileiro, os procedimentos do Judiciário, e opinar sobre o que precisa ser reformulado. Mesmo que, em algum momento, as câmeras possam provocar a vaidade dos filmados, quero crer que o bom senso possa prevalecer. O público pode se sentir atraído pelos momentos em que predominam as brigas e os “barracos”. Mas torço para que a coletividade comece a prestar mais atenção às brechas através das quais sua opinião, elaborada a partir de transmissões como estas, possa encontrar mecanismos de expressão legítimos que contribuam para o aperfeiçoamento da nossa Justiça. Cumpre à sociedade avaliar se os crimes estão suficientemente caracterizados, se as sentenças são justas e se estão sendo corretamente cumpridas ou se prevalece a impunidade. Que venham mais aparatos tecnológicos e mais coberturas éticas se isto for para promover a igualdade dos cidadãos perante a Lei e a tão desejada paz social.
* Professora de Comunicação e Teatro na PUC-Rio
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