Arthur Ituassu* - Do Portal
31/03/2013Nota da editor: o artigo do jornalista e doutor em Relações Internacionais Arthur Ituassu, também coordenador do curso de Jornalismo da PUC-Rio, foi escrito em inglês e publicado no Instituto para Pesquisas em Políticas Públicas (IPPR) do Reino Unido (leia o texto original). Abaixo, a versão traduzida para o português:
A morte do carismático e controverso presidente venezuelano Hugo Chávez apresenta uma oportunidade de avaliar o desempenho dos governos de esquerda que dominaram a América Latina nos últimos anos. Hugo Chávez, eleito pela primeira vez em 1998, ganhou um quarto mandato presidencial em outubro (embora o câncer que resultou na sua morte tenha o impedido de tomar posse). Ele talvez fosse o mais famoso dos líderes da esquerda na América do Sul, porém revelou-se apenas uma figura no avanço do movimento político que varreu o continente.
Na Argentina, Cristina Kirchner assumiu o poder em dezembro de 2007, depois da morte do seu marido, Néstor Kirchner, que governou desde 2003. No Brasil, Dilma Rousseff correrá pela reeleição em 2014. Ela foi escolhida pelo ícone político da esquerda brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva, para sucedê-lo depois dos seus dois mandatos entre 2003 e 2011. No Uruguai, José Mujica assumiu o cargo em março de 2010. Seu antecessor, Tabaré Vázquez, desenvolveu um programa que resultou na redução da proporção dos que vivem em pobreza no país, de 32% para 20% em cinco anos, entre 2005 e 2010. Também faz parte deste domínio da esquerda Fernando Lugo, que em 2008 pôs fim a mais de seis décadas de governo do conservador Partido Colorado no Paraguai – embora ele tenha sido controversamente impedido pelo Congresso Nacional em junho de 2012; seu vice-presidente, Federico Franco, assumiu a presidência vaga. Finalmente, em 17 de fevereiro deste ano, Rafael Correa foi eleito presidente do Equador pela terceira vez, com cerca de 60% dos votos.
Alguns comentaristas têm sugerido que, dentro deste avanço da esquerda, uma distinção pode ser traçada entre uma "boa" e uma "má" esquerda – com a "boa" representada por por líderes mais "social-democratas", como os do Brasil, e a "má" com líderes mais "populistas", exemplificados por Hugo Chávez. No entanto, o argumento central deste ensaio é que esta distinção não resiste a um exame minucioso: entre os governos de esquerda na América Latina há elementos "bons" e "ruins".
A boa notícia: o combate à pobreza
A maior parte dos governos de esquerda do continente tem sido elogiada pelas políticas sociais e econômicas, particularmente os planos de redução da pobreza. Até o fim de 2012, por exemplo, o governo brasileiro expandiu um programa chamado Brasil Carinhoso, que visa erradicar a pobreza extrema entre as famílias com filhos pequenos. Para tais casos, o programa amplia o benefício mensal concedido pelo governo a famílias pobres por meio do Bolsa Família, programa já notório e intimamente ligado ao popular ex-presidente Lula. Com o Brasil Carinhoso, que desde novembro do ano passado está disponível para famílias com filhos entre 7 e 15 anos de idade – além daquelas com filhos de até 6 anos, já cobertas –, o benefício mensal pode chegar a 235 reais (aproximadamente US$ 120) e remover quase 8 milhões de pessoas da pobreza extrema. No Equador, a ascensão de 1 milhão de pessoas à classe média nos últimos cinco anos foi creditada ao governo de Rafael Correa. A economia está crescendo a uma taxa de 4% ao ano e o desemprego, em aproximadamente 5%, é historicamente baixo. Numa perspectiva de esquerda, Correa tem usado as receitas do petróleo para aumentar substancialmente investimentos nos sistemas públicos de saúde e educação do país.
A Venezuela, que dedicou sete dias de luto oficial pelo presidente Chávez, é assolada por violência e inflação. Mas, nos primeiros anos da presidência de Chávez, ele iniciou um programa de transferência de terras e introduziu reformas de bem-estar social que resultaram em menores taxas de mortalidade infantil. Implantou ainda sistemas gratuitos de saúde e de educação, até o nível universitário, financiados pelo governo. Alguns estudos relatam que 1 milhão a mais de crianças foram matriculadas na escola primária desde que o líder bolivariano chegou ao poder.
Em 2003 e 2004, Chávez lançou campanhas sociais e econômicas convertidas em aulas gratuitas de leitura, escrita e aritmética para os mais de 1,5 milhão de analfabetos adultos venezuelanos. Implantou também um modelo de proteção à subsistência, religião, terra, cultura e aos direitos dos povos indígenas do país. O conjunto de medidas trouxe, segundo levantamentos, resultados como o crescimento em 150% da renda familiar dos mais pobres, entre 2003 e 2006, e a redução da taxa de mortalidade infantil, em 18%, entre 1998 e 2006.
A má notícia: minar a democracia
Há, contudo, outro lado na história compartilhada por grande parte dos governos de esquerda, "social-democrata" ou "populista". A maioria foi condenada por comportamento antidemocrático – incluindo falta de limites para o número de mandatos que um presidente pode exercer; personificação do poder nas mãos do presidente; enfraquecimento das instituições políticas; esvaziamento da oposição; controle sobre a mídia.
Em relação ao primeiro desses comportamentos, os exemplos flagrantes são Venezuela e Equador. Na Venezuela, um referendo apoiado por Chávez aboliu, em 2009, os limites de mandato no país, permitindo-lhe um quarto mandato – que acabou interrompido ou, na visão de muitos, sequer consumado. No Equador, o primeiro mandato de Correa deveria ter acabado em janeiro de 2011, mas uma nova Constituição determinou eleições gerais para abril de 2009. Correa ganhou esta votação e mais outra, em fevereiro, estendendo sua presidência até 2017. Os mandatos longos, obviamente, fortalecem o Executivo à custa de outras instituições políticas e da oposição, e cria condições nas quais privilégios a empresas (rent-seeking), corrupção, concentração de renda e centralização política tornam-se mais prováveis.
Ligada à questão dos mandatos sucessivos está a personificação do poder político, centralizado na imagem e no caráter do presidente. Isto pode ser visto mais vividamente com Hugo Chávez, mas também com Rafael Correa, Kirchner e até mesmo Lula.
A morte de Chávez indica um dos riscos desses cultos à personalidade, com um país sendo sacudido pela instabilidade política quando a figura dominante desaparece da cena política. Outro problema que se impõe é o enfraquecimento dos partidos políticos. No Brasil, a atitude relaxada de Lula em relação ao maior escândalo de corrupção envolvendo altos membros do seu governo e seu partido, o Mensalão, e sua participação ativa na campanha nas eleições de 2010 para a sucessora ungida Dilma Rousseff foram fortemente criticadas por serem desrespeitosas com as instituições políticas do país.
Voltando à intimidação da mídia: este é um problema sério em todo o continente. No entanto, talvez a pior agressora seja Cristina Kirchner. A briga da presidente com o Grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia na Argentina, tornou-se um espetáculo, com Kirchner aprovando sucessivas leis que tentavam quebrar o poder político do grupo. No Brasil a mídia também foi um constante alvo de Lula, e Dilma e o Partido dos Trabalhadores tomaram o bastão. A assustadora ideia de capacitação de "comissões sociais" para avaliar o conteúdo da mídia continua voltando aos debates políticos brasileiros.
Na Venezuela, Chávez teve relações notoriamente antagônicas com a mídia. O mesmo se observa com Correa, no Equador. O New York Times criticou Correa recentemente, por "liderar uma campanha implacável contra a liberdade de expressão"; e o Washington Post o acusou de "o ataque mais abrangente e implacável à mídia livre em curso no hemisfério ocidental". O estopim dessa reprovações foi uma lei federal, em vigor antes da eleição de 2013, que proíbe a mídia de "direta ou indiretamente promover qualquer candidato, proposta, opções, preferências eleitorais ou teses políticas, através de artigos, reportagens ou outra forma de mensagem". Sobre as relações com a mídia, o presidente Correa disse, durante uma de suas transmissões semanais de TV e rádio, que iria "pôr fim ao ilegal e imoral poder político que certos meios de comunicação têm" e reclamou que "tudo o que eles fazem todos os dias é campanha política contra o governo".
Em certo sentido, Correa está, ironicamente, certo. Depois de tudo, com o enfraquecimento dos partidos políticos, é a mídia, em particular os maiores jornais, que assumiu o papel de oposição ao governo. Na ausência de adversários políticos fortes, o jornalismo investigativo na região adquiriu importância maior. Como qualquer tema social complexo, há acertos e erros em ambos os lados. A mídia está certa ao defender a liberdade de expressão, mas está errada ao apoiar monopólio ou oligopólio. Governos estão certos em questionar as motivações políticas da mídia, mas estão errados em tentar controlar seu conteúdo.
Não há bons e maus, mas uma crise democrática compartilhada
Fazer os registros de diferentes governos de esquerda na América do Sul, tanto no que diz respeito à luta contra a pobreza quanto na reforma democrática, nos permitirá separar os bons dos maus? Dificilmente. Se há uma coisa que este artigo gostaria de sugerir é que não há uma luta maniqueísta em curso, mas uma crise muito mais complexa da democracia representativa na região.
Em graus diferentes, suave ou radicalmente, todas essas experiências políticas devem ser vistas como respostas aos mesmos problemas que enfrenta a democracia representativa. Isso inclui a indiferença do cidadão e da sociedade sobre a política; o distanciamento entre o sistema político e o cidadão no dia a dia; a informação pobre no debate político e a dependência excessiva dos meios de comunicação de massa; o baixo capital político da sociedade civil; a baixa soberania popular e a desconfiança generalizada em relação à política e aos políticos.
A essa mistura, podem ser adicionados problemas com a comunicação política, como a competição entre informação e entretenimento pela atenção do cidadão; a tensão entre a lógica comercial e a lógica social do jornalismo; a disseminação de uma visão cínica da política dos meios de comunicação de massa e a espetacularização da política pela mídia, reduzindo-a a eventos e personalidades.
Neste contexto, não é por acaso que alguns, incluindo este autor, agora estão defendendo reformas institucionais na representação política. Tais inovações devem reduzir drasticamente a distância entre representantes e representados no dia a dia da política, com o uso de novos canais de comunicação e possibilidades. Oxalá a comunicação possa ser o futuro da democracia representativa por todos os países na região.
* Coordenador do curso de Jornalismo da PUC-Rio e doutor em Relações Internacionais pelo IRI.
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