Carlos Serra - Do Portal
22/03/2013Usar a fotografia para contar suas vidas, seus cotidianos, suas histórias. De quebra, dialogar com a literatura. Dessa mistura brotaram mais de mil fotos feitas por moradores da Maré, com base em Machado de Assis, das quais 130 ilustram o recém-lançado Cada dia meu pensamento é diferente (Nau Editora, 204 páginas, R$ 45). “Machado é fascinante. Ele não é muito detalhista, trata do interior das pessoas. Eu também gosto de escrever sobre sentimentos, sobre o oculto do ser”, identifica-se Ruan Torquato, um dos jovens entre 12 e 18 anos envolvidos no projeto Mão na Lata, que deu origem ao livro organizado por Tatiana Alberg e Luiza Leite. (Veja a galeria de fotos e a avaliação do professor da PUC-Rio Paulo Rubens.)
Para casar a dicção de Machado com a voz da favela à margem da Avenida Brasil, zona norte do Rio, Ruan e seus colegas utilizaram a tecnologia pinlux e pinhole – câmeras artesanais feitas com caixas de fósforos e latas, daí o nome do projeto. Assim, construíram narrativas próprias.
Iluminados por uma atmosfera machadiana e com suas câmeras artesanais, os alunos do projeto descobriram a cada exercício um pouquinho mais sobre si, sobre o outro e sobre a fotografia como expressão artística e de suas vidas. A estudante Juliana de Oliveira, 15 anos, lembra que "antes do curso, só apertava o botão", sem pensar na luz, enquadramento, foco ou tema:
– Vejo a fotografia bem diferente do que via antes. Cada uma tem sua própria leitura e expressão sobre o que o autor quer passar. A foto é muito mais do que meramente uma imagem.
Além de fotografar lugares que representam o dia a dia dos adolescentes, como a escola e as janelas pelas quais olham o mundo, os garotos da Maré imergiram no universo de Machado. Eles revelaram, por meio do pinhole, uma visão própria de locais descritos na obra do autor. Graças aos furinhos das câmeras-latas dos jovens, o Morro do Livramento, 174 anos após ter sido o berço do escritor, está impresso nos negativos. Assim como outros espaços importantes na história do Rio: Outeiro da Glória, Museu da República, Passeio Público, Santa Teresa, Campo de Santana, Rua do Mercado, Praça XV e Rua do Ouvidor.
Os diálogos entre passado e presente, fotografia e literatura, simplicidade técnica e exuberância no olhar estenderam-se por um ano. Traduziram-se em narrativas originais, algumas curiosas, mais de mil imagens.
O resultado rendeu um doce problema para os alunos e os orientadores. Juntos, selecionaram as 130 programadas que seriam publicadas. Apoiado pela Petrobras, o livro traz a cumplicidade entre texto e imagem, ao mostrar um olhar diferente desses jovens:
– O processo mais significativo que eles conquistaram foi a capacidade do olhar para si mesmos. Ver que as pequenas coisas do cotidiano podiam ser narradas e fotografadas – avalia a professora de antropologia da PUC-Rio Luiza Leite, responsável pelas aulas de literatura do projeto.
O material produzido reúne belas fotografias, ricas em enquadramento e iluminação. Criam-se sombras, vultos e distorções que são marcas do pinhole. Cada imagem carrega a paciência para encontrar o melhor ângulo, aguardar o tempo necessário para construí-la. Paciência ajudada pela forma descontraída, quase lúdica, sugerida pela experiência com as latas-câmera.
– Havia todo um preparo para cada foto, o momento certo de fotografar – conta Ruan.
Animado com a iniciativa, o jovem recém-graduado no Ensino Médio sonha ser jornalista, diretor de cinema ou escritor. Quer prolongar a "emoção" de poder criar com a própria câmera, que se torna “uma parte do eu”:
– É curioso imaginar que, por um furo minúsculo, vai simplesmente entrar luz e desenhar uma foto no papel. É uma experiência que precisa ser vivida. Desde a pintura da lata, deixá-la secar e ter o cuidado de não tampar o furo. Todo o processo gera muita ansiedade.
Juliana, aluna do primeiro ano do Ensino Médio, revela-se também encantada pela oportunidade de produzir as suas visões de mundo. Ela admite que, antes do curso, não tinha o hábito de ler e escrever. As três aulas semanais do projeto mudaram sua concepção não só sobre a fotografia, mas também sobre a leitura e a redação:
– Tudo era muito legal. Fazíamos uma roda, sentávamos à mesa e líamos uns para os outros. Depois discutíamos sobre os assuntos. Ter esse contato com Machado de Assis me inspirou a escrever sobre a minha própria vida e o cotidiano.
O Mão na Lata nasceu da parceria entre a fotógrafa Tatiana Altberg e a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Redes de Desenvolvimento da Maré. Ensina jovens da comunidade a produzir as próprias câmeras, fotografar, revelar e digitalizar.
Na turma de Ruan e Juliana, a maioria mal conhecia Machado. O encontro, diz Ruan, impulsionou a paixão pela literatura:
– Na primeira vez que fui apresentado a ele (Machado), na minha escola, a impressão não foi a das melhores. Deram-me um resumo de A cartomante, fiz uma prova e pronto. Agora, com a oportunidade de conhecer melhor sua obra, entendo por que Machado é o maior escritor do Brasil.
A leitura de Machado também o ajudou na escola:
– Hoje em dia, para eu publicar um texto, tenho de revisá-lo umas 15 vezes, para ver se não há controvérsias, se há coerência.