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Rio de Janeiro, 16 de abril de 2024


Cidade

Central do Brasil sintetiza o Rio da beleza e do caos

Monique Rangel * - Do Portal

17/12/2012

 Carlos Serra

Calçadão de Copacabana, Urca, Floresta da Tijuca, Aterro do Flamengo, beldades que habitam o orgulho carioca e justificam o pioneiro título de Patrimônio Mundial, concedido em julho pela Unesco. Cinco quilômetros separam o Aterro de um cartão postal menos badalado, menos colorido, porém igualmente emblemático: Central do Brasil. Avesso da aquarela que moldura o imaginário da Cidade Maravilhosa, a Central revela-se uma síntese pulsante do Rio da beleza e do caos.

Pela estação, que liga o Centro ao subúrbio e a zonas metropolitanas, circulam mais de 600 mil pessoas diariamente: trabalhadores atrasados, vendedores ambulantes, moradores de rua ou simplesmente passantes. Longe dos holofotes do título internacional, a maioria das muitas faces do Brasil ali reunidas divide a disposição para superar velhos inquilinos do pedaço, como falhas de segurança e de acesso.

Na praça Cristiano Ottoni fica o edifício Dom Pedro II. O endereço é sem número. Nem precisa, porque corresponde ao prédio da Central do Brasil, estação inaugurada em 1858, reconstruída nos anos 1930, alçada ao mundo pelo filme homônimo, de Walter Salles, em 1998, e oficialmente tombada dez anos depois pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O mosaico humano nos seus corredores e vãos forma um retrato do Rio e até do país, com precisão equivalente ao imponente relógio incorporado à paisagem carioca.

“Trem para Japeri, plataforma oito, partirá em aproximadamente três minutos”, avisa a locução já íntima de quem passa por lá dia após dia, indo e voltando, não raramente correndo. Na Central, o dia começa e termina acelerado. Para além do cartão postal, o lugar é rota diária de uns milhares de trabalhadores e o próprio ganha-pão de outros tantos.

Carlos Serra Há cinco anos, a Central do Brasil é o pano de fundo da vida de Paulo Condé Silva. Ele entrega, de bicicleta, diariamente, mais de 200 quentinhas para os trabalhadores da região do Centro, em especial, do edifício Dom Pedro II. No vaivém pela área, encontra tempo para garimpar uma beleza improvável e resistente, revelada só aos iniciados:

– O tempo passa, as coisas mudam e muita gente vai esquecendo o passado. Eu gosto muito daqui, é bonito. Fico passando entre nove da manhã e três da tarde. Às vezes volto à noite. Hoje vim comprar carne no mercado – conta o senhor de sorriso largo, enquanto admira a iluminação do prédio.

A poucos metros dali, na entrada da Central, o ambulante Marco Aurélio Menezes é outro que faz da Central um meio de sustento. Vende saquinhos de amendoins e balas. Pede desculpas, porque a conversa com a equipe do Portal terá de ficar para depois, para não atrapalhar o negócio:

– Agora não vai dar para falar. Tenho que ficar ligado, senão o rapa vem e toma tudo! Estou todo dia aqui e tenho que ficar ligado!

Carlos Serra Lá, rapa é sinônimo de Guarda Municipal (GM-Rio). A área da Central é patrulhada diariamente por 28 guardas a pé e seis veículos. Desde janeiro, recolheram 6.628 mercadorias vendidas irregularmente no entorno da estação. Segundo a Guarda Municipal, os produtos são encaminhados para depósitos da prefeitura ou, em casos de materiais piratas, para as delegacias próximas.

Nos arredores, o progresso estampado na Presidente Vargas, principal avenida do Centro, contrasta com traços do Morro da Providência e do tradicional bairro de Santo Cristo, cujas raízes se confundem com a própria genética do Rio. Santo Cristo é há 40 anos o lar de José Vieira Sampaio. Zé lembra que o local já foi mais "aberto" e mais valorizado, porém manteve "a bondade das pessoas". Desempregado, ele conta com a solidariedade da quentinha trazida pelos "conhecidos no comércio":

– Aqui é assim, tem gente boa e tem gente ruim – resume – Às vezes, eu passo e me dão dois reais sem eu pedir. Mas tem que ficar esperto também, porque, se deixar, roubam até garrafa de água. Isso aqui é a Central do Brasil, amigo!

Carlos Serra As preocupações relativas à segurança e aos moradores de rua são assuntos recorrentes entre os frequentadores da estação e os habitantes da vizinhança. O auxiliar administrativo Edson Santos diz que o pior já passou, "está bem melhor de uns tempos para cá", com a implantação da UPP no Morro da Providência, em 2010, e o aumento do número de policiais. De acordo com estudo da ONG Rio Como Vamos, o número de roubos de rua na região do Centro caiu 32% de 2010 para 2011: 4.482 contra 3.027. Embora esteja ainda longe de trazer a tranquilidade absoluta aos pedestres, a queda inspira a perspectiva de que assaltos e outros delitos serão coisa do passado.

– Este lugar era um perigo total. Há um tempo atrás era uma ilha de prostituição e marginalidade – afirma, com eloquência, o auxiliar administrativo.

Se por um lado o cadeirante Edson percebe "uma certa melhoria na segurança", por outro ele observa que o nível de acesso se mantém predominantemente precário nas ruas do Centro e, sobretudo, no Terminal Rodoviário Coronel Américo Fontenelle. Uma distância ainda enorme do padrão de metrópole internacional, dourada pela pompa e a responsabilidade de sediar a Copa 2014 e a Olimpíada 2016.

 Carlos Serra– Para chegar à rodoviária, eu tenho que disputar espaço com os carros. Preciso contar com a boa vontade dos outros, porque não tem acessibilidade. E, se tem rampa, está quebrada – critica Edson, que todos os dias volta de ônibus para casa, em Nova Iguaçu.

A rodoviária, que representa uma das principais ligações com a Região Metropolitana, embarca na contramão da cidade eleita Patrimônio Mundial e sede olímpica: cheiro forte de urina, lixo espalhado, falta de manutenção. Marcas do atraso e do descaso dividem o espaço com os ônibus e com cerca de 90 barraquinhas que vendem de tudo, desde variados gêneros de comida até sapatos e plantas. Segundo Nelson Nóbrega, assessor da Coderte, companhia responsável pelo terminal, o Américo Fontenelle será “totalmente demolido e reconstruído”;

– O novo terminal será dotado de toda a facilidade de acesso para cadeirantes e portadores de necessidades especiais. Vamos acrescentar rampas e melhorar os banheiros. Fizemos a licitação este ano e acredito que, até meados do ano que vem, pelo menos essa questão da acessibilidade vai estar resolvida – adianta Nóbrega.

 Carlos SerraEm meio à ansiedade para chegar ao trabalho ou voltar para casa estampada nas feições da maioria dos que passam pela estação, a assistente administrativa Andréia Casy aproveita uma face pouco conhecida da Central, um canto para relaxar e admirar a paisagem urbana do Rio na companhia de uma amiga. Matou as saudades do lugar com o qual conviveu sistematicamente em 2006, quando trabalhava no Centro.

– Estava indo para casa, aí resolvi parar e tomar uma cerveja. Faz tempo que não venho aqui – disse Andréia, que é surda, por meio da lingua brasileira de sinais (LIBRAS).

Patrimônios para preservação

As Unidades de Patrimônio da Humanidade (UPHs) são a Floresta da Tijuca, orla de Copacabana, Pão de Açúcar e o Parque do Flamengo. “A Central não está na área reconhecida pela Unesco”, explica Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH).

A prefeitura criou o IRPH para a tarefa de administrar as ações de preservação das áreas consideradas pela Unesco e seu entorno.

– A partir do Fundo de Municipal de Conservação, que terá a receita do orçamento próprio e de eventos no Parque do Aterro do Flamengo e Copacabana, serão feitos investimentos nos locais, como manutenção emergencial e replantio – garante Fajardo.

Se demorar muito a voltar lá, ela correrá o risco de achar que desembarcou na estação errada. Pelo menos é o que promete a Supervia. O projeto, ainda em análise pelo Iphan, prevê a restauração da área tombada, a ampliação do embarque/desembarque e a construção de um centro comercial sobre as plataformas.

Uma Luz no fim do túnel

Do outro lado da Dutra, um prédio também sem número e caracterizado por um relógio abriga outra estação famosa, a Estação da Luz. em São Paulo, inaugurada em 1901. Como uma prima rica, ganhou plástica caprichada e novas atrações, como o Museu da Língua Portuguesa – que recebeu quase três milhões de visitantes desde 2006, quando a reforma total foi concluída.

De espaço histórico apagado, a Estação da Luz revitalizou-se como ponto turístico. Foi o primeiro passo do audacioso plano de converter uma área degradada – perto de um dos pontos obscuros da cidade, a região conhecida como Cracolândia – em polo cultural. Para incentivar a ocupação residencial e comercial, foi criado o projeto Complexo Cultural Luz. Reunirá três teatros, uma biblioteca e as novas sedes da São Paulo Companhia de Dança e da Escola de Música do Estado de São Paulo. As obras começarão no próximo ano.

 

Veja aqui os flagrantes feitos na Central do Brasil.

* Colaboração de Carlos Serra.