Em pleno feriado da Proclamação da República, na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, a construção de Brasília, há 50 anos, serviu de pano de fundo para se discutir a incorporação de questões do dia a dia no planejamento do "Rio que se quer". O debate partiu da exibição, como parte do Festival Adaptação 2012, dos filmes Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, e A cidade é uma só? (2011), de Adirley Queirós.
Depois da sessão no Cinecarioca – primeiro cinema em uma favela do município, inaugurado em 2010, com capacidade para 93 espectadores –, cineastas, pesquisadores e representantes de ONGs conversaram com o público sobre a importância de incluir demandas cotidianas nos grandes projetos para a sede olímpica. Os filmes revelam contradições de uma cidade planejada e, para o jornalista Ricardo Moura, membro da ONG Raízes em Movimento, lembram o momento do Rio:
– A cidade tem projetos como o PAC e UPP, além de secretarias como a de Ordem Pública, mas, assim como na construção de Brasília, não perguntam qual cidade o carioca, inclusive o da comunidade, quer – compara.
Para o professor da PUC-Rio e cineasta Hernani Heffner, o problema se estenda a boa parte dos municípios brasileiros. Ele reconhece que o crescimento econômico dos últimos anos e alguns saltos na área social representam "avanços significativos", mas avalia que os "grandes planos" não raramente eaquecem os "interesses do dia a dia". Ainda segundo Heffner, a fase brasileira e carioca reúne contradições resultantes de um equívoco na concepção de modernidade:
– Brasília reflete uma visão errada de modernidade. Visão estabelecida no crescimento brasileiro. O moderno está na matéria, na arquitetura, nas curvas do concreto e na estrutura física, não na vida do cidadão – argumenta.
No debate após os filmes, Heffner reiterou que o suposto erro na concepção de modernidade prejudica o desenvolvimento de soluções para a população carente. O cineasta acredita que esta lógica apenas “troca seis por meia dúzia”. Por exemplo, disse ele, a simples remoção e a construção de prédios e conjuntos habitacionais geram favelas verticalizadas. Uma manobra que qualifica como “substituição da madeira do barraco pelo concreto do arranha-céu”.
Brasiliense de Ceilândia – cidade satélite do complexo urbano projetado por Oscar Niemeyer –, o também cineasta Ardiley Queirós acredita que um dos caminhos para agregar mais demandas populares aos planejamentos urbanos seja justamente a disseminação de debates reunindo integrantes da sociedade civil, especialistas de diversas áreas, pesquisadores e representantes do poder público. Pela primeira vez no Rio, aos 37 anos, ele lamentou que discussões como as observadas no festival sejam menos comuns no Distrito Federal.
– No Rio eu vi intelectual e favelado debatendo filmes em Ipanema e, hoje, no Alemão. No meio de bairros desenvolvidos, existem comunidades. Onde eu moro existe um espaço entre Brasília, o centro, e as periferias.
Para o diretor, esta mescla não significa, contuto, que existam mais ou menos contradições em Brasília. Adirley Queirós ponderou que no Distrito Federal a periferia e o centro não se cruzam e, mesmo assim, “são tachados como iguais”, o que o motivou a expor as mazelas da região em A cidade é uma só?, cujo título já sugere o questionamento ao tom afirmativo do jingle oficial da criação de Ceilândia (A cidade é uma só!).
Filme aborda, com bom humor, contrastes sociais da capital
Nesta terceira edição do Festival Adaptação, a curadoria escolheu como fonte de inspiração os 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Os 62 filmes exibidos dialogaram com a criação de uma identidade nacional. Identidade que Ricardo Moura identificou, por exemplo, no longa de Queirós. Com uma abordagem bem-humorada, o filme produz, ao retratar o processo exclusão territorial que aflige uma parcela da população do Distrito Federala, uma reflexão sobre os 50 anos de Brasília.
– A militância é sempre dura. Mas é possível transmitir a mesma mensagem inconformada e política de uma forma bem-humorada – comenta o diretor, referindo-se à abordagem dos problemas sociais daquela região.
O ponto de partida é a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que, em 1971, removeu os barracos nos arredores de uma Brasília ainda jovem. Assim nasceu Ceilândia, cenário do enredo. Adirley Queirós conta a correria de um auxiliar de limpeza terceirizado, fã de rap, para se tornar deputado distrital e defender Ceilândia no Congresso (é filiado ao fictício Partido da Correria Nacional). O filme passeia também pelas histórias de uma moradora em busca de imagens e reportagens sobre as remoções dos barracos dos operários durante a CEI e a luta do cunhado do tal candidato para ganhar dinheiro com supostos biscates.
Curtas de alunos da PUC estão no Festival de Adaptação
Legado olímpico exige mais atenção social, alertam analistas
Miguel Couto: no balcão da emergência, um retrato do Rio
Rio 2016: tecnologia e novos usos para preservar arquitetura
"Gostamos de gente, e de contar histórias"