Nos últimos três meses, os 11 ministros deliberaram no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Ação Penal 470. A Suprema Corte Brasileira ganhou exposição proporcional à missão de julgar um dos casos mais complexos e simbólicos da história recente do país: o esquema de compra de apoio político ao governo no Congresso, supostamente comandado por José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil no primeiro mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, e do qual estariam envolvidos políticos, banqueiros, publicitários, advogados. Transmitidas ao vivo até por emissores comerciais, as mais de 200 horas de sessão mostraram ao país a rotina de sua corte máxima. Revelaram convenções, argumentações e contra-argumentações, atritos, vaidades, e transformaram o relator Joaquim Barbosa em capa de revista, quase um pop star, um herói verde-amarelo. Depois do recesso de duas semanas, serão retomadas amanhã, quando os ministros começarão a precisar as penas, e se estenderão até o fim do mês.
Linguagem e normas jurídicas chegaram às casas da população, que se viu mais familiarizada com um Supremo sobre o qual não raramente pairam pedidos de proximidade com a "vida real". Sob o verniz midiático, as condenações alinharam-se, segundo boa parte dos analistas, à opinião pública ansiosa por um Brasil capaz de punir os corruptos e assim dirimir um desvio historicamente inserido na vida pública e privada – e cujo prejuízo ao país ultrapassa os R$ 50 bilhões por ano, segundo estimativa da Fiesp. Depurado o certo tom ufanista, alguns pontos técnicos do julgamento levantam reflexões e divergências sobre o desempenho e os propósitos prioritários do Supremo.
Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio, Gisele Cittadino afirma que o papel de uma Suprema Corte não deve ser determinado e canalizado a se aproximar das ruas. Crítica da atuação do tribunal no histórico julgamento, ela avalia que o principal retorno do Judiciário à sociedade se faz pela busca dos homens-fortes do STF à correção na defesa de direitos e garantias fundamentais às minorias:
– Não é tarefa da Suprema Corte se aproximar da "vida real". Os políticos, e os artistas, como diria Milton Nascimento, devem ir onde o povo está. O Supremo Tribunal Federal deve buscar sua legitimidade no papel de poder contra-majoritário, ou seja, cabe às Supremas Cortes evitar a tirania da maioria e proteger os direitos dos grupos minoritários – esclarece.
O coordenador geral do Instituto de Direito da PUC-Rio, professor Adriano Pilatti (foto), avalia ser necessário ponderar, quando se fala em harmonia com o Supremo Tribunal Federal, como se forma a opinião pública. Pilatti define a Suprema Corte como “órgão dedicado unicamente a fazer justiça”, critica o período programado para o julgamento – “estranhamente ajustado ao calendário eleitoral” – e percebe uma visão parcial dos fatos que ignora o princípio jurídico constitucional da presunção de inocência: "julgamento não pode ser justiçamento".
– Quanto a uma suposta necessidade de sintonia entre nossa Corte Suprema e o que se costuma chamar de “opinião pública”, que, o mais das vezes, é a versão que dela dá a “opinião publicada” pelas seis ou sete famílias que controlam os grandes órgãos de imprensa neste país de aberrante concentração da propriedade dos meios de comunicação, adoto a premissa: desde a criação da Suprema Corte americana, o que se espera da mais alta corte do Estado é que atue como órgão dedicado unicamente a fazer justiça. Julgamento não pode ser justiçamento, e muito menos linchamento. O compromisso único de um tribunal é com a verdade, a justiça e aquilo que os romanos chamavam de “prudentia”.
O professor da USP Elival da Silva Ramos, doutor em Direito do Estado, acrescenta que um tribunal, "na prática da sua função de busca pela justiça, deve se pautar por critérios especialmente técnico-jurídicos". Tais fundamentos, observa o especialista, incluem "dados da realidade captados pelo magistrado" e não excluem os seus próprios conceitos e valores. Ele enxerga, no julgamento do mensalão, um equilíbrio entre os critérios técnicos e a influência da "opinião pública":
– É evidente que a forte opinião pública, em sentido favorável à condenação dos principais réus, teve impacto nos integrantes da Corte, sem que se possa dizer que tenham deixado de lado os critérios técnico-jurídicos. É esta a leitura que faço até aqui, baseado no acompanhamento diário pela mídia impressa, falada e televisada.
Ramos considera positiva a “proximidade das ruas", como uma forma de melhor entender e acompanhar o que a sociedade pensa sobre os processos submetidos à Corte. Mas ressalva:
– Tal proximidade não pode implicar subordinação ao dito "clamor popular". Não se pode esquecer de que foi o clamor popular que presidiu a cruxificação de Cristo – lembra.
Este raro reconhecimento popular aos ministros do Supremo – e em especial ao relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, cuja imagem multiplicou-se em jornais, redes sociais e até máscaras carnavalescas (foto) – é atribuído por Gisele Cittadino a um cansaço do povo com o histórico de impunidade no Brasil, cujas elites, segundo a professora, acostumaram-se à apropriação privada daquilo que deveria ser público. Ela pondera que a capacidade do julgamento da Ação Penal 470 em” transformar os membros do STF em ídolos pop” deriva da forma com qual meios de comunicação de massa expõem os fatos.
Gisele observa, contudo, que o resultado das deliberações dos ministros, culminado em penas aos condenados na próxima etapa do julgamento, não deve servir como base à população. Para a professora, o anseio dos brasileiros por punições aos recorrentes casos de corrupção, cujo fôlego se refez nos últimos três meses – e, inevitavelmente, foi mote de debates entre os candidatos nas eleições municipais – deve ser comedido, para não pender à ingenuidade:
– São ingênuos aqueles que acreditam que o STF vai, a partir de agora, abraçar a "teoria do domínio dos fatos", da qual jamais se aproximou no passado, para encher as penitenciárias brasileiras de políticos, banqueiros, criminosos do colarinho branco ou ricos médicos estupradores. O Brasil sempre conviveu, ao longo de sua história, com as "revoluções pelo alto".
Gisele alerta que a atuação dos 11 ministros, televisionada e amplamente divulgada, deve ser analisada com neutralidade e parcimônia. A professora da PUC-Rio adverte que a espetacularização do julgamento em torno de comparações e da polarização entre o "bem" e o "mal" – atribuída, de forma simbólica e rasteira, ao relator, Joaquim Barbosa, e ao revisor do processo, Ricardo Lewandowski – deve ser deixada de lado para que não se crie uma “elite de toga”.
– As grandes transformações ocorridas no país foram levadas a cabo por elites que davam a si mesmas a tarefa de construir a sociedade brasileira. Depois da elite imperial, das burguesias industriais e financeiras, dos ditadores civis ou militares, o que não precisamos, se pretendemos consolidar a democracia e o Estado de Direito, é apelar para uma nova elite: a de toga.
Reveladas e amplificadas pela TV e pela internet, as divergências entre os ministros são uma oportunidade, segundo a também professora de Direito da PUC-Rio Telma de Graça Lage, para que o brasileiro aproveite para compreender melhor o Judiciário:
– Um julgamento destas proporções explicita o papel das instituições e dos magistrados. Órgãos imparciais do Poder Judiciário e o relator não podem ser confundidos com o órgão de acusação, o Ministério Público; nem o revisor, Lewandovski, com órgãos de defesa, no caso, advogados dos réus. Melhor aproximar a vida real do Judiciário para que todos percebam que é na atuação isenta e imparcial que se encontram as garantias das liberdades individuais – ressalta.
A também professora do Departamento de Direito da PUC-Rio Victória Sulocki observa que ainda há trâmites significativos a serem considerados no julgamento do mensalão, como a determinação das penas e os desdobramentos possíveis. Ela destaca, por exemplo, a interpretação do juiz da Primeira Vara de Fazenda de Belo Horizonte, Geraldo Claret de Arantes, sobre as circunstâncias da Reforma Previdenciária. Baseado nas constatações dos ministros e condenações dos réus da Ação Penal 470, Claret concluiu que houve compra de votos de parlamentares em 2003 – primeiro ano da gestão de Lula –, quando a alteração foi aprovada. A questão relativa à validade da Reforma da Previdência chegou a ser citada no julgamento do mensalão: alguns ministros sinalizaram uma abertura para discussões que aprofundem o tema.
Apesar das perspectivas de desdobramentos assim, Victória acredita que os magistrados do STF devam manter "o foco nos autos":
– É um princípio democrático que os juízes, e os ministros são juízes, julguem segundo as provas. Digo provas, não presunção ou indício.
Velocidade do STF não se aplica à “vida real”
Uma maior velocidade do Judiciário (o país contabiliza 63 milhões de processos na Justiça Comum, segundo o Conselho Nacional de Justiça), o que ajudaria a aproximá-lo da "vida real", revela-se um anseio antigo da população, apontado por diversos tipos de pesquisa. O professor Adriano Pilatti pondera, entretanto, que a agilidade não deve se sobrepor a uma minuciosa análise dos fatos. Ele reitera que o compromisso de qualquer órgão judiciário “é com o Direito e a Justiça, não com a volubilidade da massa, mutável e inconstante como a forma das nuvens”:
– Um tribunal não é nem deve ser uma equipe de automobilismo. O seu dever é aplicar a Constituição e as leis a um caso concreto da maneira mais isenta e adequada possível. A celeridade é desejável, mas não pode ser feita às custas do rigoroso exame dos fatos.
Assim como Pilatti, Victória Sulocki considera a agilidade nas resoluções da corte como "algo secundário": “não pode ser rápido demais, nem lento demais”. Pois as prioridades são outras:
– A Corte Suprema não precisa ser ágil, mas sim garantir a Constituição. O conceito de agilidade é um conceito econômico que não cabe no processo justo. O tempo razoável de duração do processo é uma garantia constitucional, só que cada processo tem seu ritmo.
O professor Elival Ramos argumenta que, a exemplo de todo o Judiciário brasileiro, a maior agilidade do STF só poderá ser obtida por meio da redução de sua "avassaladora carga processual", o que exigiria “uma profunda e corajosa reestruturação de suas competências”.
– Ações semelhantes à do "mensalão" não deveriam ser julgadas pelo STF, e sim por um tribunal ordinário, por meio de uma de suas seções ou turmas especializadas em matéria penal, o que ocorreria caso não houvesse o foro privilegiado dos parlamentares acusados de crime – opina.
“É impossível e indesejável um STF alheio à política”, afirma especialista
Os ministros do Supremo Tribunal Federal são nomeados pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta no Senado Federal. Entretanto, os magistrados da Suprema Corte do Brasil não têm mandato fixo: o limite máximo é a aposentadoria compulsória, quando atingem 70 anos. Atual presidente da Casa, o ministro Ayres Britto, no cargo desde abril, chegará à idade máxima agora em novembro, quando o ministro Joaquim Barbosa assumirá a cadeira.
Cresce no país, todavia, a discussão sobre os mecanismos de nomeação dos ministros do Judiciário. Alguns argumentam que a participação dos cidadãos e da sociedade civil tornaria a escolha mais transparente e blindaria as sentenças e os próprios magistrados de possíveis insinuações sobre influências político-ideológicas.
Exemplo mais recente disso remete ao ministro Ricardo Lewandowski. Depois de absolver todos os réus da acusação de formação de quadrilha – entre eles, José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Marcos Valério, condenados pelos colegas do ministro –, Lewandowski foi alvo de dúvidas que partiam da relação com o ex-presidente Lula, por quem fora indicado, em 2006. Além de Ricardo Lewandowski, foram indicados por Lula os ministros Joaquim Barbosa (2003), Ayres Britto (2003), Cármen Lúcia (2006) e Dias Toffoli (2009). A presidente Dilma Rousseff indicou os ministros Luiz Fux (2011), Rosa Weber (2011) e Teori Zavascki (2012); e os ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso indicaram, respectivamente, Celso de Mello (1989), Marco Aurélio Mello (1990) e Gilmar Mendes (2002).
Elival Ramos avalia que este tipo de blindagem dos magistrados não é viável "de maneira tão natural". Ele pondera ser impossível, e indesejável, que uma Corte Constitucional ou Suprema fique alheia a questões político-ideológicas:
– A questão é obter uma composição plural em relação a esse aspecto, que reflita as tendências predominantes na sociedade e sem subordinação a partidos ou governos – propõe.
Telma Lage nota que um risco de contaminação da corte por fatores político-ideológicos "é uma variável de difícil controle", mas como a democracia exige um Judiciário imparcial, um dos caminhos para evitá-la passa pela melhor compreensão da linguagem dos critérios jurídicos:
– Todos precisam compreender o porquê da decisão ser condenatória ou absolutória. Mesmo os aspectos formais devem ser explicados. Todos podem compreender que um recurso não foi aceito, porque ajuizado fora do prazo que a lei determina; melhor que dizer: "recurso não conhecido por intempestivo".
O professor da USP destaca que há várias Propostas de Emenda Constitucional em curso no Congresso voltadas a aprimorar o critério de provimento do cargo de Ministro do STF. A mais recente, 44/2012, proposta pelo senador Cristovam Buarque, determina que os ministros do Supremo Tribunal Federal sejam escolhidos pelo presidente da República após lista sêxtupla formada por dois indicados do Ministério Público Federal, dois do Conselho Nacional de Justiça, um da Câmara dos Deputados e um da Ordem dos Advogados do Brasil.
– Três alterações na composição do STF seriam essenciais: o aumento do número de Ministros (o que favoreceria uma composição mais plural e diminuiria o peso individual); a estipulação de um mandato (o que favoreceria a renovação periódica e afastaria o interesse apenas na aposentadoria no cargo); e diversificação da origem da indicação ao cargo, que poderia ser o Presidente da República, mas apenas em relação a parte dos indicados – aponta o especialista.
Para Victória Sulocki o modelo americano serve de referência:
– Acho a indicação presidencial, com efetiva sabatina do Congresso, um meio adequado. É assim nos EUA e ninguém fala que lá é errado ou pior. Portanto, não haveria motivos para modificar, desde que continuasse havendo sistema de controle da indicação do Executivo, pelo poder Legislativo.
Quanto ao processo de escolha dos ministros do STF, Adriano Pilatti, que atuou como assessor parlamentar jurídico da Constituinte de 1987-1988, diz ser favorável a uma maior desconcentração na escolha como norte ao pluralismo: “não há democracia real sem pluralismo”.
– Uma solução razoável para mim seria partilhar o preenchimento das vagas, em rodízio, num modelo inspirado – apenas inspirado – no da Constituição da Itália. A cada vaga que se abrisse, a escolha seria feita, alternadamente, pelo presidente da República e por eleição: pela Câmara dos Deputados, pelo Senado Federal, por um colegiado integrado por todos os juízes do País, idem para membros do Ministério Público, para os advogados, e assim por diante. Em todos os países, os membros das cortes supremas são escolhidos por uma ou mais de uma instituição. Na Itália, há uma pluralidade de instituições e colegiados que se revezam na escolha. A pluralidade é o caminho para que nenhuma autoridade ou instituição possa escolher mais de um ministro sucessivamente – ressalta.
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