Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 3 de maio de 2024


País

"Os subsídios são irracionais", avalia economista

Gustavo Coelho

26/05/2008

Os países mais ricos estão equivocados, precisam rever a controversa política de subsídios agrícolas. Apesar da receita eloqüente, é possível enxergar nuances de otimismo no prognóstico do economista Márcio Garcia, professor da PUC-Rio. Para o especialista em finanças, macroeconomia e economia monetária, a atual crise dos alimentos representa uma oportunidade única de os países mais pobres pressionarem pela redução dos subsídios nas nações desenvolvidas. Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, Garcia radiografou os aspectos mais relevantes da crise, explicou o impacto da alta cotação do petróleo e analisou a polêmica dos biocombustíveis.

- A atual crise dos alimentos é grave ou está recebendo um tratamento exagerado?

- A crise está recebendo um tratamento normal. Quando há um fenômeno como este, em que as camadas mais pobres dos países mais populosos começam a ter dificuldade de acesso a alimentos, é natural que haja uma mobilização. O que está acontecendo é derivado do bom estado da economia mundial. Como a economia mundial tem crescido, grandes contingentes da população de países como China e Índia passam a ter acesso a alimentos que antes, tanto em quantidade quanto em qualidade, não estavam disponíveis. A demanda por alimentos subiu muito, e isso fez com que o preço dos alimentos também subisse. Simultaneamente, houve um equívoco de política por parte do governo dos Estados Unidos, que resolveu fazer biocombustível a partir do milho. Esta é uma tecnologia destrutiva e pouco eficiente, já que tudo aquilo que entra na produção destrói energia liquidamente. Isso não acontece na cana-de-açúcar, por exemplo. Basicamente, a crise dos alimentos é causada pelo sucesso do mundo em crescer e por esse equívoco de política do governo norte-americano, que talvez se corrija, parcialmente, com a saída do presidente Bush. Mas, como em qualquer sistema econômico, há embutida uma forma de regular. Como a demanda está levando a uma alta do preço, a produção de alimentos é incentivada, o que deve levar a uma acomodação no futuro. Pode demorar.

- Como este "equívoco político" dos Estados Unidos pode ser reduzido, corrigido? Não falta a chamada vontade política ou vontade econômica?

- É complicado. A política beneficia muitos agricultores, que são de estados importantes em eleições. Mas, como o custo para a sociedade americana vem sendo alto, presumo que alguma coisa seja feita. O milho entra em praticamente tudo quanto é comida nos Estados Unidos. Até a Coca-Coca tem um colorante que vem do milho. Afeta a dieta da população. Recentemente, um grupo de senadores redigiu uma carta à Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, pedindo que se use certo rigor para não exigir tão fielmente que a gasolina seja misturada com uma determinada quantidade de etanol. Isso mostra que, apesar da força dos estados produtores de milho, o aumento do preço dos alimentos está se tornando relevante.

- Os Estados Unidos têm uma dieta baseada em alimentos que levam milho. Isso significa que os americanos são os mais prejudicados com a crise? Quem levaria a pior, os países mais ricos ou os mais pobres?

- Os mais pobres, claro. Quanto menos renda, menor é a capacidade de compra, e conseqüentemente a população será mais afetada por uma alta nos preços dos alimentos.

- Os países ricos alegam que os mais pobres precisam valorizar a produção dos alimentos. Já os pobres atacam a política de subsídios intensa. Quem está com a razão? 

- Neste caso, os países ricos estão errados. Eles subsidiam a produção agrícola de uma forma irracional. Os subsídios são construídos com base na barganha política entre as gerações. E os políticos que tentam combater os subsídios ficam mal vistos. A atual crise, portanto, representa uma oportunidade ímpar para que este status quo nocivo seja modificado. Os agricultores franceses e americanos usam os subsídios para receber pelo preço que julgam razoável. Mas, se os preços já são altos, a política se torna desnecessária. É o momento certo de eliminar os subsídios. O sistema compromete muito a produção agrícola no mundo.

- Como este confronto de forças e a possível redução dos subsídios afetaria o Brasil?

- No caso do Brasil, os preços que recebemos não seriam mais tão baixos. Se os subsídios forem retirados, a perspectiva melhora muito. O Brasil poderia aumentar a sua produção. Sobre a necessidade de os países elevarem a produção de alimentos, acredito que isso é particularmente verdade.

- É possível conjugar a necessidade de aumento da produção de alimentos com as mudanças climáticas e as demandas ambientais?

- Aqui no Brasil, não é preciso desmatar mais nada. Basta só transformar pasto em agricultura. Temos grande parte da reserva mundial de terras aráveis para aumentar nossa produção agrícola. A introdução de novas tecnologias faz com que isso seja ainda mais eficiente. Há uma oportunidade enorme para o Brasil. Ao contrário do que muitos dizem, a agricultura está fadada a trazer grandes riquezas. A salvação do país não está a indústria, que não é necessariamente o pólo dinâmico do Brasil.

- O senhor acredita que os países ricos podem aliviar a política dos subsídios no curto prazo?

- Se houver boas cabeças puxando este projeto, existe uma chance. Resistências sempre haverá, mas são menores agora. Tem que haver uma dose de otimismo.

- A China também está no centro da crise dos alimentos. Como conciliar a forte expansão chinesa com as demandas mundiais por alimentos, por energia limpa, por proteções ambientais?

- É complicado chegar para um sujeito que estava passando fome e falar que a nova dieta dele está prejudicando nosso magnífico banquete. Não podemos ir por aí. A redução do crescimento da China teria possíveis repercussões políticas e econômicas muito grandes. Trata-se de um país fortíssimo, que tem armas nucleares e sempre foi instável para ser gerido.

- Um dos vilões da crise dos alimentos e das derrotas ambientais é o petróleo. É possível enxergar um horizonte azul com a crescente alta da cotação do barril? 

- O petróleo alto prejudica qualquer coisa, porque tudo precisa ser transportado. No caso dos alimentos, o petróleo entra em vários outros estágios da cadeia de produção. Tratores e fertilizantes, por exemplo, são intensivos em petróleo. O preço do petróleo está exagerado por conta de uma demanda muito grande. Além disso, as decisões que explicam a capacidade produtiva de hoje foram tomadas há dez anos, quando o preço estava num patamar bem mais baixo. Em meados da década de 90, a revista “The Economist” chegou a especular que o petróleo poderia ficar barato para sempre. Depois fizeram o mea-culpa num editorial.  Tomar decisões de investimento com o petróleo a dez dólares é uma coisa, com cento e cinqüenta é bem diferente. Medidas já estão sendo tomadas para reduzir o preço do petróleo, mas só devem fazer efeito em cinco anos, mais ou menos. Os poços gigantes que a Petrobras está descobrindo só vão começar a ser produzidos em 2015 ou 2020, então vai demorar.

- O senhor acredita que a produção do petróleo pode um dia voltar ao patamar de dez dólares?

- Não vejo cenário para isso. A economia mundial precisaria parar de crescer, entrar numa grande recessão. Exceto pelo petróleo barato, não gostaríamos do resto. O petróleo estaria barato, mas não haveria emprego. E não haveria dinheiro para comprar nada.

- Os países ricos alegam que a expansão dos biocombustíveis poderia ser devastadora. O senhor concorda ou acha a crítica exagerada?

- Totalmente exagerada. Há uma diferença muito grande entre o etanol de milho e o de cana. O Brasil continua produzindo mais alimentos e, ao mesmo tempo, mais etanol. Não comprometeu nada, muito pelo contrário. No caso do Brasil, nós podemos expandir bastante nossa cultura, tanto de alimentos quanto de cana para fazer etanol. Para nós, esta crítica é completamente exagerada. Nisso o presidente Lula está com 110% de razão.

- O Brasil deveria explorar todo o potencial de terras ou o correto é controlar a exploração por causa das questões ambientais?

- Aparentemente, não há questões ambientais relevantes. É tudo pasto. Questão relevante é o desmatamento na região Amazônica, que precisa ser controlado. Mas há grande possibilidade de fazer a expansão sem utilizar essas terras. É só taxar mais a terra de pasto. Ou se faz agricultura ou se vende.

- Seria uma reforma agrária por tributação?

- Em geral, as reformas agrárias que dão certo têm este componente. Não só no campo, mas nas cidades. Um projeto do gênero foi o desenvolvido por Antonio Carlos Magalhães, que ocupou toda a orla de Salvador apenas taxando.

- Em geral, os países que sofrem mais com a fome são também os que têm ampla área para a produção de alimentos, como países africanos e até parte do Brasil. Como resolver esse paradoxo?

- Não diria que o Brasil sofre com a fome. Não mais. Segundo os dados mais recentes, há muita desigualdade e miséria, mas fome já não é mais um problema nosso. Nos países africanos, a questão é de outra ordem, bem mais complicada. Temos muito que melhorar, mas a nossa estabilidade democrática contrasta bastante com os genocídios e a enorme instabilidade política de várias nações africanas, que têm grande efeito sobre a economia. Nesse sentido, estamos bem melhor. Mas não podemos parar por aí.

- Por quanto tempo o fantasma de uma nova crise dos alimentos vai assombrar o mundo?

- Não sabemos. Temos que olhar com muito mais minúcia. Mas a indicação básica vem do mercado futuro de alimentos.

 - Considerando-se fatores como o ritmo de crescimento mundial, especialmente dos países emergentes, e a demanda em alta por biocombustíveis, o reequilíbrio entre a oferta e procura por alimentos não seria um sonho distante?

- Acredito na superação. Na história do pensamento econômico, Thomas Malthus previu o fim da humanidade porque os alimentos cresciam em razão aritmética, e as populações em razão geométrica, e isso em algum momento não ia dar. Mas estas previsões se equivocam de forma incrível porque não vêem os mecanismos que os mercados e a sociedade têm de prover a volta ao equilíbrio. O aumento do preço, em geral, causa aumento de produção. É nisso que precisamos nos concentrar. Se retirarmos os subsídios, a capacidade de investimento aumenta, e a produção aumenta também. Assim, o preço diminui e surge um novo equilíbrio. O mecanismo de auto-correção dos mercados precisa ser aproveitado. É claro que não resolve tudo, mas ajuda bastante.

- Parte da solução viria da mesa de negociação internacional. Qual a sua expectativa para a Rodada de Doha?

- Espero que prevaleça o bom-senso e os subsídios praticados pelos países mais ricos possam ser muito diminuídos.