Publicada em: 25/06/2008 às 16:58
País


"O Sol", um jornal contra o vento da ditadura
Letícia Simões

“O Sol nas bancas de revista/Me enche de alegria e preguiça/Quem lê tanta notícia?” Inevitável não lembrar de Alegria, Alegria quando se fala do Sol. É até clichê. Mas que melhor homenagem poderia receber um pequeno jornal, senão ficar marcado por uma letra de Caetano Veloso?

Obviamente, Alegria, Alegria toca algumas vezes no documentário “O Sol – Caminhando contra o vento”, de Martha Alencar e Tetê Moraes, exibido no auditório lotado da PUC-Rio, em 2007. Jovens atentos acompanharam o desfile de jornalistas, compositores e artistas na tela.

A história do jornal alternativo, idealizado pelo poeta Reynaldo Jardim e tendo como editora-chefe a jornalista Ana Arruda Callado, se confunde com a história de Martha Alencar, presente na exibição. No último dia 19 de maio, Ana Arruda Callado veio à universidade contar como tinta e papel se transformavam em munição contra o autoritarismo. Ela participou do ciclo “A Imprensa em 68”, organizado pelos jornalistas Carla Siqueira e Chico Otávio, do Departamento de Comunicação. 

Para entender o peso do jornal “O Sol” no front da democracia, é preciso conhecer os caminhos percorridos por Martha e Ana. Em 1962, Martha Alencar começou a trabalhar no “Globo”. Dois anos depois, viu os militares tomarem as rédeas do país com um golpe, a liberdade ser cercada e a censura se instalar nos meios de comunicação.

– “O Globo” tinha um processo de censura interna muito grande. Não se tratava disso ou daquilo no jornal. As redações eram compostas de gente ansiosa por liberdade – lembra.

Somada ao constrangimento da censura estava a vontade de largar a segurança do grande jornal e partir para algo novo, contestador, inovador – o sonho de todo profissional. Em 1967, a primeira edição de “O Sol” chegava às bancas como suplemento do Jornal do Sports. Martha diz não lembrar de algo parecido na imprensa, fala repetida por Gilberto Gil no documentário: “O Sol foi seminal para a imprensa alternativa”. As grandes publicações alternativas de resistência à ditadura – “Pasquim”, “Opinião”, “Movimento” – viriam só mais tarde.

Pelo “Sol” passaram nomes como Ziraldo, Zuenir Ventura, Arnaldo Jabor, Chico Buarque e Carlos Heitor Cony. Martha assinava a parte de cultura – um espaço para a discussão do Brasil naquela época, um lugar para se pensar o país, segundo ela. (Bem diferente de espaços atuais, recheados de celebridades instantâneas). O sonho da equipe era atingir o grande público, não apenas os estudantes e jornalistas, fiéis leitores.

Independente por natureza, sem anunciantes nem distribuição, não durou muito. Sua máxima tiragem reuniu 70 mil exemplares diários. Em 1968, “O Sol” deixava de rodar. Martha foi para o “Jornal do Brasil” – onipresente quando se fala da resistência da imprensa à censura – trabalhar no Departamento de Pesquisa, algo difícil de imaginar na era do Google e da Wikipédia.

– Não havia um repórter que fosse para a rua sem passar pela pesquisa antes, Era um centro de arquivamento de informações – define a jornalista.

No ano seguinte, Martha foi obrigada a fugir: a polícia a procurava por conta do editor do departamento. Ninguém menos que Fernando Gabeira, envolvido no histórico seqüestro do embaixador americano. Ao voltar para o Brasil, veio o convite: que tal comandar a redação de um jornal com tiragem de 200 mil exemplares, cuja base era o humor? Martha virou secretária de redação do “Pasquim”, cargo criado especialmente para ela.

Em “Vale Tudo”, biografia de Tim Maia, Nelson Motta conta a difícil e fracassada entrevista dada por Tim e Rita Lee à equipe do “Pasquim” – incluindo a jornalista. A estratégia era embebedar os entrevistados e esperar as revelações. Mas os amigos Tim e Rita não aceitaram nada – estavam sob a influência de outras coisas.

A estratégia quase sempre vitoriosa – rendeu entrevistas memoráveis – foi relembrada no documentário. “O Pasquim usou o humor para fazer uma crítica muito mais contundente da ditadura”, observa Martha. A conseqüência óbvia da anarquia e da crítica ácida foi a prisão dos redatores. Martha ficou presa apenas um dia – estava grávida. Com isso, a secretária de redação criou a gripe do “Pasquim”: o pessoal estava doente, e outros vinham colaborar. “Era um lugar de pessoas engraçadas, malvadas, inteligentes – e com um ego muito grande. Os escritores foram perdendo o brilho inicial”, assim ela resume o fim do jornal.

Martha hoje é produtora de cinema. Largou o jornalismo depois de uma experiência “complicada” como secretária de Imprensa do governo Leonel Brizola, em 1982. Mas ainda considera a profissão fascinante e conta que, como jornalista, conheceu, aprendeu e conviveu com pessoas extraordinárias:

– Elas estavam ali para defender a verdade.

O Sol

 “Che Guevara pode estar vivo”. Enquanto todos os jornais brasileiros noticiavam a possível morte de Guevara, “O Sol” apostava na sobrevivência. A manchete ilustra o DNA do primeiro jornal alternativo no Brasil pós-golpe militar de 64.

Idealizada pelo poeta Reynaldo Jardim e comandado pela jornalista Ana Arruda Callado, a publicação inovava na diagramação (para poder ser lido no ônibus, dobrado, cada matéria ocupada apenas um quarto da página) e no formato (era um jornal-escola, no qual os estudantes egressos das faculdades de jornalismo podiam aprender ao mesmo tempo em que tinham a responsabilidade de pôr o jornal nas bancas).

Carlos Heitor Cony, Ziraldo e Ricardo Gontijo foram alguns de seus editores. Nelson Rodrigues, Arnaldo Jabor e Henfil, alguns dos colaboradores. Os estagiários-jornalistas contavam também com Otto Maria Carpeaux e Sérgio Lemos, orientadores à disposição. “O Sol” ainda introduziu na linguagem jornalística expressões do dia-a-dia, influenciando publicações posteriores, como o próprio “Pasquim”. Durou pouco tempo, mas marcou a história da imprensa brasileira


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