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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


Mundo

“Dez por cento de radicais não representam a cultura islâmica”

Júlia Zaremba - Do Portal

20/09/2012

 Reprodução da internet

Durante a última semana, páginas dos jornais e horas de noticiários foram dedicados à onda de manifestações no Oriente Médio. O suposto catalisador dessa revolta, um vídeo de 14 minutos intitulado A inocência dos muçulmanos, foi alvo de debates e especulações. O filme, dirigido pelo egípcio Nakoula Basseley Nakouda, nos Estados Unidos, mostra o profeta Maomé sob uma visão nada convencional, um mulherengo, molestador de crianças e sanguinário, que se refere ao Islã como “uma religião de ódio”. O trailer já foi visto por mais de 10 milhões de pessoas ao redor do mundo.

A resposta foi uma reação violenta por parte dos muçulmanos mais radicais, que já gerou mais de 30 mortes e ataques a sedes de embaixadas e consulados americanos na Líbia, Egito, Tunísia, Sudão, Paquistão, Israel, Jordânia e Iêmen. Por causa das manifestações, o presidente do Egito, Mohamed Mursi, cancelou sua visita ao Brasil, marcada para o dia 28 de setembro.

Para o historiador Márcio Scalércio, professor do Departamento de Relações Internacionais, a indignação com o filme não foi a única motivação para os ataques, como na Líbia, por exemplo, onde serviu de pretexto para justificar ações orquestradas por grupos religiosos radicais. Uma delas, a vingança pela morte do número dois da Al Quaeda, Al Libi, assassinado em junho por um avião não tripulado norte-americano. Mauro Pimentel 

– Não podemos generalizar, em cada região houve uma motivação. O episódio da Líbia, primeiro e mais violento, estava orquestrado para ser violento mesmo, visando à invasão da embaixada americana e a fazer o maior número de vítimas. A expansão das manifestações para outros países muçulmanos pode ter acontecido em protesto ao filme.

Murilo Sebe, professor do Departamento de História, associou a morte do cônsul americano Christopher Stevens à participação dos Estados Unidos na queda do ditador líbio Muammar Kadafi. Também acredita que as reações estariam vinculadas à política externa agressiva dos países ocidentais nos últimos anos.

– Diferentemente da Primavera Árabe, não me parece um movimento transnacional. É claro que ocorre em locais distintos e é coordenado, mas é motivado também por questões internas.

Sebe, que considerou o filme “caricato e ridículo”, acredita que o trailer trouxe à tona tensões deixadas de lado na primavera árabe, contribuindo para que grupos radicais reconquistassem o espaço perdido na sociedade, como os Hezbollah. Porém, ressaltou que a ação deles não pode ser vista como expressão da cultura árabe e islâmica em geral:

– Dez a 15 por cento de radicais não podem representar a totalidade. Nenhum dos movimentos teve mais de 2 mil pessoas envolvidas.

As ofensas não se concentram na figura do profeta Maomé. A situação política atual do Egito também é criticada pelo diretor, que é de origem egípcia copta cristã. Ao produzir o filme, o diretor contrariou um dos preceitos do islamismo: não mostrar a imagem do profeta nos filmes.Stephanie Saramago 

– O Islã tem restrições à produção artística sobre as coisas feitas por Deus, por isso tem desenvolvido tanto a arte abstrata e a caligrafia – exemplifica Scalércio.

Outros episódios nas últimas décadas mostram o quanto a questão religiosa é delicada. O filme Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard, lançado em 1985, foi proibido no Brasil; em 1988, sacerdotes se manifestaram em frente aos cinemas e recomendaram que fiéis não assistissem ao filme A última tentação de Cristo, do diretor Martin Scorcese; em 2004, o cineasta holandês Theo van Gogh foi morto por um extremista islâmico após dirigir um filme que criticava o tratamento às mulheres muçulmanas. 

– Não é o Islã que é especialmente extremista; acho que toda vez que religiões são envolvidas em situações como essa, há reações e protestos. Nem sempre com violência, porque temos que levar em conta os aspectos políticos do Oriente Médio e as características da região que provocam esse tipo de situação – analisa Scalércio.

Como consequência, o professor de história acredita que os eventos vão ser explorados na campanha presidencial norte-americana, e que os democratas têm que manejar a crise de modo cuidadoso. O professor destaca que governos de países muçulmanos estão tentando conter as manifestações, principalmente após o presidente Obama afirmar que “não considera o presidente do Egito inimigo ou aliado”.

– Foi um aviso. Eles recebem ajuda militar e muito dinheiro dos Estados Unidos, e o fim disso poderá representar dificuldades entre o presidente do Egito e os militares. Os governos do Paquistão e da Líbia também estão sendo muito assertivos no repúdio às manifestações e no apoio a ideia de segurança nas embaixadas.

Murilo Sebe acredita que a sucessão de eventos é uma grande oportunidade que os Estados Unidos têm de repensar sua política para o Oriente Médio:

– A política inicial de pacto com ditaduras e regimes autoritários para a manutenção de ordem coercitiva na região não funcionou. Não é à toa que eles são o alvo principal das manifestações, sobretudo pela inabilidade política.