Vera Novello* - Do Portal
06/09/2012Todo mundo tem pelo menos um conhecido que não perde um capítulo da novela Avenida Brasil no horário nobre da TV Globo. Ao que parece a diversão é garantida, sem contar que o acesso é facílimo. Mesmo intelectuais que em geral não morrem de amores pelo gênero têm elogiado a novela e muitos publicitários já sabem que associar um produto ou serviço a qualquer personagem da novela é garantia certa de ter pelo menos dois segundos da atenção do público. Alguém ainda tem dúvidas quanto ao sucesso absoluto de Avenida Brasil?
Os altos índices de audiência da novela justificam-se pela combinação de uma trama inusitada com uma cenografia não realista e elenco de primeiríssimo time. Mas acho que o que está prendendo o público é mesmo a teatralidade na construção das cenas. A mesma teatralidade que tem atraído os espectadores para outros dois eventos que estão bombando na mídia: o Julgamento do Mensalão e o Horário Eleitoral, cada um a seu modo.
Há em Avenida Brasil uma teatralidade em grau máximo – a cumplicidade entre os personagens da novela e o público se estabelece principalmente através de um código regido pelo exagero – o exagero nas coincidências da trama, na ambientação das cenas e, principalmente, nos gestos que expressam as emoções e intenções dos personagens. Os atores improvisam muito em cenas super tumultuadas. Há ainda um número descomunal de vilões – nas novelas há em geral um núcleo de heróis que combatem os vilões. Em Avenida Brasil esse modelo foi deixado de lado – todos traem e mentem muito o tempo todo. Impossível confundir estes personagens com as pessoas do mundo real. Montando assim sua trama, o autor evitou a identificação fácil do público com os personagens e apostou todas as fichas na relação de afastamento que possibilita mais reflexão. E como não está dito em nenhum manual que pensar sobre a sociedade tem que ser um ato sério e racional, pelo exagero, a novela ganha ainda um tom cômico que agrada o público. João Emanuel Carneiro acertou em cheio a inteligência e o emocional do público. Quando a novela acabar, em outubro, o público vai sentir falta.
Se encarado como uma espécie de reality show, o julgamento do “mensalão” também tem atraído muitos espectadores pela teatralidade contida no próprio ritual da Justiça. Estamos falando do julgamento que deverá passar para a história como o mais longo já realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Seus personagens – réus, testemunhas, advogados, o relator, o revisor, o promotor, Ministros do Supremo, o Presidente da Corte, Juízes e tantos outros – se convertem, em personagens no exato momento em que a mídia os coloca em cena mostrando uma espécie de confinamento na “Casa” do STF em Brasília, que só terminará quando a última sentença for proferida. Quem vai para o paredão? Não será o espectador a votar de casa, mas mesmo assim seu olhar atento à tela da TV ronda a consciência dos “personagens” que sabem que estão sendo assistidos pelos eleitores dos quatro cantos do país, os mesmos que serão convocados às urnas nas próximas eleições municipais. O motivo pelo qual o público não quer perder este julgamento é que a condenação dos réus pode significar o estabelecimento de um novo padrão ético na conduta da vida pública da classe política brasileira. Mas será que é possível conceber um mundo regido por leis imparciais, imunes às ideologias a partir das quais estas mesmas leis foram concebidas?
Quando George Orwell, em seu clássico romance 1984, cunhou o termo “Big Brother” (O grande poder) e apresentou um mundo em que “teletelas” vigiavam o comportamento ideológico dos cidadãos para que o Estado pudesse reprimir quem ousasse ir contra a ideologia vigente, certamente o autor não poderia imaginar a apropriação do termo pela estética dos reality shows dos dias de hoje, dentre os quais o Big Brother da TV Globo é o mais popular. Este Big Brother que chegou aos lares brasileiros, como um jogo que conta com a participação do público, exercita uma espécie de olhar bisbilhoteiro sobre o comportamento humano que possibilita julgar as condutas dos participantes e decidir, através do voto, quem merece continuar disputando o prêmio final do jogo. Esta interatividade do programa, que é aparentemente puro entretenimento, vem transformando a recepção do público e nos mostra o quanto um aparato da mídia pode aguçar novas percepções na decodificação de um espetáculo midiático.
No Julgamento do Mensalão, convertido em espetáculo pela TV, o público vai bisbilhotando e torcendo de casa. Na impossibilidade de conhecer a fundo as tramas palacianas que envolveram expoentes da campanha e do governo petista, resta intuitivamente observar as ações e reações durante o julgamento. Convence o público aquele que melhor manipular a reconstituição dos fatos que vieram a público a partir de 2005, quando o “esquema” foi denunciado. O confronto das versões, que poderia ficar restrito ao tribunal está sendo transmitido em tempo real. Vale o calor da cena. As sessões do julgamento são longas, mas os espectadores podem se deleitar com os substratos veiculados pela televisão ou via internet. O público “espia” quando quer ou quando pode. E, mesmo sem estar familiarizado com o ritual de um julgamento, vai entendendo a partir das cenas, que papéis cada um dos personagens está desempenhando, e que forças se antagonizam. Elementos visuais como a postura corporal, o carisma pessoal, a experiência política, efeitos de retórica, também ajudam o espectador a se posicionar pela condenação ou absolvição dos réus, mesmo que desconheçam os detalhes dos processos. Não faltam provocações e impropérios – e “barraco” quase sempre atrai público. Mas o principal é que este espetáculo já está repercutindo nas campanhas para as próximas eleições municipais – políticos devem repensar as estratégias para chegar à vitória e o eleitor começa a ficar mais exigente.
Aliás, o Horário da Propaganda Eleitoral Gratuita é outro espetáculo midiático imperdível, que também revela um aspecto da teatralidade inerente ao poder. Diferentemente do que acontece em “Avenida Brasil” e no Julgamento do Mensalão, muita gente desliga a televisão quando os candidatos vêm vender o seu peixe no horário nobre da TV. Mas eu aconselho a quem tem algum apreço pela arte da interpretação, que fique na sala e não desligue o aparelho. Nestas eleições além das apresentações das propostas dos candidatos, o eleitor está sendo advertido através da campanha oficial do TRE, a votar em candidato “ficha limpa”. Me pergunto se alguém deliberadamente votaria em candidato “ficha suja”? Mas, por outro lado, quem pode impedir alguém de votar com convicção no candidato ficha suja se esta for a sua vontade? Não me oponho a educar o eleitor para o voto, mas a tarefa não é das mais simples. Não sei se o tempo desta campanha surtirá efeito imediato. Quanto à apresentação dos candidatos, ela se dá nas mais variadas circunstâncias – em vídeos toscos ou super bem produzidos, de duração curta ou curtíssima, com candidatos sozinhos ou acompanhados por outros políticos, em cenas de estúdio ou gravadas na rua, ao lado dos “eleitores”.
Mais uma vez a regra é lidar com um princípio básico da teatralidade do poder: mais do que ser um bom candidato, é preciso parecer ser o melhor candidato. Os procedimentos para isso são a apresentação de um saldo positivo de mandatos anteriores, a listagem de promessas que correspondem ao diagnóstico das carências da sociedade ou ainda a acusação (direta ou indireta) dos malfeitos de candidatos concorrentes. Quanto menor o tempo para o candidato, mais ele se apressa em gritar seu nome e número ou em mandar um recado para um eleitor muito específico, a quem ele sabe que pode convencer com facilidade, independente de quão ridícula seja a imagem veiculada. Todos querem seus segundos para tentar convencer que aparentam ser tudo aquilo o que o eleitor espera de um candidato e assim merecer o seu voto. Na pior das hipóteses o candidato vai à TV para ter seus poucos segundos de fama e ganhar os votos “de protesto” de uma população que não quer se dar ao trabalho de conhecer candidato algum ou que acha que está marcando uma posição política ao tentar desmoralizar o próprio sistema eleitoral ou a classe política brasileira.
Seja como for, assistir ao Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita pode ser muito divertido e educativo. Aliás, as três programações – a novela “Avenida Brasil”, o Julgamento do Mensalão e o Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita – podem converter-se em excelentes exercícios de decodificação, fundamentais para quem vive em uma sociedade como a nossa, que transforma tudo em espetáculo.
* Professora de Comunicação e Teatro na PUC-Rio
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