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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Crítica de Cinema

Walter Salles acende o sinal verde para a cultura beatnik

Tiago Coelho - Do Portal

17/07/2012

Divulgação

Muito antes de os Rolling Stones gritarem para o mundo inteiro que se sentiam insatisfeitos, os personagens do livro On the road (1957), de Jack Kerouac, já o haviam feito, tornando a obra o retrato de toda uma geração e criando uma zona de influência que se estende por décadas na literatura, na música e, principalmente, nos costumes. O livro, que o The New York Times qualificou como um “evento histórico que desvenda o espírito de uma época”, e a Times acusou de “dar fundamento explosivo à juventude” (anos mais tarde a revista o elegeria um dos 100 melhores de língua inglesa), mantém sua aura mítica. Teve o mérito de não apenas revelar ao mundo as transformações que ebuliam nas cabeças jovens daquela época, mas conseguiu antecipá-las antes que entrassem em total combustão nos movimentos contestatórios de 1968.

 Divulgação Do rock ao movimento hippie, da liberdade sexual ao divórcio, o romance de Kerouac, pai do movimento beat (por ele mesmo assim batizado, embora jamais tenha dado uma explicação lógica para este nome), trouxe à tona os anseios da juventude do pós-guerra que se sentia cansada, pressionada e inadequada ao “estilo de vida americano” e à pungente sociedade de consumo que se construía, onde o sucesso profissional e financeiro separava vencedores de perdedores. Kerouac, porém, não teorizou ou filosofou as mudanças de comportamento, ele as vivenciou nos bares de Nova York, nas casas de jazz do sul da América, nas highways do Oeste, tudo isso “na estrada”, como aponta o título do livro. O escritor morreu em 1969, aos 47 anos, isolado do convívio humano no alto de uma colina, carregando o peso de ter compartilhado no livro (ou seria diário?) os sete anos que passara viajando pelas estradas da América, criando seu próprio sonho americano.    

Depois de muitas tentativas, 27 anos depois de seu lançamento, o livro enfim vira filme nas mãos do brasileiro Walter Salles. Apesar da bilheteria na estreia em circuito nacional (69 mil espectadores no fim de semana), o badalado Na estrada – on the road (2012) faz o que dele se espera.

Walter Salles pelas estradas 

On the road (2012) não é o primeiro filme de estrada do cineasta brasileiro. Desde o premiado Terra Estrangeira, o diretor tem contado a história de personagens que estão sempre fugindo da solidão, de seus problemas, histórias e passado, dirigindo nas estradas do Brasil e do mundo. Seja no interior do nordeste, em Portugal, na América Latina ou nos Estados Unidos, Salles conduziu seus filmes pelas estradas do mundo afora.

Terra Estrangeira (1996)

No momento da retomada do cinema brasileiro, Walter Salles dirigiu com Daniela Thomas o filme que trata da imigração dos brasileiros no início da década de 1990, fugindo da crise econômica que assolava o país. Logo após o confisco do governo Collor, Paco (Fernando Alves Pinto) vai para Portugal levando uma “encomenda” suspeita para traficantes de drogas do país do fado. Lá, no exílio forçado pela falta de oportunidades no Brasil, ele encontra abrigo na proteção e amizade de Alex, interpretada pela atriz Fernanda Torres, que canta uma inesquecível interpretação de Vapor Barato, do poeta e compositor Wally Salomão, enquanto percorre uma rodovia que liga Portugal a Espanha . (Assista aqui)

Central do Brasil

Neste filme de 1998, que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz para Fernanda Montenegro que interpretou Dora, Walter Salles fala de um país pós-plano real onde imigrantes nordestinos levam uma vida difícil nas grandes capitais, longe de suas famílias. A professora aposentada Dora vive de escrever cartas para pessoas analfabetas na estação da Central do brasil, no Rio. Ela, no entanto, nunca entrega as cartas que escreve. Até que um dia sua vida se cruza com Josué (Vinícius de Oliveira), menino pobre recém chegado do nordeste que perde a mãe vítima de um atropelamento. Para entregar o menino a sua família, Dora irá cruzar o Brasil até o sertão nordestino, criando uma forte amizade com Josué. (Assista aqui)

Diários de Motocicleta

A produção, de 2004, conta a história do líder revolucionário Che Guevara, antes do mito que se tornou depois Revolução Cubana, o jovem e recém-formado em medicina Ernesto parte com o amigo Alberto Granado pelo interior da América Latina, testemunhando a pobreza e a indignidade dos povos desta região. (Assista aqui)

Linha de Passe

Desta vez os personagens deste filme não viajam para muito longe, mas o pequeno Reginaldo passa o dia circulando pelas estradas da cidade de São Paulo em busca do pai, que ele acha ser motorista de ônibus, e cuja identidade é omitida pela mãe Cleusa, interpretado pela atriz Sandra Coverloni que ganhou o Cannes de melhor atriz em 2008. (Assista aqui)

Coppola, produtor do longa, que há 20 buscava os direitos da história, escolheu Salles pela quilometragem do diretor em filmagens em rodovias (veja texto ao lado). O cineasta agarrou a oportunidade e fez uma competente e respeitosa adaptação do clássico beatnik. Fiel à narrativa, Walter Salles, no entanto, deixa escapar pelas mãos algo da poesia da obra, do respiro dos personagens e do silêncio inquietante de suas angústias, coisa que soube fazer com maestria em Diários de Motocicleta (2004) e no premiado Terra Estrangeira (1996), um dos melhores filmes da retomada do cinema brasileiro.

Se o On the road desliza ao não dar espaço para uma elaboração um pouco mais ampla da vida interior dos personagens, os protagonistas Sam Riley (que viveu Ian Curtis, o atormentado líder da banda Joy Divison, em  Control, 2007) e Garrett Hedlund (Troia, 2004), garantem o carisma e a vitalidade do longa, interpretando respectivamente o escritor nova-iorquino Sal Paradise e seu amigo transgressor e liberal Dean Moriarty, que o leva para desbravar a América sobre quatro rodas (Veja abaixo a entrevista com o escritor brasileiro que refez a rota nas estradas percorridas por Jack Kerouac presentes na narrativa).

No elenco feminino, Kristen Stewart (Crepúsculo) prova que consegue dar alguns passos além da mocinha apática da trilogia de filmes de vampiros igualmente insossa. Interpreta com empenho a despudorada Marylou, que forma um tórrido trio amoroso com Dean e Sal. Mas quando se compara à interpretação de Kirsten Dunst, no papel de Camille, rival de Marylou na vida de Dean Moriarty, Dunst mostra a Stewart a diferença de uma atriz que mergulha em águas profundas para aquela que apenas molha os pés na superfície. Alice Braga, em rápida e marcante, porém descontextualizada, participação, mostra por que é uma das jovens atrizes mais requisitadas do cinema mundial. Divulgação

A trilha musical, assinada pelo músico argentino Gustavo Santaolalla, que trabalhou com Salles em Diários de Motocicleta, é outro aspecto agradável. Pois On the road é um livro sonoro. Reúne expoentes do jazz e da música folk, como Ella Fitzgerald, Coati Mundi, Son House e Slim Gaillard,este citado no livro de Kerouac. As cenas em que os personagens dançam freneticamente aos acordes do jazz e de outros ritmos "negros" é uma das melhores sequências do longa. Uma breve aula da origem da música contemporânea e de como a cultura negra superou o racismo e foi essencial para o jazz, o blues, o rock’n’roll, a soul music, o r’n’b que até hoje domina os sucessos da música pop mundial.

Como a linguagem cinematográfica, por sua natureza, é diferente da narrativa literária, torna-se injusto comparar livro e filme. Por outro lado, fica complicado não fazê-lo quando se assume o risco de adaptar uma obra tão significativa na história da literatura contemporânea. Walter Salles assumiu o risco com coragem, para apresentar uma história de um mundo que parece cada vez mais distante, quase folclórico.

O movimento hippie, profundamente influenciado pelos ideais beatnik, é apenas uma imagem lendária e saudosista. O ideal capitalista venceu, mas as propostas liberais de comportamento também tiveram suas conquistas. Os modelos propostos por Kerouac estão intrinsecamente ligados à sociedade ocidental que experimentamos hoje. Mas a roda do mundo girou, adquirimos novos problemas e questões. O sonho se modificou. O próprio pai da geração beat, com sua visão oracular, nos adianta isso quando coloca os personagens em paradoxo entre o desejo de uma vida desregrada e a necessidade de um lar, de uma família e da segurança de um emprego.

Levar uma vida sem raízes tem seus prazeres, mas também suas dores, e cobra um preço alto. Kerouac sabia disso quando morreu de cirrose, entregue às drogas e à solidão. Contudo, ele nos deixou de herança uma outra possibilidade de conduzir a vida, pisando fortemente no acelerador, e que de alguma maneira ainda buscamos. E Walter Salles faz um belo retrato desses ideais, um pouco preso em uma moldura, mas ainda assim belo e nobre como imortalizado na clássica canção Like a rolling Stones, de Bob Dylan (herdeiro da cultura beat), que diz: “Como se sente? Por estar por sua conta? Sem direção alguma para casa. Como um completo estranho? Como uma pedra a rolar?”

 

 

Escritor brasileiro refaz rota mítica de On the road

Em 2001, pouco depois dos atentados de 11 de setembro, o jornalista e escritor Dodô Azevedo e a fotógrafa Laura Guedes resolveram refazer a rota percorrida por Jack Kerouac nos anos 1950 e que serviu de inspiração para escrever o clássico livro On The Road - Pé na Estrada (1957). O resultado desta experiência é o livro Fé na estrada (Casa da palavra, 2012, R$39,90), que tem prefácio assinado por Walter Salles, e será lançado amanhã na livraria Travessa do Leblon, às 19h. Em conversa com o Portal, o escritor falou sobre o que viu da América pós-atentado, da influência da cultura beatnik na sua carreira e o que ainda vive da obra de Jack Kerouac pelos lugares em que esteve.

Portal PUC-Rio: O que o motivou a refazer os passos de Jack Kerouac pelas rodovias dos Estados Unidos?

 
Dodô Azevedo: Ter constatado que o estrangeiro é quem melhor vê e entende a América. Desde Truffaut falando do cinema de John Ford no Chaiers du Cinema, nos anos 1960, até Wim Wenders em Paris Texas, nos anos 80, e, mais recentemente, Lars Von Trier com Dogville, para ficar no cinema. E desde Jean Braudliard e Flusser, na filosofia. Assim como o trajeto de Ulisses na Odisseia, de Don Quixote, a estrada americana é o trajeto místico a ser feito em nosso tempo. A mãe de todas as rotas.


Portal PUC-Rio: Você inciou a viagem logo após os atentados de 11 de setembro. Que tipos de dificuldades enconcontrou ao cruzar os Estados Unidos nesta época?


Dodô Azevedo: Nenhuma. Mas, sem querer, acabei criando muitas dificuldades. Confundi as palavras hichkiking (mochilando na estrada) com highjacking (sequestrando aviões) e acabei detido no Arizona, por exemplo. Enfrentei um tornado achando que era uma chuva tropical.

Portal: O que o seu olhar de estrangeiro viu de mais surpreendente pelas estradas americanas?

Dodô Azevedo:  Foi constatar que toda a contra-cultura ainda está lá. A América é, no fim das contas, o país mais de esquerda do mundo. Elegeram um presidente negro, regularizaram casamento gay, coisa que aqui no Brasil engatinha. Vendem maconha em lojas na Califórnia, para fins medicinais, em maior escala que em Amsterdã. E foi nos EUA que surgiu, nos anos 1960, o movimento hippie; nos anos 1990, os protestos contra o G20 (gruipo de países mais desenvolvidos) e, mais recentemente, o movimento Occupy (Ocupe Wall Street). Eu esperava encontrar só gente branca e careta. Encontrei indios navarros, jogadores de pôquer misticos, poetas degenerados. 


Portal: O que essas estradas ainda preservam do sonho beatnik? Onde a obra do Kerouac ainda vive nessas estradas?
Dodô Azevedo: Descobri que não vive só nas estradas. Vive em todo o lugar. Kerouac e seus companheiros beats, ao empreender suas viagens, se interessaram, por exemplo, pelo que sempre a Europa havia desprezado: a cultura oriental. Foram os beats que trouxeram para cultura ocidental os valores budistas, a curiosidade pelo conceito de dharma etc. O sonho beatnik está vivo em todas as academias de ioga que existem no mundo, por exemplo. Em toda pessoa que pratica medidação. Em toda pessoa que escreve e lê um poema em voz alta. Em toda garotada que está louca para mochilar em Barcelona. Nos protestos Occupy Wall Street. Nas festas raves. Ou seja, em todo lugar. Na estrada está a essencia, a mais profunda identidade de cada um. Só indo para a estrada, se tem a possibilidade de recuperação dela.


Portal: Na sua opinião, o que mantém viva a influência do livro On the road, 55 anos depois de sua publicação? E como esta obra lhe influenciou como escritor?

 Dodô Azevedo: É a mesma, mesmíssima coisa, que mantém viva as obras de estrada, que o cinema chama de roadmovies. A Odisseia de Homero, Don Quixote, o próprio Velho Testamento, onde os Judeus estão constantemente em trânsito, na estrada, atrás da terra prometida, e no Novo Testamento, onde Jesus põe o pé na estrada para divulgar a palavra divina. É um tema universal. E temas universais não envelhecem. On the road ainda tem o mérito de ser o livro que inventou o conceito de juventude. Até o filme, uma pessoa não tinha direito de ser jovem. Ia da infância direto para a fase adulta. Com 16 anos, uma menina tinha que casar, um garoto tinha que trabalhar, já terno. Em On the Road, Kerouac descobre o jeans com os trabalhadores de minas de carvão, companheiros dele de caronas. Se você usa jeans hoje é por causa desse livro. E,como escritor, outro aspecto fundamental: On the road não é só o relato de uma viagem. É, talvez principalmente, sobre um cara que quer ser escritor e que está tentando escrever um livro, o que ele consegue apenas no fim, e o livro acaba sendo justamente o On the road. Qualquer pessoa que descofia que quer quer ser escritor se identifica com o livro, com os dilemas do seu autor: "será que literatura dá dinheiro?" "não é melhor eu virar funcionario público?". Foi exatamente o meu caso.