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Rio de Janeiro, 24 de abril de 2024


País

Delegado do Dops aceitaria ir à Comissão da Verdade

Caio Lima - Do Portal

24/05/2012

 Caio Lima

Os jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, autores do livro que traz revelações inéditas do ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Cláudio Guerra sobre crimes praticados durante o regime militar.  Eles defenderam que Guerra seja chamado a depor o quanto antes na Comissão da Verdade, que começou seus trabalhos no último dia 16.

Em debate-lançamento do livro, segunda-feira passada, na Livraria da Travessa, Netto lembrou que o ex-delegado é peça fundamental para revelar mais fatos obscuros do período. Em depoimento à dupla de jornalistas que escreveu sua biografia, Memórias de uma guerra suja (Ed. Topbooks, 291 páginas), Guerra – que cumpre pena de 42 anos em regime semiaberto num abrigo para idosos em Vitória (ES), por outros crimes – relata sua participação nos atentados a bomba do Riocentro, em 1981, e ao jornal O Estado de S.Paulo, em 1983; no assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten, em 1982; e na incineração dos corpos de pelo menos 10 militantes de esquerda, até agora considerados desaparecidos, na usina de açúcar Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ).

No livro, escrito em primeira pessoa, Guerra afirma que nunca torturou, mas confessa que seu trabalho era matar e ocultar cadáveres a mando da ditadura militar. Segundo Netto, que, para escrever o livro, manteve contato com o ex-delegado durante três anos, Guerra estaria disposto a colaborar com a Comissão da Verdade.

– É muito difícil investigar os crimes militares e, por isso, o trabalho da comissão deve ser ágil. Ele pode ajudar muito na reconstrução dessa história perdida do Brasil. Vendo os inquéritos com depoimentos e fotos, Guerra pode lembrar outros crimes e seus envolvidos. A comissão precisa correr contra o tempo e ter disposição investigativa – afirmou Netto.

Guerra iniciou sua vida de policial em 1970, como escrivão, na Superintendência de Polícia Civil do Espírito Santo. Entrou para o esquema de repressão às organizações de esquerda em 1972, sendo nomeado delegado distrital, em 1973, e delegado especializado em Crimes contra Economia Pública, em 1974, até chegar ao principal posto do Dops. Pelo desempenho nas execuções, ficou conhecido no Espírito Santo e em Minas Gerais como "bom matador". Guerra assumiu o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) na Região Sudeste em 1975.

Medeiros, o outro autor da biografia, afirmou que, para dar certo, a Comissão da Verdade “deve ouvir as pessoas certas”:

– Devem chamar a depor aqueles que, como Guerra, possam dizer "eu fiz", "eu vi", e não "eu ouvi dizer". E usar essas declarações para desmascarar outras pessoas que praticaram crimes na ditadura – ressaltou.

Mediada pelo jornalista Geneton Moraes Neto, cerca de 40 pessoas assistiram à palestra dos autores, seguida de noite de autógrafos, na segunda-feira, 21, numa área reservada no segundo andar da Livraria da Travessa, no Shopping Leblon. Guerra não compareceu ao lançamento.

Na semana anterior, o senador Paulo Paim (PT-RS) havia anunciado, em plenário, que o ex-delegado receberia proteção policial, após uma suposta ameaça sofrida na madrugada do dia 16, quando três homens discutiram com o segurança da casa geriátrica e insinuaram que matariam alguém ali. O Ministério da Justiça já recebeu dois pedidos de proteção policial, encaminhados à Polícia Federal de Brasília. Assim como a Justiça do Espírito Santo, a PF ofereceu agentes para proteger Guerra, que recusou a ajuda.

Corpos incinerados

“Em determinado momento da guerra contra os adversários do regime, passamos a discutir o que fazer com os corpos dos eliminados na luta clandestina. Estávamos no final de 1973. Precisávamos ter um plano. Embora a imprensa estivesse sob censura, havia resistência interna e no exterior contra os atos clandestinos, a tortura e as mortes”, relata Guerra, que conta ter procurado o ex-vice-governador do Rio Heli Ribeiro, dono da usina Cambahyba, a quem fornecia armas para combater agricultores sem-terra, aliado que “faria o que fosse preciso para evitar que o comunismo tomasse o poder no Brasil”.

Cláudio Guerra narra ter levado até a fazenda o coronel da cavalaria do Exército Freddie Perdigão Pereira, que trabalhava para o Serviço Nacional de Informações (SNI), e o comandante de Marinha Antônio Vieira, que atuava no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), ambos seus superiores: “O local foi aprovado. O forno da usina era enorme, ideal para transformar em cinzas qualquer vestígio humano”.

“A usina passou, em contrapartida, a receber benefícios dos militares pelos bons serviços prestados. Era um período de dificuldade econômica e os usineiros da região estavam pendurados em dívidas. Mas o pessoal da Cambahyba, não. Eles tinham acesso fácil a financiamentos e outros benefícios que o Estado poderia prestar”.

Os dez presos incinerados seriam João Batista e Joaquim Pires Cerveira, presos na Argentina pela equipe do delegado Fleury; Ana Rosa Kucinsk  e Wilson Silva; David Capistrano; João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes do PCB; Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML).

 O caso Riocentro

Sobre o atentado no Riocentro durante show do Dia do Trabalhador, em 1º de maio de 1981, Guerra relata no livro: “Participei do atentado ao Riocentro e fiz parte das várias equipes que tentaram provocar aquela que seria a maior tragédia, o grande golpe contra o projeto de abertura democrática. O destino daquela bomba era o palco. Tratava-se de um artefato de grande poder destruidor. O efeito da carga explosiva no ambiente festivo, onde deveriam se apresentar uns 80 artistas famosos, seria devastador. A expansão da explosão e a onda de pânico dentro do Riocentro gerariam consequências desastrosas. Era evidente que muitas pessoas morreriam pisoteadas. Aquela bomba [que estourou no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário] era uma das três que deveriam explodir no show. O capitão Wilson [Luís Chaves Machado] estacionou o veículo embaixo de um fio de alta tensão e a carga elétrica desse fio, a energia que passava em cima do Puma, fechou o circuito da bomba, provocando a explosão. O erro foi do capitão. (...) Eu era especialista em explosivos”.

Comissão da Verdade

Nomeada pela presidente Dilma Rousseff, no último dia 16, a Comissão da Verdade tem o objetivo de revelar violações aos direitos humanos, como mortes, torturas e desaparecimentos, desvendando capítulos desconhecidos da história brasileira no período de 1946 a 1988. A comissão é composta por sete integrantes – Cláudio Fonteles, ex-procurador geral da República; Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso e atual conselheiro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo; José Paulo Cavalcanti Filho, consultor da Unesco e do Banco Mundial; Maria Rita Kehl, psicanalista, ensaísta, crítica literária, poetisa, cronista e ex-editora do jornal Movimento, de contestação à ditadura; Paulo Sérgio de Moraes Sarmento Pinheiro, ex-secretário especial dos Direitos Humanos no governo FH; e Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada especialista em crimes políticos, professora e escritora.

Ao nomeá-los, a presidente Dilma afirmou que a comissão mostra a maturidade política e o espírito democrático do Brasil e ressaltou que ela não terá caráter “revanchista”.