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Rio de Janeiro, 18 de abril de 2024


País

O menino que quer trocar o crack pela batata frita

Caroline Hülle - Do Portal

02/04/2012

 Jefferson Barcellos

Aparentando ter 12 anos, C.H. está sob tratamento para se livrar do crack. As marcas de quem viveu bastante, impressas na pele, contrastam com a fala inocente do menino de 15 anos. Reflexos do uso de uma droga cujos números recordes desafiam governos, famílias, sonhos. Presente em 98% dos municípios do país, o crack afeta diretamente, segundo o IBGE, 1,2 milhão de brasileiros – boa parte deles crianças como C.H.. Ele começou a usá-la aos 11, antes até da baixa média nacional de 13,8 anos, segundo o V Levantamento sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas, feito nas redes públicas de ensino, em 2004. 

O jovem faz parte da primeira geração de internações compulsórias da prefeitura do Rio, que completou um ano no sábado passado e já acolheu 3.602 pessoas. Destas, 548 são crianças ou adolescentes. Pouco mais de 100 estão em quatro abrigos municipais. O Portal PUC-Rio visitou um desses internatos, a Casa Viva (veja aqui galeria de fotos), em Laranjeiras, um modesto sobrado de dois andares cuja fachada simples contrasta com a missão lhe atribuída. Ali, 15 meninos entre 11 e 17 tentam encontrar a infância subtraída pelo crack e um futuro que valha viver.  

Como os demais colegas da casa, C.H. foi recolhido das esquinas cariocas no ano passado e recebeu tratamento médico para superar as crises de abstinência. "Fui diminuindo aos poucos [de fumar cigarro]. No início, foi muito difícil. Agora estou melhor. Não penso mais em voltar para o crack", diz o garoto de olhar vazio e jeito inconstante: alterna momentos de extroversão com uma compreensível retração, de quem, escaldado pela dureza da vida na rua, aguarda o próximo round. O trabalho dos quase 50 educadores, divididos em três turnos, e dos oito profissionais da saúde vai além de recuperá-lo clinicamente e "devolvê-lo à sociedade" livre do vício. O mais difícil é fazê-lo preencher o olhar.

Ao auxílio médico, prestado no ambulatório da casa, somam-se atividades psicológicas, esportivas e de socialização. Neste ponto, as lembranças mais vivas de C.H. remetem à "zoação" ao lado dos amigos de rua atrás de dinheiro, droga, diversão. "Zoava muito. Mas também era ruim. Eu apanhava", recorda, econômico nas palavras, para mergulhar de vez no desenho que fazia (a casa onde morava, no Lins, Zona Norte) e não mais tornar ao assunto. Daquela rotina, invisível às estatísticas, o jovem herdou um problema na fala, que recupera gradualmente com sessões de fonoaudiologia no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). 

Desenhos, massinhas de modelar, judô, alfabetização dividem o dia a dia da casa com acompanhamentos clínicos, psiquiátricos e psicológicos. Um "currículo" para oferecer-lhes noções básicas de vida, que muitos não tiveram, ou perderam, por causa da droga. "Olha, você pode manter a nuvem em branco. As nuvens são brancas", sugere um educador ao adolescente, para o qual a experiência de fazer um simples desenho era uma descoberta. No canto da sala multiuso (relaxamento, refeitório, judô), quatro meninos eram atraídos pela câmera do repórter fotográfico. Talvez mais que informações técnicas sobre a lente que os transformaria em notícia, buscavam atenção. A maioria preferia o isolamento.

Com estratégias comuns e distintas, todos eles lutam contra a carência, a desesperança e a dependência, não necessariamente nesta ordem. C.H. conta que tentou, sem sucesso, parar de consumir crack outras vezes. Pela primeira vez, está confiante:

– Busquei apoio em ONGs, mas não deu certo. Eu queria parar de usar droga porque estava crescendo. Não fumo nem mais cigarro – comemora.

 Jefferson Barcellos Nas sessões semanais de terapia, C.H. reencontra uma história triste comum, infelizmente, a outros tantos jovens brasileiros. A morte do pai por alcoolismo, há sete anos, fui um trampolim para aceitar o incentivo de alguns "amigos" para se lançar às ruas. Entre a distância familiar e o descaso público, logo a droga virou fonte de conforto, e de destruição. O crack vicia em menos de um mês, alertam os especialistas (veja o quadro no fim da página). Da efêmera euforia, chega-se rapidamente à compulsividade:

– O dependente abandona tudo, família, trabalho. Mesmo quem está inserido na sociedade faz qualquer coisa em busca do prazer. Eles não escolhem usar a droga de novo; eles precisam – explica a psicóloga Teresa Creusa Negreiros, coordenadora do curso de Prevenção e Tratamento do Abuso de Drogas da PUC-Rio.

A Casa Viva é mais um dos lugares em que C.H. viveu. Foram tantos, que ele perdeu a conta. As melhores lembranças são de uma fazenda “lá pros lados de Minas Gerais”, lugar ideal para um apaixonado por animais. "Sugerimos que ele considerasse a possibilidade de ser veterinário. A ideia agradou", anima-se uma das diretoras da Casa Viva, Eloecy Ribeiro. "Quero ser trabalhador honesto", simplifica o adolescente. 

Os planos profissionais ficam, no entanto, para depois. Agora C.H. só pensa em voltar à casa do Lins, onde, ao lado da mãe e de dois irmãos, um filhote de labrador o espera. Quando o dia chegar, imagina que todos irão recebê-lo na estação ferroviária de Marechal Hermes. "Vamos comer uma batata frita cheia de ingredientes, que só vende nessa parada", sonha, com simplicidade comovente.

Internação compulsória gera polêmica

Determinada há cerca de um ano, a polêmica internação compulsória é, supostamente, uma estratégia para impedir que os menores deixem os abrigos públicos sem autorização judicial. Alguns são acolhidos mais de uma vez, pois fogem quando estão em atividades fora das unidades, como passeios e aulas. Eloecy lembra que, apesar de as portas ficarem trancadas, “não se trata de uma prisão”.

– Mesmo assim, já teve menino que fugiu em consultas médicas externas. Estava no consultório e, quando procuraram, ele tinha desaparecido – acrescenta.

O secretário municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, reconhece que o número de reincidentes nos abrigos é "alto", mas pondera que a dificuldade de tratamento dos viciados em crack é superior em relação ao de outras drogas. Ele explica que a internação compulsória é uma maneira de a "prefeitura agir para garantir o direito à vida dessas crianças [viciadas na droga]". Dentre as vitórias, considera a mais expressiva o freio na formação de novas áreas dominadas pelo consumo:

– Isso evitou uma explosão de cracolândias, principalmente a união das localizadas em Jacarezinho e Manguinhos, as maiores do Rio.

O crack em números

Brasil

• Um a cada três usuários perde a vida em cinco anos (fonte: Unifesp).

• O crack está presente em 98% dos municípios brasileiros (IBGE).

• Mais de 1,2 milhões de brasileiros consomem a droga (IBGE).

• A idade média para o primeiro consumo é de 13,8 anos (V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas).

Rio de Janeiro (desde 31 março de 2011)

• 77 operações em cracolândias.

• 3.602 pessoas acolhidas (3.054 adultos e 548 crianças e adolescentes).

• 117 crianças e adolescentes em abrigo compulsório atualmente.

A despeito dos avanços, a medida é questionada por profissionais de saúde e estudiosos da área. Para alguns deles, o acolhimento compulsório não é essencial à vitória na guerra contra o crack, e sim a coordenação de uma série de esforços associados a medicina, psicologia, educação, suporte social para reestruturação das famílias. Ainda na avaliação de especialistas, é fundamental a adoção de atividades lúdicas, como desenho, esportes e danças. Segundo Oswaldo Munteal, coordenador do projeto Prisioneiros das Drogas, também é importante uma “reflexão filosófica” para que o tratamento seja eficaz:

– É interessante saber o que a pessoa quer para a vida dela. Esse balanço é necessário.

Teresa destaca que a desestruturação familiar revela-se um dos maiores problemas. Se a família abandonou o viciado, ou não foi encontrada, “é dever do estado cuidar dessas crianças”. A professora, entretanto, mostra-se parcimoniosa quanto aos resultados da atuação do governo:

– Um ano é pouco para saber se a internação obrigatória está dando certo – ressalva. – Isoladamente, apenas para limpar as ruas, não vai surtir efeito.

O crack causa dependência rápida, profunda e intensa (leia o quadro abaixo), por isso é complexo acabar com o vício. Ainda de acordo com Teresa, quando o dependente para de usar sente uma “abstinência devastadora”.

– A cura depende da idade, do nível socioeconômico, cultural e do comprometimento com a droga – esclarece. 

Reconhecimento social é decisivo

Tão importante quanto o acompanhamento médico e psicológico é a reinserção gradual dos dependentes na sociedade. "Como eles romperam os laços sociais e estabeleceram relação apenas com a droga, a inclusão restitui esses vínculos", salienta Teresa. Para a professora, após a fase inicial de desintoxicação, é essencial que o ex-dependente continue com a psicoterapia e participe normalmente da vida em comunidade. Munteal acrescenta a necessidade de educar e preparar a população para receber os que venceram a luta contra as drogas.

– O cidadão que está limpo precisa se enxergar aceito pelos outros. Ele precisa de solidariedade, de oportunidade de emprego – analisa.

Quando pegar o trem rumo ao mercado de trabalho, C.H. deseja encontrar uma sociedade sem preconceitos contra ex-dependentes químicos. Espera que os gritos de “vai trabalhar, vagabundo” fiquem apenas no passado, quando pedia dinheiro na rua para comprar crack. Um sonho que, mais ou menos visível, preenche os corredores estreitos do internato.

Efeito devastador

O crack é uma mistura de pasta de cocaína com bicarbonato de sódio. Por ser fumado, atinge o sistema nervoso central mais rápido que a droga de origem. Demora cerca de 10 segundos para chegar ao cérebro, o que potencializa os efeitos imediatos.

Após o uso da droga estimulante, os neurônios são lesados e o coração acelera. Pode gerar hemorragia cerebral, alucinações, delírio, convulsões e infarto. Nos reincidentes, a atenção, a memória, a fluência verbal e as capacidade de aprender e de se concentrar ficam comprometidas.