Miguel Pereira * - Do Portal
19/03/2012Diferentemente de O artista, o filme de Martin Scorsese, A invenção de Hugo Cabret, cria em torno do cinema uma lenda centrada na própria invenção do sétima arte. Não transpõe nada. Não usa modelos. Conta uma história a partir do ambiente em que o cinema se formou como a espetacular mídia do século XX. Faz uso de todas as técnicas disponíveis, inclusive do 3D, para evidenciar a importância de suas conquistas e transições.
A linguagem do cinema e sua pesquisa estão também no centro da narrativa. Basta lembrar que uma das fontes apresentadas ao personagem central Hugo Cabret é a biblioteca, lugar primeiro dos contos e histórias da humanidade. Ver e ler são dois atos inerentes ao processo cinematográfico. Fazer cinema significa ler muito, desvendar outras histórias que já foram inventadas. Aprender com esse legado universal é parte essencial do processo criativo. Scorsese entra na biblioteca como se fosse o chão das invenções.
A personagem da menina é uma espécie de guia intelectual do Cabret, que, por outro lado, também a apresenta às aventuras cinematográficas. Mas, há ainda a cenografia, os objetos e as imagens da magia do cinema, sintetizados na figura do robô em busca da vida. Se o interior da estação parisiense é um universo que pulsa o cinema, a homenagem a Georges Méliès é a reverência ao pioneiro dessa arte de sentir e ver o mundo através de um dispositivo que sempre cria o novo. Hugo Cabret é uma espécie de alter ego de Martin Scorsese. É um obstinado pela continuidade, por levar a cabo o projeto paterno, acreditando, profundamente, na sua verdade. É um pesquisador por gosto, nada burocrático. Ama o que faz. É apaixonado por seu ofício de aprendiz de uma arte que intui, sem grandes racionalizações.
O encontro com Méliès sela não apenas a admiração pela obra do pioneiro, mas é também tributo à sua invenção. Terno e amoroso, o filme de Martin Scorsese nos coloca no lugar dos que se habituaram a ver o mundo também através da luz, do som, da palavra, da imagem e do movimento. O cinema é visto neste filme de Scorsese como a arte total, na expressão de Richard Wagner ao se referir às suas óperas, que ele preferia chamar de dramas musicais.
A invenção de Hugo Cabret é, assim, uma declaração de amor ao cinema que, mais uma vez, Martin Scorsese realiza. Não está só, como vimos no Oscar deste ano, mas é a mais singular e completa em sua expressão ao entrar nas entranhas do ato criativo do cinema.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
Leia também Cinema se redescobre em narrativa além da exaltação, sobre os filmes O artista e Hugo Cabret, e Oscar consolida diluição de fronteiras cinematográficas.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa