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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


Crítica de Cinema

Música conduz genealogia da identidade de Brasília

Miguel Pereira* - Do Portal

16/11/2011

 Divulgação

O retrato filmado de uma geração de músicos que se formou e desenvolveu no ambiente brasiliense é a ambição do último documentário de Vladimir Carvalho, "Rock Brasília", premiado e bem aceito pelo público. Quem está habituado ao cinema seco, preciso e investigativo do documentarista paraibano, e brasiliense por adoção, pode estranhar a sua incursão pelos caminhos da música popular brasileira. Na realidade, Vladimir desenvolve uma espécie de genealogia de uma identidade que vai bem além da música. Ele mesmo, como uma espécie de pioneiro numa terra em construção, vem buscando entender o que se passou e ainda se passa nessa capital brasileira que intriga e sobressalta a todos nós desde que foi criada e implantada pelo furor desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, em 1960.

Para lá seguiram muitas gentes de todas as ordens, classes e regiões do país, inclusive os pais e parentes desses indiscutíveis e talentosos músicos que marcaram e marcam a cultura brasileira. Assim, junto com a música, é possível entendermos um pouco mais do lado humano desses grupos desbravadores que aportaram à capital brasileira. São histórias que se entrelaçam e vão formando uma primeira visão do brasiliense por adoção ou por nascimento. Aparece, nitidamente, a vocação primeira do habitante de Brasília que se sente um pouco deslocado do seu habitat original e busca um entendimento com o novo espaço. São inúmeros os casos em que essa dimensão aparece no filme. Destaco apenas duas que parecem mais sintomáticas: a da família urbana que se instala com os filhos num descampado interiorano num modo de vida quase rural e do músico que, além da arte, tornou-se também um funcionário público de carreira.

É essa quase etnografia da vida formada em torno de uma capital em desenvolvimento que se estrutura a narrativa de Vladimir Carvalho. Claro que são preciosos os documentos trazidos à cena de Renato Russo e de tantos outros, emoldurados pelas memórias das vivências brasilienses. Também emocionam os depoimentos gravados para o filme a partir da memória dos protagonistas e seus familiares e amigos. Mas, parece que o ponto de maior impacto do trabalho de Vladimir é a sequência final que aparece como uma espécie de ajuste de contas, no melhor dos sentidos, entre pais e filhos. A cena é bonita e sua simbologia eloquente e poética.

Para muitos espectadores, o valor maior do filme reside no âmbito musical propriamente dito. São os cultores e apaixonados pelo rock como manifestação da arte popular que carrega em si "o grito e o mito", na definição do estudo pioneiro de Roberto Muggiati. Se naquele momento Renato Russo entoava a canção "Que país é este" e fazia vibrar o público com seu atrevimento e ousadia, estava ali embutido o sentido maior do rock surgido na capital federal. Como ele, outros talentos apareceram e juntos formaram uma geração de músicos que ainda encanta muita gente. Claro que o filme de Vladimir Carvalho tem muitas pérolas que merecem destaque. Uma, em especial, conta com a participação generosa de Caetano Veloso. Aliás, primorosa essa cena que destaca também a reação de outro grande músico brasileiro, Chico Buarque de Holanda.

"Rock Brasília, era de ouro" é um documentário realizado por um mestre dessa arte e nos coloca numa cena que ainda ecoa entre jovens e veteranos que amam a boa música popular brasileira. Mas, acima de tudo, o filme de Vladimir Carvalho propõe uma revisão das relações familiares e a busca de uma identidade sócio-urbana-cultural das gentes que habitam e vivem na capital federal.  

* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.