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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Crítica de Cinema

Traços irônicos e sutis do cotidiano de uma família paulista

Miguel Pereira * - Do Portal

13/10/2011

 Divulgação

O cotidiano de uma família de classe média paulista se torna amargo quando o casal se depara com o desemprego do marido ao mesmo tempo em que a mulher inicia um empreendimento comercial. A partir dessa situação básica, a dupla de jovens cineastas paulistas Marco Dutra e Juliana Rojas, ambos egressos do curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, constrói seu primeiro longa-metragem, Trabalhar cansa, Prêmio Especial do Júri do Festival de Paulínea e também exibido em Cannes, na Mostra Um Certo Olhar. Já vinham trabalhando juntos há alguns anos, produzindo e dirigindo curtas-metragens de prestígio e também premiados.

A aventura de narrar a crise familiar se mistura a uma tentativa de evitar a mera crônica de costumes e hábitos urbanos. Os realizadores introduzem uma dimensão um tanto macabra nessa história comum e sem glamour. Oferecem, na mesma narrativa, duas leituras dos mesmos fatos. Uma, dentro dos padrões de um realismo seco e sem graça, e a outra como uma espécie de metáfora da primeira. De certo modo, o horror oculto nas paredes da loja comercial é uma alusão ao processo que vai corroendo a vida da família. Assim, ao mesmo tempo em que assistimos a uma descrição neorrealística do marido desempregado, acompanhamos as peripécias da mulher na montagem de um pequeno mercado de bairro, onde fatos estranhos acontecem. É nesta chave de leitura que o filme ancora o seu pessimismo e sua crítica à decadência e ao desmanche da classe média em nossa sociedade.

Trata-se de um achatamento progressivo que se realiza através de cortes das conquistas de um bem-estar cada vez mais distante. Emblemático é o Natal sem luz por falta de pagamento. O que se vê é mesmo a tentativa de salvar as aparências de uma situação em ruínas. Nesse contexto, os valores do passado ainda resistem, mas mostram, cada vez mais, a sua inconsistência. Há uma evidente perda que se reflete no modo como os afetos se apagam ou diminuem de intensidade. Todas as formas de adaptação às novas maneiras de recrutamento para as empresas são olhadas, no filme, como agressão e desrespeito ao candidato a um lugar no mercado de trabalho. Dinâmicas se mostram desumanizadas e são apresentadas apenas para uma competição selvagem. Aliás, a última imagem do filme só confirma essa selva em que estamos.

Marco e Juliana realizaram um filme cheio de ironias sutis, a começar pelo título, Trabalhar cansa. Mas, acima de tudo, traçam um forte retrato da vida atual em que as perdas não são apenas materiais, mas também de valores que estão deixando o ser humano à deriva. Embora irregular na sua realização, com alguns lapsos narrativos de que nem as metáforas dão conta, o filme nos leva a indagações oportunas e consistentes.

 

* Miguel Pereira é Professor da PUC-Rio e crítico de cinema.