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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Crítica de Cinema

Sutil e nada óbvio, "Um conto chinês" abre janela à esperança

Miguel Pereira * - Do Portal

19/09/2011

 Reprodução

O que seduz em Um conto chinês, de Sebastián Borensztein, é a sua aura de uma história simples e bem contada. Surpreende, logo de início, com as imagens românticas de um barco, decorado e emoldurado numa paisagem típica da China, com um casal de noivos, desfrutando um momento especial. E aí surge o inusitado. Enquanto o noivo vai buscar as alianças numa outra parte do barco, cai do céu uma vaca dividindo ao meio a embarcação e matando o amor desse jovem apaixonado. Em seguida, a imagem externa de uma loja de ferragens, numa rua meio abandonada de Buenos Aires, onde o dono confere o número de parafusos de uma caixa que acabara de comprar. São duas imagens que parecem nada ter a ver uma com a outra. No entanto, à medida que a narrativa avança essas duas imagens fazem todo sentido no filme. É que esse jovem chinês acaba, casualmente, amparado pelo comerciante quando é jogado fora de um táxi ao chegar a Buenos Aires à procura de um tio. Se existe uma esperteza no roteiro que deixa ao sabor do acaso essa possibilidade, existe também o desenho de uma direção segura e competente de Sabastián Borensztein que controla o ambiente narrativo. Além disso, e sem dúvida alguma, a interpretação criativa e nuançada que Ricardo Darin imprime ao seu personagem fechado e macambúzio, Roberto, um ex-combatente da guerra das Malvinas, colabora, decisivamente, para construir a cumplicidade do espectador. Assim, num relato cheio de pequenos achados, que alteram o rumo da história com relativa frequência, e algumas repetições, que se constituem num mote revestido de novo, Um conto chinês vai seduzindo o público por pequenos atos da experiência cotidiana de todos nós. 

Essa manipulação da narrativa está ainda corroborada por um tratamento que produz uma ironia fina, e. à vezes, também ácida, das circunstâncias de vida de seus personagens. Sem ser óbvio, mas com observações sutis e bem colocadas, o filme de Sebastián Borensztein dá um panorama bastante pessimista da situação por que passa a sociedade portenha. A Argentina viveu, nas últimas décadas, crises sucessivas de credibilidade internacional e viu sua riqueza ruir diante de absurdos como a guerra das Malvinas. É triste a paisagem apresentada em Um conto chinês. Mas, por outro lado, o mesmo filme afirma a altivez e a crença de um povo que quer também se ver solidário e que preza seus valores culturais. Se o personagem Roberto carrega o peso da frustração de um futuro arrancado com a guerra, acaba se rendendo a uma ação humanista que condiz com uma formação de base sólida. E mais, termina reconciliado.  

Um conto chinês é um filme para se ver até o fim, incluindo os créditos. É que uma parte de sua história se completa nesse momento e se liga à frase de que o relato se baseia num acontecimento real. Por mais irônicos que sejam o telejornal russo e a frase que abre o filme, o sentido e o bom humor do que acabamos de ver se abrem ao público como uma janela de esperança.

* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.