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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Crítica de Cinema

'Melancolia', reflexão dissonante sobre o fim do mundo

Miguel Pereira * - Do Portal

09/08/2011

 Divulgação

Ao som solene e compassado do prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner, vemos um conjunto de imagens repetidas, em câmera lenta, como para fixar um mesmo episódio à moda das pinturas, com texturas imprecisas e personagens em ação. Esta é a abertura do último filme de Lars von Trier, Melancolia, exibido no Festival de Cannes, em maio passado, ainda sob o impacto das declarações desastradas do cineasta ao dizer que entendia Hitler. Diante da reação de todos, retratou-se logo a seguir por sua bombástica e inacreditável expressão. Aliás, o mais importante cineasta dinamarquês é pródigo em frases de efeito ou manifestos de auto-afirmação pessoal e grupal. Basta lembrar o já bastante conhecido Dogma, que listava um conjunto de regras para a produção de filmes em seu país. No entanto, devemos descontar de suas falas a ironia e a vontade de chocar, embora, obviamente, parte dessas inquietações esteja em suas obras.

Melancolia é, assim, um filme que desafia a nossa inteligência e provoca as nossas emoções. Na realidade, é até bastante didático, dividido como é,  em três partes, como se fosse uma composição musical:  um prelúdio ou abertura; um desenvolvimento ou o drama propriamente dito; e uma coda ou um final ou ainda uma conclusão, enfim, um fechamento da obra. Os únicos nomeados fazem parte do enredo central, isto é, as histórias parciais de Justine e Claire, as duas irmãs que conduzem a narrativa. Não é difícil acompanhar os detalhes e as instabilidades emocionais do núcleo do filme: a festa de um casamento. Até porque, o cineasta marca de forma muito clara o seu estilo narrativo diferenciado para cada parte do filme.

Se na abertura a dissonância nos inquieta e nos deixa na expectativa como um sinal de que algo não vai bem, nas imagens seguintes essa sensação assume o sentido de um vazio que vai e vem, gerando, como numa quinta vazia musical, a instabilidade emocional da vida, mesmo que durante a festa de um casamento perfeito. A desarmonia das cenas iniciais avança para o centro da narrativa através de uma câmera na mão balançante e inquieta que cria no espectador essa sensação de mutações psicológicas sucessivas. Uma possível explicação para toda essa desarmonia é, certamente, o que está para acontecer. Por isso, as estratégias utilizadas por Von Trier para nos contar a sua história são, na verdade, o exercício de uma hipótese que, embora fisicamente improvável, é psicologicamente perfeitamente possível. O fim do nosso mundo físico não é necessariamente o fim de tudo. A maneira como Lars von Trier constrói o final da sua história é exatamente o modo como se pensa a transfiguração da vida natural para a vida virtual. O rito é de passagem. A tenda não é apenas o lugar da acolhida. É também da celebração, como ocorre nas culturas judaico-cristãs. Deste modo, o fim volta ao princípio e o sentido se completa.

Com uma interpretação especial da atriz Kirsten Dunst, que ganhou,  merecidamente, o prêmio em Cannes, e um conjunto estético primoroso, Melancolia é um desses filmes que ficam na memória, na inteligência e na sensação de todos nós por muito e muito tempo. Se melancolia significa, no original grego, bilis negra, responsável pela desordem que pode nos levar a um fim nefasto, é, por outro lado uma nova possibilidade de reencantamento, pela poesia, da própria vida humana. As mutações estão em nós.

* Miguel Pereira é professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio e crítico de cinema.