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Rio de Janeiro, 17 de maio de 2024


Desafios 2015

Besserman: crise hídrica impõe nova visão estratégica

Felipe Castello Branco - aplicativo - Do Portal

27/10/2014

 Arquivo Pessoal

Embora negligenciada na campanha à Presidência, a crise estrutural do sistema hídrico será um dos desafios prementes para o vencedor das urnas do próximo domingo. O mandatário do Planalto terá de equacionar os recursos da área com as matrizes energéticas e corrigir deslizes administrativos federais e estaduais que, combinados com uma estiagem histórica, desaguam no uso recorde de termelétricas (fontes poluentes e caras), no consequente socorro de R$ 26,5 bilhões às distribuidoras – repassado para a conta de luz nos próximos dois anos – e no espectro do desabastecimento. “Tanto o governo federal, em relação aos reservatórios de energia elétrica, quanto o governo estadual (São Paulo), em relação ao abastecimento, trataram dos recursos hídricos com irresponsabilidade. Além das correções necessárias, é necessário um plano para reduzir o desperdício de água nas companhias de abastecimento”, avalia o economista e ambientalista Sérgio Besserman Vianna, presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura do Rio de Janeiro. Em entrevista ao Portal, para a série Desafios 2015, Besserman, escolhido Personalidade do Ano (2013) pelo Prêmio Jornalistas&Cia. / HSBC de Imprensa e Sustentabilidade, sugere uma inversão de estratégia: “O  futuro presidente do Brasil deveria deixar o mercado explorar os combustíveis fósseis – uma vez que isso não tem como ser impedido – e concentrar as forças do Estado para voltar os recursos às fontes renováveis. Precisamos ser mais liberais, menos intervencionistas, no mundo dos fósseis e mais ativistas estatais no mundo dos renováveis, com mais subsídios. Atualmente, fazemos o contrário. Está na hora de inverter essa política”. Ele é categórico ao alertar para a urgência de um novo modelo energético e de se resguardar o patrimônio florestal: “Perderemos qualidade de vida, bem-estar e dinheiro se não começarmos consumar logo a transição para uma economia de baixo carbono, buscando fontes renováveis. Também é urgente resguardarmos e até ampliarmos o volume de florestas. Sem florestas, não teremos água“.

Diante do avanço de 17% da área cultivada na próxima década, no país, como prevê o Ministério do Meio Ambiente, o integrante do Conselho Diretor da WWF-Brasil considera viável a conciliação entre os interesses ambientais e o crescimento do agronegócio – com o qual flertaram os finalistas da corrida eleitoral. “Até a agricultura familiar pode ser prejudicial ao ambiente. Tudo depende da forma de exploração”, pondera o especialista, que leciona Economia Brasileira na PUC-Rio. Por outro lado, Besserman ressalta que os proprietários agrícolas devem aderir ao Cadastro Ambiental Rural e respeitar o estabelecido no novo Código Florestal: "Sem o cadastro, não há fiscalização e permanece a impunidade aos que infringem as leis. O novo presidente da República terá o desafio de colocar em prática o que ficou estabelecido no novo Código Florestal”. Também é importante pôr em prática, aflige-se o ex-presidente do Instituto Pereira Passos, os avanços discutidos na conferência Rio + 20: "A guerra contra as mudanças climáticas está sendo perdida. A guerra para salvar a biodiversidade do planeta está sendo perdida. Os recursos hídricos estão ficando mais críticos. Muita coisa precisa ser feita, e colocar em prática o que foi estabelecido na Rio + 20 é fundamental".

Portal PUC-Rio: Diante da crise estrutural do sistema elétrico, desencadeada pela escassez de chuvas nas regiões onde estão as principais hidrelétricas do país, o Brasil usou, em nível recorde, as termelétricas movidas a óleo diesel e carvão mineral, o que gerou faturas ambientais e econômicas. Como resolver esta bola de neve? 

Sérgio Besserman: Antes de qualquer coisa, é preciso ter visão estratégica e entender que os preços de hoje refletem um passado de crescimento econômico baseado principalmente em combustíveis fósseis. Sabemos que esse sistema de fornecimento de energia não pode continuar, porque a temperatura do planeta aumenta em ritmo acelerado. Não é o fim do mundo, não é fim da civilização, não é o fim da natureza. Mas é algo muito sério. Perderemos qualidade de vida, bem-estar e dinheiro se não começarmos a agir e enfrentar esse problema imediatamente. Em outras palavras, precisamos abandonar o mundo dos combustíveis fósseis e fazer a transição para uma economia de baixo carbono. Seja qual for a forma com que a humanidade decida atingir esse objetivo, os preços da economia vão mudar radicalmente. O custo de emitir gases de efeito estufa vai entrar no preço das mercadorias. Então, pensando de forma estratégica, acredito que o futuro presidente do Brasil deveria deixar o mercado explorar os combustíveis fósseis – uma vez que isso não tem como ser impedido – e concentrar as forças do Estado para maximizar todos os seus recursos para as fontes renováveis. Precisamos ser mais liberais, menos ativistas estatais e menos intervencionistas no mundo dos fósseis; e, no mundo dos renováveis, mais ativistas estatais, com mais subsídios. Atualmente, fazemos justamente o contrário. Está na hora de inverter essa política.

Portal: Por falar em política, os finalistas da corrida ao Planalto flertaram com o agronegócio, embalado pela projeção de 17% de crescimento da área cultivada nos próximos dez anos.  É possível conciliar este avanço com as exigências ambientais?

Besserman: É perfeitamente possível o crescimento do agronegócio sem prejuízos ao meio ambiente. O que é ecologicamente deletério ao meio ambiente é a forma de exploração. Tanto a agricultura familiar quanto o agronegócio podem ser prejudiciais ou favoráveis ao ambiente. Tudo depende da forma de exploração. Entretanto, atualmente no Brasil, o mundo do agronegócio é pouco transparente. A tarefa número um a ser cumprida é muito prática e concreta: o Cadastro Ambiental Rural. Todos os proprietários agrícolas, principalmente os grandes produtores, têm de estar no cadastro. Se não há cadastro, não há fiscalização, e permanece a impunidade aos que infringem as leis. O segundo ponto é fazer uso do crédito agrícola. Quem não obedecer ao Código Florestal não tem crédito, simples assim. Em terceiro lugar, saliento que nós precisamos de florestas. Metade da água do Sudeste vem da Amazônia pela atmosfera. O microclima das cidades é determinado pelas áreas verdes que nelas existem. Então, agora não estamos só falando que a agricultura familiar e que o agronegócio obedeçam a parâmetros sustentáveis para proteger a natureza. Estamos falando de proteção à natureza e ao serviço que ela nos presta. O primeiro e mais importante, água.

Portal: A propósito, como contornar a crise hídrica, que afeta, em especial, o estado de São Paulo e já se desdobra em faturas ambientais e econômicas, como o aumento na conta de luz?

Besserman: Em primeiro lugar, gostaria de deixar bem claro que essa não é uma crítica partidária, nem pessoal. Mas com relação a essa situação de São Paulo, tanto o governo federal quanto o estadual trataram dos recursos hídricos esse ano com elevado grau de irresponsabilidade. Com o único objetivo de ganhar eleições. O governo federal, no que diz respeito aos reservatórios de energia elétrica, e o governo de São Paulo, no que diz respeito ao abastecimento. A atuação deveria ter sido iniciada muito antes. Além disso, é necessário um plano para reduzir o desperdício de água nas companhias que fazem o abastecimento. Precisamos pensar em alternativas. A água da chuva poderia estar sendo recolhida e utilizada, por exemplo. Precisamos repensar todo o sistema de saneamento, para que toda a água tratada seja reutilizada.

Portal: O senhor ressalta a importância de resguardarmos as florestas, até como uma vacina contra a perda das reservas de água no mundo. Neste sentido, que avanços são observados no novo Código Florestal e o que ainda precisa ser aperfeiçoado? 

Besserman: Não gostei de várias mudanças do Código. Acredito que a ciência não foi ouvida como deveria ter sido, principalmente na questão das matas ciliares, topos de morro e aspectos da cobertura florestal e dos biomas que prestam serviços ao ecossistema e são de extrema importância. Mas, ao mesmo tempo, como cientista social e cidadão, sei distinguir papel e realidade. O Código anterior tinha alguns aspectos muito melhores do que o atual. Contudo, não eram cumpridos. Uma vez que o Congresso Nacional discutiu e votou por esse Código, com prejuízos a meu ver, não há como voltar atrás. O ponto-chave agora é cumprir o que foi decidido. Escolheram esse Código, pois bem. Agora, cumpra-se. Porque, a bem da verdade, se nós cumprirmos esse novo Código, estaremos em situação muito melhor do que quando tínhamos com o anterior, melhor em diversos aspectos ambientais, mas que não era cumprido. O novo presidente da República vai ter o desafio de colocar em prática o que ficou estabelecido no novo Código Florestal.

 Arquivo Pessoal Portal: O Brasil registrou queda de 70% nas taxas de desmatamento numa comparação entre 2013 e a média observada de 1996 a 2005. Até que ponto este avanço se caracteriza em ganhos sustentáveis?

Besserman: Realmente, nos últimos anos tivemos um avanço grande na redução do desmatamento no Brasil, apesar de o ano de 2014 não ter apresentado números tão contundentes. Contudo, ainda estamos longe de alcançar o desmatamento zero. Precisamos de florestas, ou não teremos água. Já estamos vendo isso em São Paulo. Não podemos dizer que o que está acontecendo é o aquecimento global, mas podemos dizer que o aquecimento global vai fazer isso se repetir muitas vezes e de maneira muito pior. Então, repito: precisamos de florestas! É possível permitir que um proprietário rural desmate, dentro da faixa que o Código Florestal permite. Mas, ao mesmo tempo, é necessário estar plantando florestas nativas e comerciais.

Portal: Em setembro deste ano, a presidente Dilma Rousseff deixou de assinar um protocolo de intenções mundial para reduzir pela metade a derrubada das florestas do mundo até 2020 e zerar até 2030. Na sua avaliação, até que ponto esta recusa não se mostra desalinhada à política de desmatamento adotada nos últimos anos?

Besserman: Na minha opinião, foi um erro da presidente Dilma não ter assinado o protocolo de intenções. Não era um documento com obrigações, só com propostas e intenções para que o mundo chegue ao desmatamento zero. A imagem do país foi prejudicada. O Brasil foi protagonista na Convenção de Biodiversidade em Nagoya – onde desempenhamos um papel importante –, sediou a Conferência Rio + 20 e na hora do “vamos ver” não assinamos o protocolo. A atitude gerou um prejuízo ao ativo intangível marca do Brasil muito grande.

Portal: Das propostas discutidas na Rio + 20, o que já se converteu da retórica para a prática, ou está próximo disso?

Besserman: Concretamente, nada foi feito. A mesma coisa para a Rio-92. Por outro lado, tivemos um grande progresso com duas importantes mudanças. A primeira delas, a mais importante, pois sem ela nada aconteceria, foi na consciência das pessoas. Como estarmos aqui, agora, discutindo esses problemas. Reconhecermos a crise ecológica. Jornais interessados e produzindo reportagens sobre o assunto. A outra mudança importante foi no conhecimento. Como os impactos da crise ecológica começam a afetar a vida de muita gente – às vezes de forma dramática, com eventos climáticos extremos, sucessivas quedas de safras agrícolas, falta de água (como já estamos vendo no Sudeste), ondas de calor –, observa-se muito mais interesse em conhecimento e compreensão da crise ecológica global. Mas, do ponto vista da prática, ou seja, no modo de produzir e consumir, nada de relevante foi feito. A guerra contra as mudanças climáticas está sendo perdida. A guerra para salvar a biodiversidade do planeta está sendo perdida. Os recursos hídricos estão ficando mais críticos. Muita coisa precisa ser feita, e colocar em prática o que foi estabelecido na Rio + 20 é fundamental.

Portal: Segundo o Ministério do Meio Ambiente, estima-se que o Brasil responda por até 20% da biodiversidade mundial. Há planos consistentes para conservar tal patrimônio?

Besserman: Há. O principal deles, exitoso, embora com notícias ruins neste ano, foi a redução do desmatamento da Amazônia, que é um hot spot de biodiversidade. A obrigação de manutenção de áreas protegidas pelo Código Florestal é outro importante projeto.

Portal: Destes projetos, que medidas se mostram mais importantes e iminentes para preservar a fauna e flora brasileiras?

Besserman: A situação da biodiversidade é grave demais para que essas medidas sejam suficientes, mesmo as tomadas em países mais atuantes que o Brasil. Dois dramas se desenrolam sobre a biodiversidade: o uso do solo – plantações, agronegócio, cidades, estradas – e a extinção de espécies exóticas, incluindo a pesca. Sobre esses fatores, que em si já estão provocando uma redução da vida do planeta em ritmo de uma das grandes extinções, vem um terceiro: as mudanças climáticas. Mesmo quando você protege uma área, de qualquer forma que seja, a temperatura, em função do aquecimento global, vai, inevitavelmente, esquentar. E boa parte das espécies que ali se encontram vai sofrer. O maior problema, com relação à biodiversidade, é que não sabemos nada sobre a vida no mundo. Não sabemos o que pode acontecer no planeta se nós extinguirmos 30% da vida, como se projeta até 2050. Precisamos combater o aquecimento global imediatamente.

Portal: O Brasil apresenta um índice de poluição do ar duas vezes superior ao recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Como combater esse problema que chega a causar 7 milhões de mortes no mundo por ano?

Besserman: A solução para esse problema envolve mobilidade urbana. O ideal seria ter bons metrôs pelas grandes cidades. Mas isso levaria décadas e custaria muito caro. Então, optou-se pelo sistema rodoviário. Pois bem. Os ônibus têm de ser elétricos. Se não se quer fazer isso agora porque ainda é muito caro, é perfeitamente compreensível. Mas é necessário haver um horizonte, uma projeção nacional. As regiões metropolitanas que apresentam esse alto índice de poluição no ar precisam mudar o sistema rodoviário. Antes dos carros, os ônibus têm de ser elétricos.

Portal: Segundo a Global Footprint Network, os recursos naturais programados para o ano se esgotaram em 19 de agosto. Qual o peso do Brasil nesta matemática preocupante? Como equacioná-la? 

Besserman: O Brasil também esgota os seus recursos naturais numa velocidade mais rápida do que os recursos conseguem se recompor. Embora ainda estejamos muito longe de chegar ao desmatamento zero e à preservação, tivemos um importante avanço com a redução do desmatamento na Amazônia. Entretanto, tratamos os nossos recursos hídricos de forma inaceitável. Acredito que a  forma de reverter esse quadro é colocar, nos preços do mercado, os custos da degradação dos recursos naturais.