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Rio de Janeiro, 18 de maio de 2024


Cultura

Cinéfilos se mobilizam para salvar Grupo Estação

Mariana Totino - aplicativo - Do Portal

27/02/2014

 Cícero Rodrigues

Cinema preferido de gerações de cinéfilos, o Grupo Estação está vendo sua história ser narrada numa criação coletiva e espontânea dos próprios frequentadores, mobilizados com o risco de fechamento do espaço devido a uma crise financeira. Uma assembleia com os credores da dívida, que chega a R$ 31 milhões, está prevista para o dia 3 de abril. Na data, será decidido o destino do maior circuito alternativo de cinema do Rio. Ao comentar, em sua página no Facebook, a triste coincidência de a data ser o dia de seu aniversário, o diretor do grupo Marcelo França Mendes, professor licenciado de cinema na PUC-Rio, viu uma surpreendente mobilização ser desencadeada. Em poucos dias, um grupo de apoio na rede social conseguiu a adesão de milhares de pessoas (quase 8 mil até a tarde desta quinta-feira, 27). Neste espaço, frequentadores das 16 salas do Estação, de várias idades, compartilham histórias pessoais que tiveram as salas do grupo como cenário desde sua abertura, em 1985.

O crítico e professor de Cinema da PUC-Rio Miguel Pereira destaca a ousadia que o grupo exibidor e distribuidor teve ao se especializar no campo da cultura, em duas pontas: a formação de novas plateias e a oferta de produções de qualidade. Para Miguel Pereira, o ambiente cinematográfico carioca deve ao Estação importante contribuição para a “oxigenação das mentalidades audiovisuais”: “O Grupo Estação é parte importante do imaginário carioca do cinema. Não pode parar. Precisamos dele” (leia mais no artigo O Grupo Estação não pode parar).

Fãs de carteirinha

O crítico de cinema Marcelo Janot, formado em Comunicação na PUC-Rio, começou a frequentar o cinema de Botafogo já em 1985. Lá, lembra de ter assistido a obras completas de cineastas como François Truffault e Luiz Buñuel. Sempre que revê um filme, Janot sabe se assistiu primeiro no Estação ou não. Dos que viu lá, cita A bela intrigante, de Jacques Rivette, com quatro horas de duração: “Jamais entraria no circuito tradicional”. O longuíssima-metragem foi exibido com um intervalo após as duas primeiras horas.

– Devo ao Estação Botafogo a minha formação como cinéfilo. Assisti a obra de vários cineastas importantes, porque eles faziam ciclos em que exibiam num único dia três filmes do mesmo diretor, na época em que os filmes eram muito raros de encontrar em VHS, e ainda não havia DVD. Lá os filmes eram lançados e geravam assunto e discussão para sempre. Hoje, o que dita o mercado é o dinheiro. Lars von Trier, em vez de fazer Ninfomaníaca com quatro horas, lança em duas partes, para as pessoas pagarem mais um ingresso – afirma Janot.

A professora de produção cinematográfica na PUC Clelia Bessa diz “Vou ao Estação” quando vai ao cinema. Quando a filha – que também não costuma dizer “Vou ao cinema” – tinha apenas 2 meses, Clelia foi com ela assistir a um filme, para sair um pouco de casa. Nos últimos minutos da sessão, a pequena chorou e a mãe teve de sair da sala. Deixou a filha com os funcionários da bombonière, que conhecia, e voltou para assistir às cenas finais.

 Cícero Rodrigues – Onde mais eu poderia fazer isso? – ri Clélia, que também lançou filme lá: – Só de pensar nisso, me emociono. Lá eram realizados debates, se discutiam filmes. Muitos diretores importantes, inclusive para a cinematografia mundial, iam lá (como Pedro Almodóvar, na foto com o jornal Tabu). Era onde sempre se encontraria um ambiente cinéfilo, um ponto de encontro de exibição. Continua sendo um espaço de filmes de arte. Se fechassem as salas, ficaríamos muito órfãos. Nem quero pensar nisso. As pessoas teriam que se reorganizar de alguma forma para continuar a sonhar.

Em seu depoimento publicado na rede de apoio ao Estação, o professor da PUC e especialista em Cinema Italiano Arturo Netto afirmou destaca a importância de ampliar o acesso à diversidade cinematográfica: “Ir ao Estação é uma celebração de uma identidade e de uma pertinência amorosa”. Para o diretor de cinema Marcelo Taranto, que também leciona na PUC, o mercado, ditado pelo entretenimento nem sempre pautado pela qualidade – com raras exceções, ressalva – precisa de um local dedicado à exibição de obras respeitadas em festivais de cinema:

– Esse espaço deixar de existir seria muito negativo, porque eles sempre priorizaram a qualidade de conteúdo cinematográfico. Alguns filmes que focam no entretenimento têm qualidade intrínseca, outros são pura iniciativa para fazer dinheiro. O Estação priorizou filmes de festivais. Teve papel na própria retomada do cinema brasileiro, no começo dos anos 90, marcada por Carlota Joaquina. É incrível, o Estação teve participação histórica no cinema brasileiro.

O colecionador de ingressos

Cinéfilo, o jornalista e roteirista Rodrigo Goulart, de 33 anos, lembra de ter assistido a Poderosa Afrodite, de Woody Allen, no Estação Botafogo, nos anos 90. Desde então, vai ao cinema ao menos uma vez por semana e coleciona ingressos da casa. São cerca de 700 entradas guardadas, como contou em seu post na página da rede social (foto abaixo).

– Comecei a guardar intencionalmente, porque sempre gostei muito de ir ao cinema, e planejava desde aquela época fazer um grande quadro ou painel com todos eles, ou pelo menos, dos que considero mais importantes, o que “me representaria” de alguma forma. Ainda não fiz, mas estou perto. Coleciono só os do Estação porque, além de representarem os filmes mais marcantes que vi, têm mantido uma uniformidade gráfica ao longo dos anos e a maioria não apaga. Esses ingressos que parecem extrato de banco não têm graça, e todos apagam.

 Rodrigo Goulart Para o colecionador, é triste pensar que gerações de apreciadores da sétima arte deixariam de ser formadas, e que parte fundamental da cultura cinematográfica da cidade, que gerou inclusive o Festival do Rio, não existiria mais:

– O Grupo Estação foi o principal responsável por trazer filmes de países que não os Estados Unidos, obras premiadas em festivais e de grandes diretores autorais, que não têm espaço em shoppings e multiplexes. Foi um dos grandes responsáveis pela minha paixão por cinema. As salas do Estação sempre foram as minhas favoritas, antes mesmo de eu saber que todos faziam parte de um mesmo grupo, porque elas exibiam os filmes que mais me interessavam. Nada contra os blockbusters, que de vez em quando também me atraem, mas cinema para mim é muito mais uma grande história bem dirigida e, neste aspecto, os filmes que o Estação exibe sempre foram os melhores.

Apesar de ir a cinemas de shopping e gostar dos filmes cults aos pipocas, a atriz Lila Protásio, de 27 anos, vai pelo menos duas vezes por mês nas salas do Estação de Botafogo. As salas de cinema do Estação são para ela uns de seus maiores refúgios, pois quando entra no cinema, se desliga do mundo:

– Vi no Estação filmes que nunca vou esquecer. Não sei o que vai ser do Festival do Rio. Comecei a frequentar em 2000 e nunca parei. Na época da faculdade, passava tardes emendando filmes, saindo de uma sala de Botafogo para outra. Via três filmes em um dia. Tenho um amor e um apego que me deixam de coração partido só de pensar em vê-lo fechar. Estou torcendo para que essa mobilização gere um resultado positivo e ajude a manter abertas essas salas tão importantes para o carioca. O grande circuito está pobre e sem criatividade. Parece que cinema virou uma rede de fast food – diz Lila, que, coincidentemente nascida também em 3 de abril, espera uma boa notícia de presente.

Grupo quebrou barreiras de exibição

A jornalista Beatriz Caiado, de 50 anos, frequentava o Coper Botafogo, o cineclube que deu origem ao Estação. Quando precisou ver o filme A Bela e a Fera, de Jean Cocteau, para um trabalho da PUC, ligou para o Estação, que sabia ser tocado por gente jovem. Conseguiram uma cópia em São Paulo, e uma sessão foi marcada para 15 espectadores.

 – Cinema de arte e cinematografias alternativas, como filmes da Mongólia, essas coisas, só o Estação e o Arteplex têm coragem de exibir num primeiro momento. Depois, esses diretores e cinematografias ganham grandes prêmios nos festivais internacionais e o grande circuito os abraça e exibe, na medida do possível. Na década de 90, um grande exibidor e distribuidor do circuitão disse que o Estação o ensinou “a não temer filmes asiáticos”. O Estação tem um papel importantíssimo na história do circuito exibidor e distribuidor, porque movimentou o mercado e quebrou barreiras de exibição em maior escala. Antes tivemos o Paissandu nos 60, depois o Cinema 1 do Alberto Shatovsky, mas estas salas eram pontuais. De repente, apareceu esse grupo que se expandia, essa é uma mudança radical no circuito.

Bia, que trabalha com cinema e fez parte da equipe do Estação de 1995 a 2000, tem a Sala 1 do Estação Botafogo como sua preferida. Foi nesta sala que, depois de ter deixado a equipe do Estação, lançou o filme Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, dispensando o Estação Unibanco, o “irmão mais arrumadinho”:

 – A sala 1 do Botafogo é perfeita porque a tela quase encosta nas paredes laterais, o que dá uma sensação de túnel. Gosto de sentar mais para a frente e lá dá uma sensação de estar dentro do filme. Além de uma inclinação perfeita e de um chãozinho que bate o maior bolão, já que não tem escada e a gente pode se estica. Ah, sim, às vezes sentar no chão é uma boa opção e, no caso do Festival do Rio, é o único jeito de ver algum filme concorrido.

A crise e a corrente

A crise financeira do Grupo Estação começou a se agravar em 2007, com a retirada do patrocínio da Prefeitura, durante a corrente edição do Festival do Rio, e com as obras da filial do Shopping da Gávea. O grupo já vinha negociando com os credores para saldar as dívidas. Mas, desde que a crise tornou-se pública, graças à mobilização pelo Facebook, cinco reuniões com possíveis patrocinadores já foram realizadas. Espera-se que pelo menos uma delas vá à frente.

Cícero Rodrigues

Marcelo França Mendes lembra que tudo começou com uma postagem despretensiosa, dia 17 de fevereiro, falando sobre a ironia do destino de o juiz bater o martelo (ainda não foi publicado em Diário Oficial) no dia do seu aniversário.

– Começaram a me perguntar o que estava acontecendo, montaram o grupo de apoio, que vai chegando a 8 mil de seguidores (em 2 horas eram 700 membros no grupo). Não era a intenção chamar toda essa atenção, mas que bom que essa mobilização aconteceu – relata o diretor do Estação.

Por meio da mobilização pela internet, um sentimento de nostalgia e identificação foi despertado nos frequentadores, antigos ou mais recentes, e também nos funcionários e ex-funcionários. Para França Mendes, essa movimentação revela um público que continua fiel e carinhoso:

– O Estação faz parte de um segmento da vida cultural do Rio. Quando o cinema era menor, eu passava o dia inteiro dentro dele. Então, via mais o público, sentia mais o ambiente. Depois que cresceu, ficamos mais em escritórios, em reuniões, perdemos um pouco de contato com o público. Tenho recebido dezenas de mensagens, vou lendo aos poucos. Desde simplesmente desejando força, como “o Estação não pode fechar”, até pessoas intermediando reuniões com empresas.

O presidente do Grupo Severiano Ribeiro, um dos credores do Estação, manifestou seu apoio ao Estação no Facebook: “A posição da família Severiano Ribeiro na assembleia de credores será de apoio a qualquer proposta que viabilize o Estação e o mantenha vivo, renovado e pronto para continuar a contribuir de forma relevante para a difusão da sétima arte. Não estamos focados na dívida que possuem conosco. Valores que nos importam nessa questão não são os financeiros. Você sabe que, sendo o caso, podemos abrir mão dessa dívida”.

Marcelo França Mendes agradece o apoio, que vê como o reconhecimento da importância e da responsabilidade do grupo:

– O Estação está com problemas e quer resolver, precisa dessa chance. É muito importante o apoio de empresas como o Severiano Ribeiro, que além de credor seria em tese nosso concorrente, pois somos exibidores na mesma cidade em bairros que são próximos uns dos outros. Eles nos veem como complementares, ou seja, formando plateias numa outra esfera que não a deles.

Cineclube de origem, grupo faz 30 anos em 2015

Prestes a completar 30 anos de existência, em 2015, o grupo que começou como um cineclube, hoje conta com seis cinemas, além de ser distribuidor de filmes. “A gente só queria ver filmes, e não tinha onde ver”, lembra o diretor do grupo, formado em cinema pela UFF.

– Talvez hoje não tivéssemos criado o Estação, pois há outros jeitos de ver filme. Nos anos 80 não tinha DVD ainda, mal tinha VHS. Mostrar diversidade sempre foi o nosso objetivo. Nos anos 80, era para ver os filmes que a gente não conseguia ver e esse segue sendo o espírito. A ideia é que as pessoas vão a uma de nossas salas pensando em ver o que  não consegue ver em outras. Queria estudar Cinema, ver filmes, e a empresa é espelho disso. Só não exibimos tudo que gostaríamos porque não é viável economicamente.

 Arquivo Portal O crítico Marcelo Janot ressalta que o cinema de rua continua sendo fundamental, mesmo numa época em que tudo está disponível em DVD, na TV e na internet, pois trata-se de um espaço para assistir em tela grande a uma programação de qualidade:

– Muita gente vai ao Estação sem saber que filme está passando, chega lá e escolhe, porque sabe que vai ser surpreendido positivamente. Na tela grande há uma imersão no filme, uma concentração absoluta. Quem vai ao Estação não está indo ao cinema para comer pipoca e tomar refrigerante; está indo prioritariamente para ver um bom filme.

Para o também crítico e jornalista especializado Pedro Butcher, ex-editor e atual colaborador do portal Filme B, dedicado ao mercado cinematográfico, a cidade tem um espaço para a arte que não deve ser desperdiçado: 

– Não podem deixar os últimos cinemas de rua do Rio fechar, senão não abrem mais. Foi lá que eu me formei, quando ainda não era um cinema comercial. Depois de se profissionalizarem, continuei frequentando. Os problemas de gestão têm que ser resolvidos. 

Janot acrescenta que o Rio é uma das cidades que têm mais salas de exibição de filmes de arte no mundo, e que sempre se orgulhou de ter um grande circuito que atenda esta vertente cultural, como o Estação:

– Acredito que os cinéfilos sejam tão fanáticos quanto os petistas e não vão deixar o Estação morrer de jeito nenhum. O circuito do Estação é bem servido. Se fechar haverá um desfalque, que não é suficiente para atender a cidade.

França Mendes espera do poder público um tratamento diferenciado que leve em conta a importância desse circuito, revendo por exemplo o valor dos impostos cobrados dos cinemas de rua:

– O metro quadrado na cidade triplicou de preço nos últimos anos. Achamos que os cinemas de rua deveriam ter tratamento diferenciado, porque são importantes para a cidade. Poucas cidades do mundo têm um circuito exibidor alternativo como o Estação. A Prefeitura é que tem que dizer, mas acho que o Estação é um patrimônio do Rio. 

Sugestões como venda de carteiras, criação de sócios e crowdfunding, levantadas pelos fãs de carteirinha do circuito Estação, poderão ser avaliadas somente num segundo momento, como explica o diretor do grupo:

– Cogitamos a venda de algum cinema, e torcemos por um patrocínio. As pessoas já estão ajudando, fazendo esse barulho pela internet e intermediando contato com empresas. Os credores vão ver que têm que olhar com mais cuidado. Num segundo e imediato momento, vamos partir para várias sugestões sugeridas pelas pessoas. Porque, mesmo que a gente passe pelo dia 3, vai passar combalido.