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Rio de Janeiro, 14 de junho de 2024


País

Crime e castigo ao volante no Dia Nacional do Trânsito

Amanda Reis - Do Portal

25/09/2012

 Eduardo Ribeiro

Cinco horas da manhã do dia 6 de agosto de 2011, um sábado. Cinco amigos voltavam de uma festa de formatura na BR-040, em Juiz de Fora, num Honda Civic, a aproximadamente 170 km/h. Numa curva, o motorista Diogo Vieira Marçal ultrapassou outro veículo, um C4 Pallas, pela direita, e perdeu o controle da direção. O carro caiu ribanceira abaixo, capotando onze vezes. Todos estavam sem cinto de segurança. Arremessado do carro, Kevin Trancozo, 20 anos, que estava no banco de trás, morreu três dias depois, e teve seus órgãos doados. Guilherme da Silva, 26 anos, foi lançado do banco do carona. Teve fratura exposta do fêmur e quebrou ainda a tíbia, a bacia e a fíbula. O socorro demorou uma hora e meia para chegar, levando-os a um pronto-socorro de Juiz de Fora. O rapaz quase perdeu a perna esquerda, por uma forte infecção. Quinze dias depois do acidente, durante cirurgia num hospital de Vassouras, onde mora, os médicos encontraram terra e grama no ferimento.

 Arquivo Pessoal Formado em engenharia ambiental, Guilherme era atleta – disputava o campeonato brasileiro de rugby pelo time de Volta Redonda na época do acidente. Pouco antes, tinha começado a trabalhar na Secretaria de Saúde de Vassouras. Passou 138 dias internado, perdeu 35 quilos e 10 centímetros do fêmur. Mais de um ano depois, ainda se recupera. Licenciado pelo INSS, sem poder trabalhar, faz fisioterapia diariamente para voltar a andar sem o apoio de muletas, e convive com um fixador externo na perna, que estimula o alongamento do osso e deve ser retirado em dezembro. O rugby ficou no passado:

– Não vou voltar a jogar, porque no rugby estamos sujeitos a muitas lesões. Não quero arriscar a me quebrar de novo.

 Arquivo Pessoal Guilherme se prepara agora para outro passo, na Justiça: decidiu processar Diogo, o colega que dirigia o carro, que teve lesões superficiais, assim como os outros dois ocupantes. Todos – ele inclusive – haviam bebido na festa.

Historicamente, o acidente de trânsito é entendido como homicídio culposo, causado por imprudência ou imperícia do motorista, mesmo se estiver dirigindo em alta velocidade ou embriagado. A pena máxima é de quatro anos de prisão, geralmente convertida em prestação de serviços comunitários. Recentemente, porém, um novo entendimento – de que o motorista, ao dirigir embriagado, está assumindo o risco de matar – ganhou respaldo jurídico, podendo servir de exemplo para outros casos, como o de Guilherme.

Foi a advogada Jussara Gauto quem defendeu a nova tese, no caso de Izabella Gautto Caruso, de 11 anos, filha do chargista Chico Caruso e sua prima. A menina morreu num acidente no dia 27 de dezembro de 2006, em viagem com a família de duas amigas com quem passaria o Ano Novo na Região dos Lagos. No carro, estavam Mônica Dias Campos Rodrigues, a motorista;  seus filhos, um casal; uma babá e Izabella. O comerciante Juamir Dias Nogueira Junior vinha no sentido oposto, em alta velocidade. Cruzou a pista e bateu no outro carro, matando Mônica e Izabella. A babá perdeu uma das vistas e sofreu várias lesões pelo corpo.

Em agosto, a juíza Janaina Pereira Pomposelli, do Tribunal de Cabo Frio, condenou o comerciante a oito anos e nove meses de prisão. A nova interpretação, aceita pela primeira vez no país, considera este tipo de acidente como homicídio doloso ou com dolo eventual, quando se assume o risco de matar. A punição é de seis a vinte anos de prisão.

A responsável por essa mudança de paradigma no meio jurídico, Jussara Gauto, experiente em casos de homicídio, atua há 40 anos na área criminal no Rio Grande do Sul. Arquivo Pessoal

– O aumento do número de acidentes de trânsito causados por motoristas embriagados, drogados ou fora do normal nos últimos anos mexia comigo. A tese vinha ganhando força na minha cabeça. Já vi uma série de armas, de cordas a metralhadoras, mas o carro também se torna uma arma nestes casos. Essas pessoas sempre acham que não vai acontecer nada. O alto índice de acidentes (em 2010, foram 43 mil mortes no trânsito) já vinha me irritando há muito tempo, só que ninguém tinha me contratado para um caso desse tipo – lembra a advogada, em entrevista ao Portal

Depois da morte de Izabella, sua prima Argelia Gauto, mãe da menina, perguntou qual seria a punição para o motorista. A advogada explicou que ele pagaria algumas cestas básicas e prestaria serviço comunitário. Mas apresentou outra saída à prima:

– Expliquei que fazer este tipo de acidente de trânsito ser entendido como homicídio doloso era dar um tiro na lua, porque não é uma verdade absoluta. Muita gente não concorda com essa tese. Mas disse a ela: eu quero tentar.

Desde que iniciou a investigação, em 2 de janeiro de 2007, Jussara teve o apoio dos delegados, da promotoria e, o mais importante, da juíza, que também consideraram que o motorista usou o carro como uma arma e assumiu o risco de matar. Condenado por júri popular, Juamir Dias Nogueira Júnior alega que não havia bebido, e recorreu da decisão em todas as instâncias até chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), sem sucesso.

– Apesar de não ter ficado provado que o motorista estava embriagado, ele estava fora de si. Caiu em contradição muitas vezes e usou falsas testemunhas, ou seja, estava todo errado: não lembrava que a própria filha estava no banco do carona, sem cinto de segurança; que jogou um carro e uma senhora para fora da pista e que bateu num posto de gasolina – detalha Jussara.  Arquivo Pessoal

Após a vitória nos tribunais, Argelia, a mãe de Izabella, está satisfeita:

– O motorista foi condenado por matar duas pessoas, deixar uma aleijada e dois órfãos, por ter destruído famílias. Chegamos aonde queríamos – afirma a mãe, que sente a falta de Izabella todos os dias: – Quando se perde um filho, a cabeça não funciona, parece que nada aconteceu. Quando acordo, abro os olhos na esperança de que não seja real. A minha vida parou, mas a do motorista continua. Cabe à Justiça colocá-lo na cadeia, porque ele ainda não sentiu o gosto da prisão.

Agora, a advogada Jussara Gauto deseja a consolidação da tese:

– Não precisa mudar a lei. O homicídio com dolo eventual, quando o agente assume o risco de matar, já está previsto no Código Penal. Enquanto o indivíduo paga cestas básicas e presta serviço comunitário por tirar vidas, isso não vai ter fim. Está na hora de acabar com isso.

A mãe de Izabella também espera que a aplicação da lei mais severa possa ser repetida em outros casos:

– Infelizmente, outras pessoas vão passar pelo que estou passando. Agora, já existe uma jurisprudência. Espero que possam ter um julgamento justo, e que a minha Izabella não tenha partido em vão.  Arquivo Pessoal

Já o ex-atleta Guilherme da Silva, que também vai buscar na Justiça a condenação do motorista responsável pelo seu acidente, é contra a pena de prisão: 

– Prisão não resolve problema no Brasil. O motorista deve pagar pelos seus atos, mas de outras formas, como prestar serviço comunitário às vítimas ou famílias envolvidas em tragédias como a que ele causou. Preso, só vai gerar despesa para o estado, e ainda corre o risco de sair bandido – opina.

Importante ressaltar que não se pode tratar todos os acidentes de trânsito como dolo eventual, mas somente aqueles em que o motorista assume o risco de matar – ingerindo álcool, drogas ou ultrapassando o limite de velocidade permitido, por exemplo.

– É fundamental que haja provas de que é um homicídio doloso. No nosso caso, tínhamos testemunhas que estavam na via no momento da tragédia, que não chamo de acidente. Estas pessoas também não se conformam com a impunidade – completa Argelia.